Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Porque será que certo tipo infame de trabalhos governamentais, conhecidos por "tachos", nos quais (se diz que) não se trabalha e se ganha muito, têm esse nome? De onde surgiu?

Resposta:

Para a elaboração desta resposta, não se encontrou explicação cabal da origem das expressões «ter um tacho», «arranjar um tacho» e outras semelhantes, em que tacho ocorre na aceção de «emprego muito bem pago mas pouco ou nada trabalhoso» (dicionário de português da Porto Editora, na Infopédia). No entanto, sendo tacho interpretável, por metonímia (ou melhor sinédoque), como «(toda) a comida», é de inferir que «ter o tacho» acaba por ser depois, por metáfora, o mesmo que «ter um privilégio por mera sorte ou sem grande merecimento». Estas observações são confirmadas pelo que, sobre tacho, Afonso Praça diz no seu Novo Dicionário de Calão (Lisboa, Casa das Letras, 2005; manteve-se a ortografia original):

«Diz-se de uma boa posição profissional (bem paga), insinuando por vezes que se chegou a ela de forma suspeita. [Aquele gajo é que arranjou um belo tacho, desde que se inscreveu no partido]; comida; refeição. [O que ganho é muito pouco, mal dá para o tacho]; [«(...) andava de redacção em redacção a espalhar artigos que às vezes não saíam porque, segundo ele, os gajos que estavam agarrados ao tacho faziam as suas manobras. (...), Dinis Machado, O que Diz Molero.]

Pergunta:

O correto é dizer «deixei à Joana recado à Maria», ou «deixei com a Joana recado à Maria»?

Eu poderia dizer, simplesmente, que deixei recado à Maria, mas quero explicitar a quem incumbi de transmitir à Maria o recado que lhe deixei. Aqui, no Brasil, dizemos, comumente, «deixei com a Joana recado à Maria», mas acredito que esta forma não seja adequada à norma padrão do português, seja brasileiro, seja europeu, pois quem deixa algo o deixa a alguém, e não com alguém, salvo melhor juízo.

Procurei exemplos em corpos linguísticos (prefiro esta forma ao plural latino corpora: é tradução correta?) do português, mas encontro sempre «deixar recado a alguém», sem que se explicite a/com quem se deixou o recado a outrem.

Resposta:

O verbo deixar tem um alto grau de polissemia e, portanto, é natural que, entre os seus vários usos sintáticos, possam ocorrer certas interferências. No sentido de «dar, entregar», os dicionários de verbos (p. ex. Dicionário Houaiss) indicam que o destinatário é marcado como um objeto indireto, isto é, como um complemento introduzido pela preposição a, o que faz de «deixei à Joana recado à Maria» uma frase indiscutivelmente correta.

No entanto, há dois pontos a considerar:

1. Sobre a aceitabilidade de a preposição com poder substituir a na frase em questão, observe-se que, se o objeto direto for realizado por uma expressão nominal que refira uma pessoa, é correto empregar com, sendo o complemento preposicionado interpretável como o mesmo que «na companhia de»:

(a) « Também pensara que o menino se acabasse, morresse. Voltando para o Araticum, quis trazê-lo para junto de si. A mulher metera na cabeça deixá-lo com o padre. E que ele ficasse por lá mesmo» (José Lins do Rego, Pedra Bonita, 1938, in Corpus do Português).

Esta construção pode ser transposta de modo a realizar o objeto direto com um substantivo de denotação abstrata e o objeto indireto com um substantivo concreto aplicável a pessoas:

(b) «O senhorio perseguia-o; ele fugia e deixava com a mulher o encargo de explicar os atrasos» (Lima Barreto, Clara dos Anjos, idem).

Não se pode dizer que esteja errado este uso, não atestável em textos de Portugal a partir da consulta do Corpus de Po...

Pergunta:

Na frase em português «eu me sinto bem», o verbo é reflexivo, mas no inglês a frase fica assim: I feel good. A lógica no português é que neste caso a pessoa é praticante e vítima da ação ao mesmo tempo, mas no inglês não. Falando de uma maneira não gramatical, por que no português o verbo é reflexivo, e no inglês não? Por que existe a diferença na forma de pensar na ação (sentir) nessas duas línguas? A lógica não deveria ser a mesma?

