Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O correto é dizer «deixei à Joana recado à Maria», ou «deixei com a Joana recado à Maria»?

Eu poderia dizer, simplesmente, que deixei recado à Maria, mas quero explicitar a quem incumbi de transmitir à Maria o recado que lhe deixei. Aqui, no Brasil, dizemos, comumente, «deixei com a Joana recado à Maria», mas acredito que esta forma não seja adequada à norma padrão do português, seja brasileiro, seja europeu, pois quem deixa algo o deixa a alguém, e não com alguém, salvo melhor juízo.

Procurei exemplos em corpos linguísticos (prefiro esta forma ao plural latino corpora: é tradução correta?) do português, mas encontro sempre «deixar recado a alguém», sem que se explicite a/com quem se deixou o recado a outrem.

Resposta:

O verbo deixar tem um alto grau de polissemia e, portanto, é natural que, entre os seus vários usos sintáticos, possam ocorrer certas interferências. No sentido de «dar, entregar», os dicionários de verbos (p. ex. Dicionário Houaiss) indicam que o destinatário é marcado como um objeto indireto, isto é, como um complemento introduzido pela preposição a, o que faz de «deixei à Joana recado à Maria» uma frase indiscutivelmente correta.

No entanto, há dois pontos a considerar:

1. Sobre a aceitabilidade de a preposição com poder substituir a na frase em questão, observe-se que, se o objeto direto for realizado por uma expressão nominal que refira uma pessoa, é correto empregar com, sendo o complemento preposicionado interpretável como o mesmo que «na companhia de»:

(a) « Também pensara que o menino se acabasse, morresse. Voltando para o Araticum, quis trazê-lo para junto de si. A mulher metera na cabeça deixá-lo com o padre. E que ele ficasse por lá mesmo» (José Lins do Rego, Pedra Bonita, 1938, in Corpus do Português).

Esta construção pode ser transposta de modo a realizar o objeto direto com um substantivo de denotação abstrata e o objeto indireto com um substantivo concreto aplicável a pessoas:

(b) «O senhorio perseguia-o; ele fugia e deixava com a mulher o encargo de explicar os atrasos» (Lima Barreto, Clara dos Anjos, idem).

Não se pode dizer que esteja errado este uso, não atestável em textos de Portugal a partir da consulta do Corpus de Po...

Pergunta:

Na frase em português «eu me sinto bem», o verbo é reflexivo, mas no inglês a frase fica assim: I feel good. A lógica no português é que neste caso a pessoa é praticante e vítima da ação ao mesmo tempo, mas no inglês não. Falando de uma maneira não gramatical, por que no português o verbo é reflexivo, e no inglês não? Por que existe a diferença na forma de pensar na ação (sentir) nessas duas línguas? A lógica não deveria ser a mesma?

Resposta:

As línguas e as famílias de línguas têm padrões categoriais próprios e, portanto, cada qual pode revelar a sua lógica interna. Quer isto dizer que, no português, como noutras línguas românicas, sentir-se tem um se que não tem função reflexiva, tal como acontece em enervar-se, irritar-se ou lembrar-se. Nestes casos, os gramáticos e linguistas consideram que o se é antes a marca de um estado emocional ou de uma atividade mental se limitarem ao sujeito que os experimenta, fazendo os verbos perderem a sua transitividade.

Esta perda de transitividade fica patente, quando se observa que este se – que se pode chamar pseudorreflexo – não é totalmente compatível com o seu reforço por expressões como «a si próprio/mesmo», ao contrário do que acontece com os verbos verdadeiramente reflexos:

1. ? sinto-me bem a mim próprio

2. OK, lavo-me bem a mim próprio

Em 1, o ponto de interrogação indica que a conjugação pronominal de sentir-se mostra dificuldade em combinar-se com «a mim próprio», enquanto em 2 a mesma associação é totalmente aceitável, apontando para que apenas lavar tem um uso verdadeiramente reflexivo, isto é, um uso em que o agente da frase é também paciente da ação expressa pelo verbo. Além disso, note-se que 2 se presta a traduzir-se em inglês como «I wash myself» (pelo menos, em certos contextos1, se não se preferir «I shower/bathe», que parecem mais frequentes), enquanto «eu sinto-me» não encontra construção reflexa correspondente em inglês e transpõe-se nesta língua intransitivamente («I feel well/good»).

