Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra cabo da vassoura (por exemplo) é homónima da palavra Cabo (de Cabo Verde ou cabo das Tormentas).

Obrigado.

Resposta:

Trata-se efetivamente de palavras homónimas, que têm etimologias e convergiram na mesma forma (palavras convergentes).

O cabo que se associa à palavra vassoura vem do latim tardio capŭlum, i, «corda para laçar, prender ou guiar animais, especialmente o cavalo», substantivo que derivou do verbo latino capĕre", «pegar, apanhar, agarrar» (Dicionário Houaiss). No português medieval, o termo teve as formas caboo e cabre (séc. XV); noutras línguas europeias, o mesmo vocábulo latino deu origem ao italiano cappio, «nó corrediço», ao francês câble e ao espanhol cable (idem). A palavra latina, pelo vocábulo náutico normando cable, «cabo, amarra», passou ainda ao inglês, como cable, ao alemão, como Kabel, e ao neerlandês, como kabel (idem).

O substantivo homónimo cabo, entendido como «ponta ou porção de continente que avança mar adentro», é uma das palavras que constituem o topónimo Cabo Verde. Como substantivo comum, cabo vem do latim caput, ĭtis, «cabeça, parte superior, bico, ponta, cabo, extremidade», através do latim vulgar capus, i, «do qual se originaram os vocábulos românicos correlatos romeno cap, italiano capo, engadinês ko, friulano kaf, francês chef, provençal e catalão cap, espanhol e português cabo, todas com ampla diversificação semântica» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Sei que se usa travessão seguido de vírgula quando a frase o exige. Por exemplo:

«Em se tratando de crime – e disso entendo bem –, não devemos ser lenientes.»

A minha dúvida é se podemos omitir a vírgula em casos como esse. Entendo que ela é gramaticalmente correta, mas pessoalmente acho muito feio. Para 1) uma pontuação visualmente mais limpa, e 2) como os travessões já quebraram a frase de qualquer maneira e separaram a primeira oração («Em se tratando de crime») da segunda («não devemos ser lenientes»), eu creio que não seria uma grande heresia omitir a vírgula. Isso procede?

Muito obrigada!

Resposta:

Compreende-se a argumentação exposta, mas o uso de travessões é funcionalmente semelhante ao dos parênteses, o que significa que do mesmo modo que, numa sequência como «em se tratando de crime (e disso entendo bem), não devemos ser lenientes»*, a vírgula segue o parêntese que fecha, também numa sequência em que se aplicam os travessões se deverá pôr vírgula após o travessão que fecha a sequência destacada.

Embora não seja este um procedimento formulado em termos obrigatórios, a verdade é que ele é seguido geralmente, como, aliás, confirmam algumas obras, por exemplo, Falar Melhor, Escrever Melhor (Lisboa, Seleções do Reader's Digest, 1991, p. 120), no capítulo "Como adquirir um maior domínio da linguagem", da autoria de Tereza Moura Guedes (manteve-se a ortografia original):

«Uma dúvida mais que por vezes se levanta é a da colocação da vírgula a seguir a um travessão ou a um parêntese. Isso é correcto quando a palavra que imediatamente precede o primeiro travessão ou o primeiro parêntese deva ser seguida pela vírgula. Nesses casos, é só após o grupo de palavras isolado pelos travessões ou pelos parênteses que se põe a vírgula, dado que esse grupo de palavras se relaciona com o que está para trás: "Quem diria que o António Ouriço, depois de morto — excogitava o tio Romualdo —, havia de arregimentar toda aquela fúria!" (Urbano Tavares Rodrigues, AM**, 64)»

Sendo assim, na frase em questão, a vírgula justifica-se, mesmo depois do segundo travessão, porque a oração «em se tratando de crime», a que se refere a sequência entre travessões,...

Pergunta:

Acabo de ler a seguinte frase: «Ela irrompeu sobre nós de modo ameaçador».

Pergunta: «irromper sobre» faz algum sentido? «Soa-me» francamente mal.

Muito obrigado!

