Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Quantos deíticos contém a frase «por aqui passou gente famosa»?

Resposta:

Na frase em questão, ocorrem dois deíticos: o advérbio aqui e a forma verbal passou, no pretérito perfeito do indicativo.

Costuma-se identificar imediatamente os deíticos – palavras «cuja significação referencial só pode ser definida em função da situação, do contexto, do locutor e do recetor de um ato de fala (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa; atualizou-se a ortografia)» – com os pronomes pessoais de 1.ª e 2.ª, os advérbios de lugar (aqui, , ali, , ), os advérbios de tempo (agora, ontem, hoje, amanhã) e os determinantes e pronomes demonstrativos (este, esse, aquele, isto, isso, aquilo). Contudo, o conceito de deítico abrange também os tempos verbais organizados em função do momento da enunciação, marcado pelo advérbio agora. Como explica Fernanda Irene Fonseca ("Deixis e Pragmática Linguística" in Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, org. I. H. Faria et al., Lisboa, Caminho, 1996, págs. 442/443; atualizou-se a ortografia)1:

«Quanto à componente do contexto que é ativada semanticamente pela utilização dos deíticos, distinguem-se, fundamentalmente, os três tipos clássicos de deixis: pessoal, espacial e temporal. [...] A deixis temporal diz respeito à utilização do momento da enunciação (AGORA) como marco de referência para a localização temporal, O tempo, tal como o concebemos através da linguagem, é de natureza deítica: presente, passado e futuro não são noções absolutas, são relativas ao momento da enunciação. A interpr...

Pergunta:

Em português de Portugal, podemos dizer que fazemos algo «de coração» (e.g. «ela desejava de coração que o António fosse viver com ela outra vez»; «eu sei que ele me perdoou de coração e não guarda nenhum tipo de rancor», «o que eu fiz pela minha mãe, fi-lo de coração», etc.)?

Resposta:

Embora conhecida no português de Portugal, mesmo no âmbito literário, parece que a locução «de coração» tem maior tradição no Brasil.

Na atualidade, parecem encontrar-se sinais, pelo menos, no léxico – incluindo as expressões fixas –, de alguma certa convergência entre as diferentes variedades do português, a que não será estranha a facilidade de comunicação entre falantes de regiões diferentes e afastadas. Esta situação talvez seja mais observável em Portugal, em consequência do contacto prolongado com o português do Brasil pelos meios audiovisuais ou pela presença de comunidades não só desse país mas também de outros países de língua portuguesa. Não admira, por isso, que por vezes o uso de certas expressões se evidencie como mais típico do Brasil ou de Angola, sem que tal exclua a sua deteção em Portugal com frequência crescente.

Relativamente a «de coração», em vários dicionários gerais e especializados, portugueses ou brasileiros, encontram-se habitualmente registos das expressões «do coração» e «de todo o coração» – e não simplesmente «de coração». No entanto, um dicionário brasileiro – o Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (2004) – acolhe como subentrada de coração a locução «de (todo) coração», que significa «com todo o prazer, sinceramente» e cujo registo sugere que se emprega quer como «de todo coração» quer como simplesmente «de coração». E, querendo comparar textos portugueses com textos brasileiros por meio do Corpus do Português (CP), nota-se que é mais frequente ocorrer «de coração» a modificar verbos nos textos do Brasil. Na verdade, no CP, em 64 ocorrências de «de coração», 14 estão a...

Pergunta:

Em Matemática fala-se em «independência linear» de um conjunto de vectores, dizendo-se que estes são «linearmente independentes». Uma outra noção relacionada é a de «independência afim» de um conjunto de pontos. Em inglês, utiliza-se a expressão affinely independent. Existe uma expressão correspondente em português? Dito de outro modo, existe (e, caso exista, qual é) o advérbio de modo correspondente ao adjetivo afim? Encontrei o termo "afimmente" numa pesquisa na Internet, mas apenas nos sumários de uma disciplina universitária de Matemática. Esta parece-me a opção mais sensata, analogamente ao que sucede com o advérbio comummente...