Resposta:

As línguas e as famílias de línguas têm padrões categoriais próprios e, portanto, cada qual pode revelar a sua lógica interna. Quer isto dizer que, no português, como noutras línguas românicas, sentir-se tem um se que não tem função reflexiva, tal como acontece em enervar-se, irritar-se ou lembrar-se. Nestes casos, os gramáticos e linguistas consideram que o se é antes a marca de um estado emocional ou de uma atividade mental se limitarem ao sujeito que os experimenta, fazendo os verbos perderem a sua transitividade.

Esta perda de transitividade fica patente, quando se observa que este se – que se pode chamar pseudorreflexo – não é totalmente compatível com o seu reforço por expressões como «a si próprio/mesmo», ao contrário do que acontece com os verbos verdadeiramente reflexos:

1. ? sinto-me bem a mim próprio

2. OK, lavo-me bem a mim próprio

Em 1, o ponto de interrogação indica que a conjugação pronominal de sentir-se mostra dificuldade em combinar-se com «a mim próprio», enquanto em 2 a mesma associação é totalmente aceitável, apontando para que apenas lavar tem um uso verdadeiramente reflexivo, isto é, um uso em que o agente da frase é também paciente da ação expressa pelo verbo. Além disso, note-se que 2 se presta a traduzir-se em inglês como «I wash myself» (pelo menos, em certos contextos1, se não se preferir «I shower/bathe», que parecem mais frequentes), enquanto «eu sinto-me» não encontra construção reflexa correspondente em inglês e transpõe-se nesta língua intransitivamente («I feel well/good»).

1 N. E.

Pergunta:

Qual a expressão correta: «ao fim e ao cabo» ou «no fim e ao cabo»? Os dicionários e gramáticas que tenho consultado apresentam apenas a primeira destas expressões, que é também aquela que mais se lê e ouve. No entanto, parece-me mais lógica e correta a segunda, pois, ao desmontarmos a redundância que a expressão procura, ficamos com as expressões isoladas «no fim» e «ao cabo» (redução de «ao cabo de»), ambas corretas. Da desmontagem da primeira expressão, resulta o primeiro membro «ao fim», que não consigo considerar correta. "No fim de contas", em que ficamos?

Resposta:

É possível alterar a expressão tal como se apresenta na pergunta, se assim se fizer questão, mas trata-se de uma correção que, numa apropriação do dizer do consulente, no fim de contas... se dispensa.

Com efeito, as expressões fixas não costumam exibir a congruência lógico-semântica ou sintática que se verifica na construção livre de sintagmas e de frases. Com efeito, as expressões fixas são assim chamadas por serem sintagmas que cristalizaram certos usos do passado e se usam muitas vezes como blocos pouco ou nada sujeitos a variações. Sendo assim, o uso que se fixou e generalizou tem a forma «ao fim e ao cabo» (cf. fim no dicionário da Academia de Ciências de Lisboa e «ao fim e ao cabo» em Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas- Português de António Nogueira Santos), pelo se afigurará estranho empregar a alternativa proposta, por mais consistente ela seja, lógica ou semanticamente.

Não obstante, cabe assinalar que, sobre a locução em causa, existia em meados do século passado doutrina normativista que a censurava – cf. Vasco Botelho de Amaral, Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português e Rodrigo de Sá Nogueira, Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem –, pelo facto de constituir um castelhanismo – al fin y al cabo (cf. fin no dicionário da Real Academia Española). Em alternativa, recomendava-se o emprego de «por fim», «ao cabo», finalmente (sobre a origem da expressão, consulte-se também esta resposta).

Pergunta:

Porquê o plural quando se fala de eleições? Na do Presidente da República, vejo a possibilidade de se argumentar com a hipótese de segunda volta. Nas municipais, por serem município a município. Mas nas parlamentares (legislativas)?

Resposta:

Pelo menos, em Portugal, o uso fixou o plural, talvez mais porque se tem em mente a existência de eleições em geral, que se repetem periodicamente. Mas, no caso das eleições legislativas, também se pode argumentar de maneira semelhante à que se apresenta na pergunta a respeito das presidenciais e das autárquicas: são eleições, porque vários deputados são eleitos.