Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Desde criança que oiço o termo “espenéfico”, com o sentido de «espevitado, atrevido, pretensioso»: «Andas muito espenéfico – disse a mãe ao filho, já farta de o ver armado em engraçadinho.»

Com espanto, não encontrei este vocábulo em nenhum dos vários dicionários que consultei. No entanto, numa busca no Google, esta palavra aparece utilizada por algumas pessoas, duas das quais afirmam «estar em todos os dicionários»!...

 

[Exemplos:]

– «Em tempos do "Botequim" à Graça, ouvi a Natália Correia dizer a propósito da actual jurada do Prémio Pessoa: "o quê? Essa espenéfica"?
Pensei que se tratava de um regionalismo açoriano. Mas afinal a palavra, muito adequada, está em todos os [d]icionários de [p]ortuguês. [...]

O significado anda mais ou menos na área semântica d[e]: presumido, pretensioso no aspecto e nos modos.

E está realmente em todos os dicionários.» (blogue Insónia, 29/05/2006)

– «A Joanita está um bocado espenéfica, não deve interessar a partido nenhum. Tem que ir à psicanálise e pedir perdão ao Guru Louçã.» (blogue Arrastão, 01/08/2009)

– «Nunca te calas e nem ouves o nome das pessoas, sê menos espenéfica.» (página de Facebook)

– «Ele queria aquele, claro, mas mesmo assim foi buscar outro e a espenéfica foi atrás! (blogue Resposta:

As formas apresentadas na pergunta não encontram registo nos dicionários consultados para a elaboração da presente resposta1. Torna-se, portanto, difícil identificar a forma mais correta, perante a variação evidenciada pelos exemplos remetidos pelo consulente, a que se junta mais outro, extraído do Corpus do Português de Mark Davies: 

(1) «A convocação era urgente tendo até o Cabeça de Vaca almoçado no seu gabinete dividindo uns bolos melados com a dactilógrafa espernéfica-possidónia.» (Rúben A. Páginas, 1988)

Há, contudo, registo dicionarístico de espanéfico, «muito espalhafatoso no trajar, no andar, no falar» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; ver também dicionário da Porto Editora na Infopédia e Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966, de Rebelo Gonçalves)2, sentido não exatamente coincidente com o de  espenéfico/

Pergunta:

Os exemplos aduzidos por Napoleão Mendes de Almeida no seu Dicionário de Questões Vernáculas não apresentam o verbo parecer flexionado na 1.ª e na 2.ª pessoa do singular e do plural.

Uma vez que procurei em diversas gramáticas exemplos nas pessoas mencionadas, dentre elas, na d[e] Mira Mateus [Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial caminho, 2003], desejava saber se vocês poderiam aduzir exemplos de autores portugueses que construíram esse verbo na 1.ª e na 2.ª pessoa do singular e do plural com infinitivo [...] não flexionado, como, nestes exemplos: «Eu pareço querer mudar o mundo.»; «Tu pareces agir como Bacharel de Cananeia.»

Por último desejava ainda saber se esse emprego é lídimo português ou se é já brasileiro, [e]m razão de as [...] completivas equivalerem a «Eu pareço que quero mudar o mundo» [e] «Tu pareces que ages como Bacharel de Cananeia». Não haveria porventura um engano, já que o pronome eu não é sujeito de pareço, mas de quero, de querer, da mesma maneira que o tu não é sujeito de pareces, mas de ages, de agir.

Mais uma vez os meus agradecimentos ao vosso trabalho, de que tanto o Brasil precisa.

Resposta:

Não há qualquer erro em «Eu pareço querer mudar o mundo», nem em «Tu pareces agir como Bacharel de Cananeia».

Tal como acontece com a 3.ª pessoa do singular e do plural («ela parece querer mudar o mundo», «elas parecem agir como bacharéis de Cananeia»), é possível conjugar o verbo parecer na 1.ª e 2.ª pessoas do singular e do plural, numa construção conhecida como elevação do sujeito (o que explica que, nos exemplos em questão, os pronomes eu e tu se relacionem com os infinitivos querer e agir, que ocorrem nas orações subordinadas). Trata-se de um uso que ocorre há muito tempo tanto em Portugal como no Brasil, por exemplo, em textos literários e jornalísticos dos séculos XIX e XX (pesquisa feita no Corpus do Português de Mark Davies):

(1) (a) «[...] eu, publicando as suas Cartas pareço lançar estouvada e traiçoeiramente o meu amigo, depois da sua morte, nesse ruido e publicidade a que ele sempre se recusou [...] (Eça de Queirós, Correspondência de Fradique Mendes, 1900)

   (b) «Já estou me acostumando a sentir emoções fortes, como esta. Acho que não pareço ter 93 anos", conta o aniversariante.» ("Crianças homenageiam Capiba", 29/10/1997)

(2) (a) «[...] tu, que me recordas a minha pobre Beatriz, que pareces ter herdado os modos, os gostos, os sentimentos dela [....