1 N. E.

Pergunta:

Qual a expressão correta: «ao fim e ao cabo» ou «no fim e ao cabo»? Os dicionários e gramáticas que tenho consultado apresentam apenas a primeira destas expressões, que é também aquela que mais se lê e ouve. No entanto, parece-me mais lógica e correta a segunda, pois, ao desmontarmos a redundância que a expressão procura, ficamos com as expressões isoladas «no fim» e «ao cabo» (redução de «ao cabo de»), ambas corretas. Da desmontagem da primeira expressão, resulta o primeiro membro «ao fim», que não consigo considerar correta. "No fim de contas", em que ficamos?

Resposta:

É possível alterar a expressão tal como se apresenta na pergunta, se assim se fizer questão, mas trata-se de uma correção que, numa apropriação do dizer do consulente, no fim de contas... se dispensa.

Com efeito, as expressões fixas não costumam exibir a congruência lógico-semântica ou sintática que se verifica na construção livre de sintagmas e de frases. Com efeito, as expressões fixas são assim chamadas por serem sintagmas que cristalizaram certos usos do passado e se usam muitas vezes como blocos pouco ou nada sujeitos a variações. Sendo assim, o uso que se fixou e generalizou tem a forma «ao fim e ao cabo» (cf. fim no dicionário da Academia de Ciências de Lisboa e «ao fim e ao cabo» em Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas- Português de António Nogueira Santos), pelo se afigurará estranho empregar a alternativa proposta, por mais consistente ela seja, lógica ou semanticamente.

Não obstante, cabe assinalar que, sobre a locução em causa, existia em meados do século passado doutrina normativista que a censurava – cf. Vasco Botelho de Amaral, Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português e Rodrigo de Sá Nogueira, Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem –, pelo facto de constituir um castelhanismo – al fin y al cabo (cf. fin no dicionário da Real Academia Española). Em alternativa, recomendava-se o emprego de «por fim», «ao cabo», finalmente (sobre a origem da expressão, consulte-se também esta resposta).

Pergunta:

Porquê o plural quando se fala de eleições? Na do Presidente da República, vejo a possibilidade de se argumentar com a hipótese de segunda volta. Nas municipais, por serem município a município. Mas nas parlamentares (legislativas)?

Resposta:

Pelo menos, em Portugal, o uso fixou o plural, talvez mais porque se tem em mente a existência de eleições em geral, que se repetem periodicamente. Mas, no caso das eleições legislativas, também se pode argumentar de maneira semelhante à que se apresenta na pergunta a respeito das presidenciais e das autárquicas: são eleições, porque vários deputados são eleitos.

Pergunta:

Qual o termo correto: "piche" ou "espiche"?

Resposta:

São palavras diferentes, com origens diferentes, como a seguir se expõe:

– O substantivo piche designa uma «substância resinosa, de cor negra e muito pegajosa, que se obtém a partir da destilação do alcatrão ou da terebintina»; tem origem no inglês pitch, termo que vem do latim pix, picis, o mesmo que pez (Dicionário Houaiss). A forma piche também pode significar «madeira de construção» (cf. dicionário da Porto Editora  e dicionário Priberam), mas, com este significado, será palavra diferente, por ser-lhe atribuída origem obscura.

– O substantivo espiche – designa genericamente um pau aguçado ou uma estaca com diferentes funções e vem do latim spiculum, i, «ferro de lança ou dardo», um diminutivo de spicum, i, «espiga, propriamente ponta», por via popular (Dicionário Houaiss).