Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No texto do Acordo Ortográfico de 1990, na sua Base I, ponto 2., especifica-se: "[a]s letras k, w e y usam-se nos seguintes casos especiais: (...) b) Em topónimos/topônimos originários de outras línguas e seus derivados: Kwanza, Kuwait, kuwaitiano; Malawi, malawiano".

No entanto, na mesma Base I, mas no ponto 6. recomenda o Acordo "que os topónimos/topônimos de línguas estrangeiras se substituam, tanto quanto possível, por formas vernáculas, quando estas sejam antigas e ainda vivas em português ou quando entrem, ou possam entrar, no uso corrente. Exemplo: Anvers, substituído por Antuérpia; Cherbourg, por Cherburgo; Garonne, por Garona; Genève, por Genebra; Jutland, por Jutlândia; Milano, por Milão; München, por Muniche; Torino, por Turim; Zürich, por Zurique, etc."

Consultando o Vocabulário Toponímico do Vocabulário Ortográfico Comum, que vem aplicar as normas do novo acordo, encontramos nele única e exclusivamente a grafia Maláui.

Devemos interpretar que, por altura da preparação do acordo, esta forma (Maláui) não tinha entrado ainda no uso corrente e que é por isso que a mesma surge como exemplo no ponto 2. para um uso legítimo do "w"? Quão autoritária deve ser esta menção a "Malawi" como topónimo não adaptável (mas que na prática já o foi)? E como proceder com as seguintes formas normalizadas pelo VOC: Botsuana, Zimbábue, Burquina Fasso ou Seicheles, ou mesmo com o recente, Essuatíni?

Muito obrigado.

Resposta:

O texto do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) não impede que nomes como Kwanza, Kuwait, Malawi possam ser aportuguesados.

Da Base I, ponto 2 do AO 90 infere-se que, na época em que este texto normativo foi redigido, se usavam nomes de países com origem em ortografias estrangeiras, por exemplo, Malawi, cujo gentílico, malawaiano, mantinha o w, apesar de ser um derivado no contexto do português. Mas isto não parece significar que a menção de Malawi seja o mesmo que estipular que se trata de forma não adaptável.

Sendo assim, as formas Maláui, Botsuana, Zimbábue, Burquina Fasso, Seicheles ou Essuatíni (o novo nome do país que se chamava Suazilândia) são interpretáveis como a fixação de aportuguesamentos ao encontro da recomendação feita no ponto 6 da Base 1 do AO 90. Não podendo dizer-se que atualmente são de uso obrigatório, deve, no entanto, observar-se que são aportuguesamentos disponíveis e aconselhados, de tal maneira que foram adotados pelo Código de Redação do português para as instituições europeias. Esta fonte indica igualmente os gentílicos respetivos, derivados da base já aportuguesada: malauiano, botsuano,

Pergunta:

Deambulando no Dicionário Houaiss (2009), deparei com a fraseologia «ser burro de Vicente» com acepção de «ir de mal a pior».

Por acaso, vocês saberiam dizer alguma coisa de sua etimologia ou motivação idiomática?

Resposta:

Só conseguimos saber que a expressão já era conhecida no séc. XVI, como atesta a sua ocorrência na Comédia Eufrósina (1560), de Jorge Ferreira de Vasconcelos (1515/1525?–1585). Uma versão mais antiga é «cada feira val menos, como burro de Vicente», a qual talvez aluda a algum episódio da vida aldeã, conforme sugere Jean Lauand, no artigo "500 provérbios portugueses antigos – Educação moral, mentalidade e linguagem".

Pergunta:

* Aportuguesamento da marca registada X-ACTO®

Por simples análise à palavra x-acto [ɛks-aktou], fica evidente que a corruptela X-ATO, tanto em forma escrita como fonética, e outras semelhantes da marca X-ACTO® [ɛks-æktou] resulta[m] do afastamento erróneo do dífono [cs] representado pela letra xis na sua primeira sílaba x-, cuja pronúncia [ɛks] é completamente desarticulada mediante a sua substituição pela forma escrita xis, que é o nome da própria letra. Na sequência fonética x-acto [ɛks-æktou], a articulação do xis é insuprível pelo seu próprio nome, na medida em que o xis aqui não é uma figuração ou adjectivo de incógnita ou unidade desconhecida, mas o xis do alfabeto latino pronunciável pelo dífono [cs] com o apoio vocálico [ɛ].

* Origem e formação da marca registada X-ACTO®

Ao decompor-se a marca X-ACTO®, pronunciada em inglês [ɛks-æktou], fica demonstrado que a sílaba inicial X- originalmente é uma corruptela criada de propósito (ainda no início dos anos 1930) com o adjectivo castelhano exacto, que se pronuncia [ɛks-aktou] para se chegar à escrita truncada X-ACTO, porém mantendo sempre a mesma pronúncia [ɛks-aktou]; e para esse fim a vogal e- foi suprimida no início da primeira sílaba ex- na sequência fonética do adjectivo em castelhano exacto, cuja grafia, por acaso, então em 1930, era igual à grafia de igual adjectivo em português, e articulado de modo quase igual. Aliás, a supressão da vogal e inicial não dificulta o reconhecimento do adjectivo exacto [ɛks-aktou], quer seja pronunciado em castelhano, quer seja em português, ou ainda em inglês [ɛk...