Pergunta:

Tenho esta dúvida: qual a razão de o género nos cardinais um/uma e dois/duas ser o masculino e o feminino e nos restantes haver apenas o neutro?

Obrigado.

Resposta:

É uma situação herdada do latim, língua em que os numerais denotados pelos algarismos 1, 2 e 3 tinham variação em três géneros, masculino (m.), feminino (f.) e neutro (n.):

ūnus (m.), ūna (f.), ūnum (n.) – "um, uma"

duo (m.), duae (f.), duo (n.) – "dois, duas"

trēs (m. e f.), tria (n.) – "três"

Os numerais de 4 a 100 não tinham variação de género; mas, de 200 a 900, voltava a existir o contraste entre os três géneros (ex.: ducenti, ducentae, ducenta "duzentos/duzentas")1.

Nas línguas românicas, o masculino e o neutro dos numerais representados por 1 e 2 convergiram na mesma forma; quanto ao feminino, o tratamento pode variar de língua para língua. Assim:

– manteve-se o contraste entre masculino e feminino no numeral cardinal denotado pelo algarismo 1: um/uma (português); uno/una (castelhano); un/una (catalão); un/une (francês); uno/una (italiano); un/o (romeno);

– línguas bem próximas do português simplificaram os cardinais correspondentes a 2: dos (castelhano), deux (francês). Mas muitas outras, como o português (com o galego) mantiveram as formas de masculino e feminino: dois/duas (português; dous/duas em galego); dos/dues (catalão); doi/două (romeno);

– o numeral correspondente a 3 deixou de apresentar qualquer contraste: três (português); tres (castelhano, catalão); trois (francês); tre...

Pergunta:

Existe a expressão «pôr no claro» («esclarecer»)? Ou a forma correta seria «pôr a claro» ou «às claras»?

Resposta:

Não é certo que «pôr no claro» constitua uma expressão estável e fixa, que já tenha registo dicionarístico, com o sentido indicado na pergunta*.

Não podendo dizer-se que se trata de uso incorreto, existem, em alternativa, construções com o advérbio claramente e com o adjetivo claro, que são menos suscetíveis de causar estranheza ou motivar censura, como é o caso de «mostrar claramente» e «deixar claro», expressões geralmente seguidas de uma oração («mostrar claramente/deixar claro que...»).

Contam-se ainda as locuções «às claras» (= «abertamente, sem esconder dos outros») e «pelo claro» (= «com clareza, sem disfarce, expressamente»). Note-se, porém, que «passar em claro» ou «deixar em claro» é «omitir».

 

*A palavra claro pode ocorrer como sinónimo de clareira e vão, no sentido de «parte mais iluminada de um objeto» e «espaço livre, desimpedido» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Alguns elementos recolhidos na Internet permitem supor que se usa «no claro» não só com pôr, mas também com o verbo deixar, numa construção metafórica cujo significado oscila entre revelar ou esclarecer:

(1) «Põe no claro a nossa dança inventada – talvez  patética, talvez heroica – para que possamos perguntar a nós mesmos se queremos seguir inteiros nela.» ("Variações em torno da  'jazz-performance'", in

Pergunta:

Qual a proveniência da palavra rupestre, ou seja, [relativo a] a pinturas antiquíssimas em cavernas.

Resposta:

Uma etimologia da palavra rupestre encontra-se exposta no Dicionário Houaiss:

«francês rupestre (1812) "que se refere à parede de rocha, encosta de rochedo, precipício" < latim científico rupestris (1783) < latim rupes, is "rochedo" [...].»

Com o sufixo -estr(e), constroem-se outros adjetivos derivados como alpestre, campestre, equestre, pedestre, rupestre, silvestre ou terrestre.