Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Imaginemos, não o diálogo, que esse já aí ficou, mas os homens que o sustentaram, estão ali frente a frente como se se pudessem ver, que neste caso nem é impossível, basta que a memória de cada um deles faça emergir da deslumbrante brancura do mundo a boca que está articulando as palavras,...» José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, pág. 180

Gostaria muito que me dissessem se o que da proposição «que neste caso nem é impossível» no texto de Saramago faz parte da locução o que, e ipso facto, equivale a isto, e essa mesma construção poderia ser vista como relativa apositiva, ou, se se trata de um que causal segundo pensa o gramático brasileiro Napoleão Mendes de Almeida.

Agradeço-vos, desde já, não só a minha resposta mas também o vosso trabalho monumental.

Muito obrigada!

Resposta:

A sequência «que neste caso nem é impossível» pode ter duas interpretações:

1. Se a palavra que tiver valor causal – isto é, se for interpretada como uma conjunção subordinativa causal, equivalente a porque –, a sequência é uma oração subordinada adverbial causal.

2. Se o pronome que for visto como o que, trata-se de uma oração subordinada adjetiva relativa que funciona como aposto (isto é, como informação extra) da frase precedente: «estão ali frente a frente como se se pudessem ver, (o) que neste caso nem é impossível» = «estão ali frente a frente como se se pudessem ver, e diga-se, aliás, que isso neste caso até nem é impossível».

Acerca da possibilidade referida em 2, convém deixar mais algumas observações acerca dos pronomes relativos o que e que bem como em relação às orações subordinadas adjetivas relativas que funcionam como aposto de frase. O uso destes pronomes tem certas condições de ocorrência, conforme se descreve na Gramática do Português (GP), ed. da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 2085/2086), que, classificando o que como locução pronominal relativa, considera:

«[o seu] uso mais típico é em orações relativas apositivas de frase, ou seja, com um antecedente de natureza oracional, como se ilustra em (45):

(45)  a. Estava a chover, o que nos causou muito ...

Pergunta:

Gostava de saber qual é a origem da palavra cravo (flor).

Muito obrigada pela vossa atenção.

O vosso trabalho é fantástico!

Resposta:

Como designação da flor do craveiro (Dianthus caryophyllus), o vocábulo cravo terá começado a ser usado nos finais do século XVI, em resultado do alargamento do significado de cravo, que até essa época podia ocorrer nos atuais sentidos de prego e cravo-da-índia (ou cravinho). Observe-se, porém, que não está totalmente esclarecida a etimologia exata da palavra em apreço.

Com efeito, José Pedro Machado, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Lisboa, Livros Horizonte, 1987), regista cravo também como nome de uma flor cuja origem lhe parece controversa, «sem sintomas de se esclarecer brevemente», muito embora se interrogue sobre a hipótese de haver uma relação com cravo, «prego». Tom mais assertivo tem a nota etimológica que o Dicionário Houaiss dedica a cravo (desenvolveram-se todas as abreviaturas):

«ao mesmo vocábulo cravo prendem-se, além dos sentidos metafóricos pelo formato 'calo, espinha, acne sebácea', os sentidos de 'flor/planta', de 'semente aromática da Índia'; cravo 'flor/planta', por sua vez, parece ser posterior a cravo 'especiaria' (inequivocamente documentado em Camões (1572, Lus. II, 4), vindo a fixar-se em forma distintiva como cravo-da-índia, a partir de quando cravo 'flor' se torna popular; Corominas[1], s.v. clavo, refere clavel como de 1555 para a especiaria e de 1582 para a flor, invocando o catalão clavell (1460) 'flor', "llamada así por su olor análogo al del clavell 'clavo de especia', accepción que a su vez procede del catalán antiguo clavell (s. XIII) 'clavo de clavar', por comparación de forma"[2]; n...

Pergunta:

Qual das seguintes frases está correta segundo o português europeu padrão?

«Eu hei-de experimentar a comprar pão daquele.»

«Eu hei-de experimentar comprar pão daquele.»

Tratar-se-á do mesmo fenómeno que ocorre com a preposição a antes do infinitivo como em:

«A continuar este trabalho, vou conseguir ganhar mais.»

E já agora qual o nome para estes fenómenos? Trata-se do gerúndio com a mais verbo no infinitivo?

Obrigado!

Resposta:

A construção correta não tem a preposição a:

1. Hei de experimentar comprar pão daquele.

Na frase, o verbo experimentar ocorre no sentido de «tentar» e liga-se a um infinitivo sem preposição (experimentar + infinitivo).

Contudo, no discurso oral no português de Portugal, registam-se na verdade ocorrências de experimentar + a + infinitivo, numa construção que parece refletir a influência (analogia) de construções (perífrases verbais) como começar a + infinitivo, pôr-se a + infinitivo, ou, ainda, andar a + infinitivo:

2. Hei de experimentar "a" comprar daquele.

3. Experimentei "a" comprar pão daquele.

4. Experimenta "a" comprar pão daquele.

Do ponto de vista descritivo, é um uso bastante curioso, que  as fontes normativas consultadas não registam, o que sugere que é muito marginal e, portanto, não se recomenda na língua culta.

Pergunta:

«Depois quero ver se vão reclamar do quê...»

Esta frase está gramaticalmente correcta?

Obrigado.

Resposta:

A frase está incorreta, porque, sendo a sequência «se vão reclamar do quê» uma interrogativa indireta, não se aceita neste tipo de construção a coocorrência de se, uma conjunção subordinativa completiva1, e do interrogativo «o quê».

Sendo assim, para estar correta, a frase poderá ter as seguintes formulações (a expressão é que parece opcionalmente, mas é recorrente na oralidade):

1. Depois quero ver do que vão reclamar.

2. Depois quero ver do que é que vão reclamar.

Em 1 e 2, é igualmente possível empregar que em lugar de o que: «Depois quero ver de que (é que) vão reclamar.»

Um terceira formulação correta será empregar apenas a conjunção se, o que obriga a que o complemento («do quê») do verbo reclamar deixe de ter forma interrogativa para encerrar uma forma indefinida («alguma coisa»):

3. Depois quero ver se vão reclamar de alguma coisa.2

Quanto ao verbo reclamar, esclareça-se que este é usado com a preposição de, como acontece na frase em questão, quando significa «queixar-se», «lastimar-se», «criticar». Nesta última aceção, pode ocorrer com a preposição contra: «eles reclamam da comida» = «eles reclamam contra a comida». Usa...

Pergunta:

Que origem tem Murfacém? É o nome de um lugar na freguesia onde moro. Li que significa «barbeiro». Será mesmo assim?

Obrigado.

Resposta:

Em Almada – Toponímia e História (Câmara Municipal de Almada, 2003, p. 168), o autor, R. H. Pereira de Sousa considera de pouco crédito a etimologia que interpreta Murfacém como evolução de um vocábulo árabe que significa «barbeiro».

José Pedro Machado, no seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, considera tratar-se de um topónimo de «origem obscura, provavelmente arábica», sugerindo a seguinte análise: (U)mm ul-hasān = «a (aldeia ou qualquer outra propriedade fem. em árabe) de Haçan». Segundo o mesmo dicionário, Haçan ou Haçane tem origem no adjetivo hasān, «belo, bom» e é um antropónimo árabe que se tornou muito vulgar «pelo facto de assim se ter chamado um dos filhos de Fátima e de Ali [respetivamente, filha e genro de Maomé]» (idem, s.v. Haçane).