Resposta:

Não é possível confirmar a impressão do consulente.

O verbo irromper pode selecionar um complemento de natureza locativa ou temporal:

1. Os meninos largaram a brincadeira e irromperam na sala (abonação do Dicionário Houaiss) – valor locativo (lugar onde);

2. A água irrompeu da parede em jorros (abonação adaptada, idem) – valor locativo (lugar donde)

3. A violência policial irrompeu logo nos primeiros minutos do comício (abonação adaptada, idem) – valor temporal.

É verdade que na maior parte das fontes consultadas não se recolhem exemplos do uso de sobre associado a irromper, mas, considerando que irromper tem por sinónimos arrojar-se e precipitar-se (cf. idem e Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado), verbos compatíveis com essa preposição, afigura-se legítimo que ela também se associe ao verbo em causa. Aliás, pode-se atestar este uso, por exemplo, num escritor da contemporaneidade, tido por excelente cultor da língua culta:

3. «Mas sobre o tremor íntimo irrompeu uma vulcânica consternação, também ela interior, que apenas se manifestou no gesto de apertar o nó da gravata» (Mário de Carvalho, Era Bom que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunto, 1995, in

Pergunta:

Em sentido restrito, gostaria de saber se se deve escrever «É uma sorte que ele nunca note a cor dos olhos dos outros» ou «é uma sorte que ele nunca note na cor dos olhos dos outros». Em sentido mais lato, gostaria de saber quais são as possíveis regências do verbo notar.

Muito obrigado!

Resposta:

O verbo notar é frequentemente empregado de acordo com os seguintes esquemas:

I – «alguém notar alguma coisa em alguma coisa»;

II – «alguém notar em alguma coisa que...»;

III – «alguém notar alguma coisa»;

IV – «alguém notar que...»

É o esquema em III que permite uma variante com complemento preposicionado, por analogia com a sintaxe de um verbo sinónimo, reparar («reparar em alguém/alguma coisa»). Embora não seja frequente – pelo menos, na escrita não parece ter favor (para a elaboração, foram consultados corpora textuais) –, este uso com complemento preposicionado é possível e não se poderá dizer que esteja incorreto. Mesmo assim, tendo em conta a escassez de atestações do referido uso preposicionado alternativo a III, é de recomendar que neste tipo de construção se use o complemento direto (isto é, o complemento não preposicionado), até, porque atendendo a IV, ocorre sempre «notar que...», e nunca «notar em que...».

Pergunta:

Estou a fazer uma análise de conteúdo do discurso jornalístico sobre o crime. Deparo-me frequentemente com a expressão «morta a tiros de caçadeira» e ainda «disparou a matar». Para além da violência associada às expressões, fico com curiosidade sobre se, do ponto de vista da língua portuguesa, estarão corretamente formuladas.

Agradeço, desde já, a vossa atenção.

Resposta:

As duas expressões estão corretas.

Assim como se diz e escreve «matar à pancada» (=«espancar até à morte»; cf. Dicionário Esrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa de Énio Ramalho) e «ferir a tiro», também é legítimo usar «matar a tiro» ou «matar a tiros» – é frequente as locuções virem determinada pela designação da arma donde provêm os projéteis:

1. «João Português, um velho, pobremente vestido, ferido a tiro na rua da Praça da Figueira. Chegou ao hospital morto» (Joaquim Paço d'Arcos, Diário de Emigrante, 1936, in Corpus do Português);

2. «Poucos dias depois, também na região Oeste, um comerciante foi assassinado a tiros de pistola, em Usseira, Obidos.» (Diário de Leiria, "Crimes de Agosto", 29/08/1997, idem).

Quanto a «disparar a matar» é tão aceitável como «atirar a matar», tendo estas duas expressões em comum a locução «a matar», no sentido de «para matar», conforme registo do dicionário de Énio Ramalho, que dá a seguinte abonação:

3. «matar, a. Os bandidos, quando se viram cercados, atiravam a matar (para matar).»

Trata-se de formas de dizer a que geralmente se atribui certa crueza, que advém justamente das situações de extre...