Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber qual a regência verbal do verbo roubar quando se indica a entidade roubada. Penso que haja uma diferença entre o português europeu (PE) e o português brasileiro (PB), no sentido de no PE a regência ser a e no PB a regência ser de.

Penso também que a é possível no PE, mas creio que com uma mudança de papel semântico, dando origem a uma frase distinta e com um foco diferente:

«Roubaram o doce ao menino.» — O menino foi vítima de um assalto (PE, impossível no PB).

«Roubaram o doce do menino.» — O menino foi vítima de um assalto (leitura PB), ou houve um assalto e foi levado o doce que pertencia ao menino –de Alvo para Fonte, talvez? – (leitura PE).

Obrigada pela atenção.

Resposta:

Pode-se confirmar que, no português do Brasil, se atesta o uso da preposição de na construção de um complemento oblíquo que parece ter os mesmos papeis temáticos que as construções só com complemento direto («roubar alguém») ou com complemento indireto introduzido pela preposição a («roubar algo a alguém»):

1. «Diziam que só roubava dos ricos [...]» (Maria Helena de Moura Neves, Guia de Uso do Português, 2003, s.v. roubar)

2. «Como é que tinha tido coragem para roubar de um homem como Seu Saldanha?» (Francisco Inácio Peixoto, Chamada Geral - Contos, 1982, in Corpus do Português)

Mas não se confirma que «roubaram um doce ao menino» seja impossível em PB, porque os registos dicionarísticos atestam o uso de «a alguém» (cf. roubar no Dicionário Houaiss). Também não se verifica que a leitura «foi levado o doce do menino» seja exclusiva do PB.

Em suma, «roubar alguma coisa de alguém» é um esquema sintático de roubar que pode ser mais característico do PB, mas tal não significa que só exista essa leitura ou que outros esquemas não sejam possíveis nessa variedade.

Pergunta:

Nos processos judiciais destinados a ordenar o internamento de pessoa portadora de anomalia psíquica esta é designada oficialmente por «internando» (género masculino) ou «internanda» (género feminino). Contudo, não encontro o vocábulo em qualquer dos dicionários que consultei.

Gostaria de saber se é correto o emprego dos referidos termos ou, em caso negativo, quais os mais ajustados para substituí-los.

Obrigado.

Resposta:

O termo internando, na aceção em causa, foi consagrado em Portugal pela Lei de Saúde Mental – Lei 36/98 de 24 de julho –, atualizada pela Lei n.º 101/99, de 26 de julho:

«c) Internando: portador de anomalia psíquica submetido ao processo conducente às decisões previstas nos artigos 20.º e 27.º»

Trata-se de um substantivo derivado do verbo internar, registado em várias aceções, entre elas, a relacionada com o confinamento numa espaço hospitalar, por exemplo, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa («pôr alguém numa instituição, com objetivos corretivos, terapêuticos, de assistência ou de formação»), a Infopédia («colocar em colégio, asilo, hospital ou instituição psiquiátrica») e no Dicionário Priberam («colocar alguém ou colocar-se por algum espaço de tempo numa instituição de saúde, de correção ou de assistência»).

A forma -ndo, que marca geralmente o gerúndio (internando), ocorre ainda em formas substantivais e adjetivais como educando, examinando, mestrando ou do...

Pergunta:

Se a forma verbal terminar em r, s, z, as consoantes desaparecem, o pronome assume a forma -lo, -la, -los, -las; exemplos:

– A roupa, não quero passar-la. – PASSÁ-LA

– O trabalho de casa? Não quero fazer-lo. – FAZÊ-LO

– O prato, não quero partir-lo. – PARTI-LO

Seria possível, por favor, que me expliquem a regra para que o mesmo não aconteça em casos como «faz-se» (não cai o Z)-

Muitíssimo obrigada.

Resposta:

As regras enunciadas na pergunta para o pronome átono -o/-a não se aplicam ao pronome se, e, portanto, antes desta forma, não há apagamento de nenhuma letra da forma forma verbal.

A razão para isto acontecer desta maneira deve-se a razões históricas.

Na língua medieval, os pronomes de 3.ª pessoa tinham as formas de complemento direto lo(s) e la(s), cujo l caía quando era intervocálico1:

1. passa-lo > passa-o

Contudo, depois de formas verbais acabadas em consoante, ocorria a assimilação das consoantes -r e -s ao do pronome:

2. quero passar-la > quero passal-la > quero passá-la

3. lavamos-lo > lavamol-lo > lavamo-lo

Mais tarde, este fenómeno também abrangeu a formas verbais acabadas em -z:

4. faz-lo > fal-lo > ele fá-lo

Contudo, se a forma verbal terminava em nasal, este som acabava por assimilar o l do pronome e originar -no, -na:

5. cantam-la > cantam-na

6. põe-la > põe-na

Estes fenómenos só afetam o pronome -o/-a e, portanto, não envolvem os restantes pronomes, incluindo se

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Pergunta:

Está correta a seguinte frase: «É a esta última visão que me filio»?

Resposta:

A frase está correta, porque o verbo filiar, «associar, vincular», constrói regência com a preposição a, como se confirma pelo Dicionário Houaiss de Verbos da Língua Portuguesa (2003): «Filiou-se às ideias do mestre»; «A associação filiara novos sócios a seu quadro» (exemplo da mesma fonte).

Em alternativa, o verbo filiar é compatível com a preposição em: «Filiou-se num novo movimento» [cf. J. Malaca Casteleiro (dir.), Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses, Lisboa, Texto Editora, 2007 e W. Busse, Dicionário Sintático de Verbos Portugueses, Coimbra, Livraria Almedina, 1995).

Cf. a conjugação do verbo filiaraqui.

Pergunta:

Urso é um substantivo, bebé é um substantivo, podendo este também ser adjectivo («imaturo»); logo, a minha pergunta é: deve escrever-se "ursos bebé" ou "ursos bebés"? Por exemplo, já vi escrito "estrelas bebé", "estrelas bebés", "trutas bebé", "gatos bebés", etc. Parece que não há uma regra de formação do plural quando o hífen não é utilizado. O que levanta outra questão: a utilização do hífen é obrigatória em nomes compostos?

Resposta:

Não há consenso acerca da morfologia e da ortografia de bebé nos casos em questão.

A palavra bebé é usada quer como substantivo quer como adjetivo. Quando associado a substantivos comporta-se como adjetivo, equivalente a «recém-nascido, imaturo, pequenino» e concorda no plural: «ursos bebés», «estrelas bebés», «trutas bebés», «gatos bebés». Este é o funcionamento e a ortografia que o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa atesta, sem grafar com hífen. No entanto, no Brasil, o Dicionário Houaiss (1:ª edição, de 2001, e edição de 2009) assinala o seguinte:

«seguindo outro substantivo, ao qual se liga por hífen, é um determinante específico e significa "recém-nascido", "com poucos dias ou meses" (panda-bebê, esquilos-bebês); vindo antes do substantivo, pode ligar-se ou não por hífen (bebê panda ou bebê-panda).»

Nem o atual Acordo Ortográfico nem os anteriores normativos facultam elementos que permitam identificar o uso mais adequado, pelo que, neste momento, se pode dizer que:

a) bebé tem plural quando associado a outro substantivo: urso bebé/ursos bebés;

b) na escrita, depois de um substantivo, pode figurar ou não com hífen: «ursos bebés» e ursos-bebés.

Observe-se, ainda assim, um caso que está dicionarizado como palavra autónoma, o de lua-bebé, cujo plural o Vocabulário Ortográfico Comum fix...