Resposta:

Não existem registos dicionarísticos da forma afimmente, mas, dado que a formação de advérbios de modo em -mente é previsível e muito produtiva no português contemporâneo, pode considerar-se que a palavra, no sentido de «maneira afim», por não fugir às regras nem aos padrões morfológicos do português, é uma palavra tão bem formada como comummente* (no Brasil, comumente).

Acresce que, na língua espanhola, na qual existem advérbios de modo sufixados com -mente e formados de modo semelhantes ao português, se constata o uso de afinmente em expressões como «afinmente independiente» e «afinmente conectado» por parte do discurso especializado da matemática. Esta comparação com um idioma muito próximo do português permite considerar que afimmente – no Brasil, afimente, tendo em conta o modelo de comumente – é uma possibilidade do sistema morfológico português, aproveitável pela linguagem especializada, muito embora não tenha tradição na língua corrente.

Contudo, mesmo entre matemáticos, podem talvez encontrar-se juízos linguísticos hostis a afimmente, dado a sua configuração fónica e gráfica menos habitual. Nesse caso, pode sempre recorrer-se às perífrases «de forma afim» ou «de modo afim», entre outras de igual conteúdo semântico.

A sequência gráfica é rara, mas não é impossível na tradição ortográfica, pela...

Pergunta:

Vejo/oiço constantemente o uso da expressão como sinónimo de completamente. Há quem conteste. Há dicionários que apenas indicam «de modo literal», outros indicam também «completamente». Podem ajudar?

Grato pela atenção.

Resposta:

O uso de literalmente como sinónimo de completamente é frequente, é mais antigo do que se pode pensar e até se encontra dicionarizado. No entanto, pode revelar-se discutível, tal como acontece com o seu homólogo anglo-saxão literally, que, do ponto da norma do inglês, tem sido alvo de censura.

Além de significar «de modo literal» e «exatamente», o advérbio literalmente ocorre no sentido de «completamente», uso que já está dicionarizado há algum tempo, conforme se pode confirmar pela consulta do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, publicado em 2001. A 1.ª edição do Dicionário Houaiss (2001) também o acolhe nessa aceção, bem como o dicionário da Porto Editora. Contudo, é verdade que o dicionário Priberam regista literalmente apenas como equivalente a «de modo literal» e «com as mesmas exatas palavras». Também se encontram atestações de literalmente = «completamente» na literatura do século XIX:

1. «O rosto, as mãos e a camisa do Sr. Joãozinho ficaram literalmente tingidas.» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais in 

Pergunta:

Já existem duas respostas acerca do verbo tratar, mas julgo que nem uma nem a outra respondem a esta questão: devemos escrever «tratarei que te deem uma lição» ou «tratarei de que te deem uma lição»?

Obrigado.

Resposta:

Recomenda-se que a preposição de se conserve antes da conjunção («tratar de alguma coisa»/«tratar de que....»), mas não é erro omitir tal preposição («tratar que...»).

O uso de tratar com orações finitas («tratarei que/de que te deem uma lição») tem certo tom arcaico, o que talvez explique que não esteja esta possibilidade incluída na descrição do verbo nos dicionários de regências consultados*. Contudo, a consulta de conjuntos de textos (ou corpora, como o Corpus do Português) revela que «tratar de» (no sentido de «ocupar-se», «procurar», «fazer com que») há séculos que se emprega quer com preposição quer sem ela antes de oração com o verbo finito:

1. «Conforme-se Vossa Senhoria com o seu original, que é o mesmo Deus, pois sabe que é seu retrato; e trate de que nessa cera vil de suas inclinações terrenas faça aquele selo eterno do amor de Deus uma impressão divina» (António das Chagas, Cartas Espirituais, 1665, in Corpus do Português).

2. «Para evitar de algum modo este descrédito, tratei que os dois primeiros tomos se recolhessem [...]» (Padre António Vieira, Cartas, in Corpus do Português).

Acrescente-se que a consulta do Corpus do Português indica que se tem usado mais «tratar que», sem preposição, do que «tratar de que», mesmo entre escritores cujas obras são tradicionalmente consideradas modelares para a norma-padrão, como é o caso de António Vieira, autor da frase em 2. O verbo tratar junta-se portanto a vários outros que são compatíveis com a omissão da preposição de antes da...