Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a origem da palavra sebenta no contexto de caderno de rascunhos? Por mais que pesquise sobre o assunto, menos esclarecido fico.

Grato

Resposta:

O nome sebenta, no sentido de «caderno para rascunho» ou «apanhado de lição oral, apostila», terá surgido por extensão semântica do adjetivo sebento, «sujo, desmazelado». Não é clara a evolução semântica de sebenta, mas julga-se que esta se deva a uma alusão ao mau estado destes cadernos ou cartilhas de apontamentos que ficavam "sebentos" (subententendo cartilha, "sebentas") por terem muito uso ou circularem de mão em mão (cf. programa Cuidado com a Língua, 2008 ).

Observe-se que, no ambiente universitário de Coimbra, uma sebentaria seria uma oficina onde litografavam sebentas, e uma sebenteira, uma mulher que fazia a distribuição das sebentas (cf. José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa). Regista-se também sebenteiro, quer como adjetivo, na aceção de «relativo a sebentas», quer como substantivo, com os significados de «estudante que escreve sebentas», «aquele que litografa, datilografa ou imprime sebentas» e«aquele só estuda por sebentas» (idem, ibidem).

Acrescente-se que sebento é um derivado sufixal de sebo, «gordura» (cf. Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Em português, como se pronuncia Kosrae, nome de uma ilha na Micronésia?

Resposta:

Kosrae é o nome de uma das ilhas que constituem os Estados Federados da Micronésia (cf. dados da UNGEGN – Grupo de Especialistas das Nações Unidas em Nomes Geográficos; ver também Lista dos Estados, territórios e moedas do Código de Redação para uso do português na União Europeia).

Como nome próprio geográfico, Kosrae terá pouca ou nenhuma tradição de uso em português, dado que não parecem estar disponíveis registos impressos ou digitais de forma vernácula. Por enquanto, adota-se a grafia inglesa Kosrae, que consta do registo dos Estados Federados da Micronésia na classificação da norma internacional ISO 3166. Esta forma é pronunciável em português como "cochai" tomando por modelo a pronúncia inglesa (ver transcrição fonética de Kosrae na versão em inglês da Wikipédia)1. Numa pronúncia mais literal, isto é, interpretando a grafia conforme as convenções da leitura em português, pode também articular-se como "cosrai"2.

Ao longo da história, esta ilha tem sido também conhecida por outros nomes (ler também artigos em russofrancês da Wikipédia): Kusaie (pela semelhança fonética, será uma variante de

Pergunta:

Depois do Brexit, eis um derivado do termo inglês mais propalado nos media portugueses dos últimos tempos já com circulação mais do que garantida: Mayexit. Gostava de ter um comentário da equipa do Ciberdúvidas.

Muito obrigado.

Resposta:

É um neologismo que muito provavelmente só terá algum uso na comunicação social ou noutras instâncias, enquanto a demissão da primeira-ministra britânica Theresa May em 24/05/2019 tiver atualidade ou merecer alguma nota historiográfica futura. Tomando por modelo a forma Brexit, pode analisar-se Mayexit como a associação1 do apelido inglês May ao nome comum exit, que significa «saída» – ou seja, trata-se de um vocábulo que, com alguma ironia, refere a demissão de Theresa May no contexto da (conturbada) saída do Reino Unido da União Europeia.

Recorde-se que este processo, desencadeado na sequência do referendo de 6 de julho de 2016, tem sido fértil em palavras deste tipo, todas resultado da criatividade dos media anglo-saxónicos e rapidamente adaptados a outras línguas, entre elas o português. São exemplos Brexit, Bremain e flextension ( de flexible extension, «prorrogação flexível»). Estes e outros termos se justificam no discurso mediático; e o seu tom informal parece não constituir impedimento para a sua ocorrência, pelo menos, no caso de Brexit, que, a par da designação analítica «saída do Reino Unido da União Europeia», figura mesmo em certos documentos produzidos oficialmente em Portugal, como acontece com o Plano de Preparação para a Saída do Reino Unido da União Europeia (datado de 17/01/2019 e atualizado em 3/04/2019).

Sobre o vocabulário do Brexit, leiam-se os Textos Relacionados e o artigo "

Pergunta:

Gostaria de saber porque nuvem se escreve com v e nublado, neblina, com b.

Resposta:

Apesar de se tratar de palavras que remontam à mesma raiz latina, nub-, a história de cada uma delas explica que no primeiro caso se escreva com v e nos outros dois, com b.

Nuvem terá do latim vulgar nube, por via popular1. O -b- latino intervocálico passa geralmente a [v], que a ortografia representa por <v>: debet > deve; faba > fava; habere > haver; nube > nuvem2.

Nublado é um adjetivo com origem no particípio passado do verbo nublar, verbo que vem do latim nubĭlo, as, avi, atum, are , «cobrir-se de nuvens, enevoar-se, nublar-se». Atestam-se as formas anubrar e, no século XVIII, nuvrar, mas na atualidade prevalece nublar, que exibe b provavelmente por interferência culta.

Neblina provém do castelhano neblina, um diminutivo de niebla, que, em português, é o mesmo que nevoeiro ou névoa. Observe-se, aliás, que niebla e névoa são palavras cognatas, isto é, são palavras de línguas diferentes mas que evoluíram do mesmo étimo latino – nebŭla , «névoa, nevoeiro, cerração»3.

 

1 É a etimologia proposta pelo Dicionário Houaiss (2001), que, seguindo Edwin Williams [

Pergunta:

 No poema "Barca Bela" [de Folhas Caídas] de Almeida Garrett (1799-1854), o ultimo verso deve grafar-se "ó pescador " ou "oh pescador"?

Obrigada.

Resposta:

Pelo contexto, depreende-se que deveria escrever-se «ó pescador», conforme outros vocativos, em que se emprega a interjeição ó para marcar chamamento ou interpelação.

No entanto, o que se lê em várias edições e reproduções do poema é oh, a interjeição que «expressa surpresa, desejo, repugnância, tristeza, dor, repreensão» (Dicionário Houaiss, 2001) e que costuma ser seguida de ponto de exclamação ou vírgula. É de supor que certas edições recentes mantenham a forma oh por fidelidade ao que figura na edição de 1853 de Folhas Caídas, na qual se grafa oh.*

No contexto do ensino não universitário, pode considerar-se mais adequado escrever-se ó, em lugar de oh, muito embora se possa pensar que esta opção se revela um tanto empobrecedora, tendo em conta a polissemia e a margem de liberdade da linguagem poética.

 

* Veja-se, por exemplo, Flores sem Fruto e Folhas Caídas de Almeida Garrett, edição de Paula Morão, 4.ª ed., Lisboa, Comunicação, 1987.