Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho constatado que há diferenças muito grandes entre o uso de persianas e estores em diferentes partes do país [Portugal].

Encontrei uma definição de persianas como constituídas por lâminas, normalmente externas para proteger do frio e/ou do sol, exatamente como costumo referir.

No entanto, nas várias pesquisas feitas, não encontro grande coerência entre os significados destas palavras nos diferentes livros/dicionarios/websites que consultei e tenho encontrado muita gente com uma identificação das mesmas exatamente ao contrário.

Será que me poderiam ajudar?

Resposta:

O caso relatado pelo consulente é próprio da variação regional da língua e pode ser exemplificativo de como nem sempre é possível atribuir a palavras semântica e referencialmente próximas definições válidas para o conjunto de comunidades que falam a mesma língua. É o que parece acontecer com persiana e estore nos territórios de Portugal, situação provavelmente generalizável a outros países de língua portuguesa.

A definição que o consulente dá de persiana é a que ressalta talvez mais familiar em Portugal: um painel protetor colocado no exterior de uma janela e constituído por lâminas imbricadas, de modo a facilitar a sua recolha, geralmente, por um mecanismo existente no interior da casa. Note-se, porém, que esta descrição é apenas uma das possibilidades de identificar uma persiana, atendendo à definição que dá o dicionário da Porto Editora (versão em linha, na Infopédia):

«1. peça composta por lâminas paralelas, fixas ou móveis, colocada no interior ou no exterior das janelas, que se destina a resguardar da luz do Sol e a impossibilitar a visão do exterior 2. peça constituída por lâminas de metal ou plástico que se enrolam e desenrolam por meio de um mecanismo adequado, e que se desce para tapar a luz»

Mesmo assim, querendo identificar protitipicamente aquilo a que, em Portugal, se tem chamado persiana, dir-se-ia que a imagem ao lado esquerdo seria um bom exemplo.

O termo estore é definido pelo referido dicionário de um modo mais vago, que permite identificá-lo à denotação de persiana:

«...

Pergunta:

Devemos dizer "avião desviado" ou "avião divergido" por motivos atmosféricos?

Obrigado.

Resposta:

A expressão «avião divergido» é uma alternativa a «avião desviado» pouco frequente e muito discutível na perspetiva da norma-padrão.

A forma divergido indicia uma tradução (demasiado) literal do inglês diverted, verbo inglês que ocorre no sentido de «desviar o rumo». Por exemplo, diz-se e escreve-se «the flight was diverted to Chicago», traduzível geralmente por «o voo foi desviado para Chicago», e não por «o voo foi divergido....» (cf. Linguee, s.v. diverted).

Compreende-se que a forma divergido até tenha utilidade, já que a expressão «avião desviado» pode ter dois significados: «que mudou de rota por questões de segurança» e «que mudou de rota por causa de assalto». Note-se, porém, que, apesar desta ambiguidade, continua a preferir-se a expressão «avião desviado», mesmo quando a causa em referência são as condições atmosféricas, como uma rápida consulta pela Internet pode confirmar. No momento em que se redigiu esta resposta, uma pesquisa Google facultava 3370 resultados para a expressão "avião desviado", enquanto "avião divergido" se ficava pelos 29 resultados.

 

Cf. Qual é a origem da palavra «avião»?

Pergunta:

«Com que, então, o maroto do tio Jonas enviava aquele montão de inutilidades sem ao menos apreciá-las completamente!?»

Gostaria de saber se está correta a frase acima, em especial quanto à pontuação e à expressão «com que então».

Obrigado.

Resposta:

 A pontuação não está totalmente correta, porque a locução «com que então» não deve apresentar vírgula a separar «com que» de «então».

«Com que então» constitui um marcador discursivo, que se escreve «com que então», sem vírgula interna mas com outra a delimitá-la do resto da frase:

«com que então (pop.): expressão que traduz uma suposição, dúvida, hipótese, e que significa: ao que parece, segundo consta.» (António Nogueira Santos, Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas – Português, Edições João Sá da Costa, 2006)

«com que então: c[om] que então, vais fazer uma viagem ao Brasil!... Quem me dera também poder ir (exprime surpresa ou admiração); c[om] que então, andas por aí a dizer coisas a meu respeito? Ora vamos pôr isso tudo em pratos limpos (exprime censura, atitude condenatória).» Énio Ramalho, Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, Livraria Chardron de Lello e Irmãos Editores, 1985)

 

N. E. (21/02/2019) – Assinale-se que a locução «com que então» também ocorre sem vírgulas a destacá-la do contexto frásico, sem que este uso constitua um erro: «Com que então a tua mãe continuou...

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da palavra Pícua. Moro na «casa da Pícua», existe perto do Porto uma Quinta da Pícua, que pertenceu à mesma família.

Recordo-me de ver, num dicionário muito antigo, que "pícua" tinha dois significados, «besta (arma)» e «sorvedouro de dinheiro (algo onde se gasta dinheiro continuamente , sem fim)».

Se possível, gostaria de saber qual o dicionário onde consta "pícua" e se existem outros significados para esta palavra.

Muito obrigado.

Resposta:

Não conseguimos identificar o dicionário a que se refere o consulente, nem desvendar a origem e a etimologia do topónimo em questão.

Noutros dicionários, não se atesta o registo de "pícua". No entanto, encontra-se a forma picuá, palavra de origem tupi (grupo linguístico ameríndio, que se encontra no Brasil), com o significado de «cesto, saco». Será "pícua" uma variante de picuá, ou trata-se do caso contrário? Ou terá Pícua que ver com Picoa, forma feminina de Picão, nome usado como alcunha ou apelido (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 2003, s. v. Picoas)? De momento, não é possível reunir elementos para uma resposta.

Acrescente-se que não se regista picuá na aceção de «besta (arma)». Já quanto a ser usada como «sorvedouro de dinheiro», talvez pela noção de «dinheiro» se encontre alguma afinidade semântica, porque está dicionarizado picuar, «guardar (em picuá), acumular», um verbo derivado de picuá (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001). Mas fica por esclarecer como de «acumular» se passou ao sentido contrário, «gastar».

Pergunta:

Devemos escrever «roçaste no meu casaco», ou «roçaste o meu casaco»?

Resposta:

O verbo roçar , na aceção de «tocar ao de leve alguém ou alguma coisa», ocorre em duas construções:

a) com complemento direto:«Os lábios dele roçavam os meus» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, 2001, s. v. roçar);

b) com um complemento oblíquo (isto é, um complemento introduzido por preposição): «O gato roçou nas minhas pernas» (idem, ibidem).

Outros exemplos, colhidos na literatura do século XIX:

(1) «O seu braço roçava o ombro do pároco: Amaro sentia o cheiro da água-de-colônia que ela usava com exagero.» (Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro, 1875)

(ii) «Não foi, não! Este burel que há tantos anos me roça no corpo, estes cilícios que mo desfazem, os jejuns, as vigílias, as orações nada obtiveram ainda de Deus» (Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, 1846; note-se que o me tem valor de posse em relação «corpo», pelo que não faz parte da sintaxe do verbo).

O verbo em apreço pode ainda ser usado reflexivamente e, nesse ca...