Resposta:

Agradece-se ao consulente a extensa exposição sobre o uso do nome comercial X-Acto em Portugal. Pode concordar-se com ela em muitos pontos, sobretudo quanto aos que permitem ajuizar que x-ato não será a melhor grafia para a palavra em questão. Observe-se, porém, que é possível e até legítimo escrever xisato (ou xis-ato) apenas atendendo à fonética popularizada entre falantes de Portugal. Trata-se, é certo, de uma forma popular, que se confinará ao registo informal, se outro termo não houver para nomear a ferramenta em apreço.

Este caso encontra algum paralelo noutro exemplo, o de peclise um aportuguesamento fonético e nada criterioso da expressão francesa pied à coulisse –, que, embora registado em alguns dicionários, tem associada à respetiva entrada a indicação de uso que a relega para o registo informal. Assim, pode achar-se (ou acha-se mesmo) que paquímetro constituirá o termo mais adequado, como termo técnico de formação erudita, em princípio, de consagração normativa menos discutível, e, talvez por isso, sem o estigma de iliteracia que rodeia a génese de peclise. Com x-ato, acontece, no entanto, pelo menos, em Portugal, que a alternativa lexical existente, constituída pelas palavras estilete e bisturi, não parece ter uso tão extenso ou tão saliente, situação indicativa de que, no fim de contas, o caso de peclise não trará grande ajuda.

Por outro lado, a grafia x-ato, como atualização de x-acto no quadro da norma ortográfica em vigor, não parece corresponder ...

Pergunta:

Gramáticos há que rechaçam a expressão «outro que não», dando-lhe como alternativa «outro que» (nunca «outro que não eu», mas «outro que eu», a título de exemplo).

Qual a explicação de tal?

Resposta:

A construção «outro que não...» está correta.

A estrutura em questão foi rejeitada por certos puristas, como Napoleão Mendes de Almeida (1911-1998), que a considerava «canhestra tradução de "other than that" [que] anda a aparecer em jornais» (Dicionário de Questões Vernáculas, São Paulo, Livraria Ciência e Tecnologia Editora, 1994); e, com efeito, os exemplos que Mendes de Almeida censurava acusavam sinais de má tradução.

Contudo, é duvidoso que a sequência «outro que não...» seja, por si só, um anglicismo sintático, dado que a construção ocorre, afinal, em textos de escritores portugueses e brasileiros dos séculos XIX e XX, a respeito dos quais não se afigura provável existir uma especial relação com a língua inglesa (exemplos retirados do Corpus de Português, de Mark Davies):

(1) «"O rebanho parecia ser o mesmo, lá isso.. Agora o pastor é que podia ser outro que não a Rosária."» (Trindade Coelho, "Idílio rústico" in Os meus amores: Contos e baladas, 1891)

(2) «Sobre a nomeação recaiu em outro que não o seu candidato. » (Machado de Assis, Epistolário)

(3) «[...] concluiu Lima Ventura, que a ideia de homenagens a outros que não a si próprio não era de molde a entusiasmar.» (Júlio Dantas, Abelhas Doiradas, 1912)

(4) «O pior era quando o faziam subir, e apareciam outros que não o Travancas.» (José Régio,

Pergunta:

[Sobre a expressão «boca do metro»] tenho uma dúvida:  é «boca do metro» ou «entrada do metro»?

Acho que a segunda opção é correta, mas também tenho encontrado a primeira opção  na  Internet. Qual é a  correta?

Resposta:

Em Portugal, as expressões mais correntes são «entrada do metro» ou «saída do metro» – consoante a perspetiva. Note-se, porém, que «à boca do metro» é locução legítima, com algum tom informal, que pode igualmente ocorrer, como se atesta em textos jornalísticos e até literários:

(1) «Cerca de 25% dos universitários que arrendam casas através da J.M.Simões escolhem T1 em condomínios onde a renda atinge os mil euros, situados "à boca" do metro.» (Jornal de Notícias, 29/09/2008).

(2) «Para Maria, esta estação, que é grande, ganha vida nas horas de ponta, visto que tem terminais de autocarros à boca do metro.» (ESCS Magazine, 6/012/2015)

(3) «Passaram as nove e as nove e meia, as dez e as dez e meia, as onze horas da manhã, com o sol a entrar toldado na boca do metro.» (Lídia Jorge, Notícia da Cidade Silvestre, Publicações Dom Quixote, 1994)