Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sei que a expressão habitual é «estou a caminho», mas eu tenho o hábito de dizer «vou a caminho».

É correcto dizer-se «vou a caminho» (de um lugar)?

Exemplo: «Vou a caminho do trabalho»

Desde já obrigada pela atenção.

Resposta:

Está correta a frase «vou a caminho do trabalho».

Do ponto de vista semântico, não se identificam restrições que invalidem a frase e também não parece haver preceito que desaconselhe o emprego de ir com «a caminho». Esta expressão combina-se com diferentes verbos, alguns de movimento: «estar a caminho», «pôr-se a caminho», «meter-se a caminho», «seguir a caminho», «vir a caminho», «ir a caminho».

Exemplos da autores literários:

(1) «Percebo, agora percebo muito bem: vou a caminho do meu escritório, estou no Brasil, em...» (José Rodrigues Miguéis, Páscoa Feliz, 1932)

(2) «Quando a família de Santa Eulália ia a caminho de casa com a afilhada [...]» (Camilo Castelo Branco, "Maria Moisés", in Novelas do Minho, 1875-1877)

Pergunta:

Poderiam confirmar-me a evolução fonética de dous>dois? Houve alguma epêntese do i? É apenas um processo de regularização da escrita? É esta a minha dúvida.

Obrigado pelo vosso trabalho.

Resposta:

Na passagem de dous (hoje um arcaísmo) a dois, regista-se uma alteração de segmentos, mais especificamente, uma dissimilação.

O ditongo ou – ainda pronunciado em várias regiões do norte de Portugal – tem o problema de as vogais constitutivas apresentarem um timbre e um grau de abertura próximos. Acontece que em vários dialetos portugueses este ditongo ou se monotongou (isto é, contraiu-se numa única vogal, fazendo com que roupa hoje soe "rôpa"), ou se alterou no sentido de uma diferenciação – foi o sucedido com ou > oi.em palavras como coisa, doido e dois.

Procurando manter o ditongo, muitos falantes optaram pela semivogal que, no sistema fonológico português, estava em alternativa a u, o mesmo é dizer i (os ditongos em português têm sempre ou a semivogal u, ou a semivogal i). Esta semivogal permite a conservação do ditongo por contrastar nitidamente com a vogal nuclear do mesmo.

Tudo isto explica que, em Portugal, ainda hoje haja oscilações entre touro e toiro, ouço e oiço, ouro e oiro, etc.

O numeral dous também foi afetado por esta oscilação, mas a norma acabou por escolher e fixar a forma dois. É o mesmo tipo de evolução que levou a substituir cousa por coisa. Note-se que, em galego, ainda se mantêm as formas da língua medieval: dous,

Pergunta:

Gostaria de saber qual é a forma correta do nome: "Gertrude" ou "Gertrudes"? Ou ambas são aceitáveis?

Obrigado.

Resposta:

A forma fixada pela tradição normativa é Gertrudes, conforme regista o Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves. Este mesmo autor refere, como de uso popular, a forma Estrudes, mas não inclui "Gertrude" como eventual variante.

Gertrudes" é igualmente a entrada deste nome próprio no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (2003), de José Pedro Machado, que lhe dá como origem o francês Gertrude, este, por sua vez, empréstimo do alemão Gertrud, por via alsaciana. O aportuguesamento exibe um -s, que Machado atribui à fonética popular (adição de um segmento no fim da palavra, ou seja, paragoge). Este autor menciona ainda que a variante Estrudes resultará de uma reinterpretação fonética do nome a partir de outra variante "G'trudes". Embora Machado não explique esta relação, é provável que, por queda do e da primeira sílaba (aférese), o segmento g (uma fricativa pré-palatal sonora) tenha ensurdecido por assimilação à consoante t, também surda, fazendo a palavra soar "chtrudes".

Como se disse, é nome de origem alemã, segundo ainda Machado (op. cit.) um composto dos elementos germânicos gari-, ger-, «...

Pergunta:

O é da palavra xibolete pronuncia-se aberto ou fechado?

Resposta:

A palavra xibolete, que significa «gesto ou sinal usado como meio de identificação; senha» e «característica que permite distinguir ou identificar um indivíduo como pertencente (ou não) a determinado grupo» (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, disponível na Infopédia), pronuncia-se geralmente com e aberto.1

Este vocábulo tem origem no hebraico shibboleth – na escrita hebraicaשִׁבֹּלֶת –, que significa sobretudo «espiga», mas também «curso de água, torrente». A esta palavra associa-se um episódio incluido no Antigo Testamento, mais precisamente no livro dos Juízes 12, 4-6. Segundo esse relato, o povo de Efraim, derrotado pelo de Guilead, pôs-se em fuga e pretendeu atravessar o rio Jordão, guardado pelos vencedores. Para identificarem os fugitivos, os de Guilead obrigavam quem pretendia franquear o rio a pronunciar shibboleth (som inicial igual ou parecido ao x de xaile). Os efraimitas eram sempre apanhados e executados, porque só conseguiam pronunciar sibboleth (consoante inicial igual ou parecida ao s de seta).

 

1 Apesar de na Infopédia se transcrever a palavra com o símbolo fonético do e fechado – [e] –, a entrada nos dicionár...

Pergunta:

Disseram-me que a relação que se estabelece entre família e pai é de hiperonímia-hiponímia. Ainda assim, pergunto se a relação de holonímia-meronímia também pode ser considerada válida.

Grata.

Resposta:

É erróneo considerar pai como hipónimo de família, porque pai não define um subtipo de família, nem esta é propriamente uma palavra com um significado mais geral. Não há, portanto, uma relação de hierarquia entre as duas palavras que faça de família um termo superordenado (ou hiperónimo) e de pai uma especificação da noção associada a família (hipónimo)1.

A classificação descritivamente adequada ao caso de família e pai é a relação parte-todo, isto é, a relação entre merónimo e holónimo2.  Assim, família denota um todo que inclui a entidade denominada  pai, enquanto pai, definível como «um dos membros de uma família», denota um elemento participante de um todo denominado família. Diz-se, portanto, que família é um holónimo (refere um todo), e pai, um merónimo (refere uma parte de um todo).

Acrescente-se que o verbo ser permite identificar um hipónimo com o seu hiperónimo, mas não um merónimo com o seu holónimo3:

(1) «Um cão é um animal.»

(2) ?«Um pai é uma família.»

Em (1), a definição de cão é identificada com a de animal, que é o termo mais geral (hiperónimo). Contudo, a estranheza de (2) sugere que a definição de pai não corresponde a uma especificação do todo denotado por família4.

As relações parte-todo sã...