Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se a expressão «já se fazem horas» está correta segundo o padrão da norma culta da língua portuguesa.

Um exemplo de uso seria: «Vamos embora, pois já se fazem horas.»

Resposta:

 A frase está correta, e há exemplos literários desta construção, quer do Brasil, quer de Portugal:

(1) «Entretanto, faziam-se horas. Os examinadores estavam já reunidos na sala de exames [...].» (Aluísio Azevedo, Casa de Pensão, 1884)

(2) «Estão a fazer-se horas do seu jantar, Magalhães.» (Carlos Oliveira, Uma Abelha na Chuva, 1953)

Poderia julgar-se que, neste caso, o verbo fica no singular, como acontece com a construção «já faz oito horas que ela desapareceu» (cf. Dicionário Houaiss, s.v. fazer), a qual é equivalente a «já há oito horas que ela desapareceu», para expressar o tempo decorrido. Não sendo impossível dizer-se ou escrever-se «já se faz horas», com o verbo no singular, como em «já se faz tarde», acontece, porém, que com a expressão das horas se notam certas peculiaridades de uso que se tornaram norma pela força do uso. Com efeito, na construção em apreço, o verbo concorda com «horas», no plural, à semelhança do verbo dar, cuja aplicação a horas se faz intransitivamente, de maneira menos habitual, segundo Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2003, p. 563):

«Se aparece o sujeito relógio, com ele concorda o verbo da oração: "O relógio deu duas horas." Não havendo o sujeito relógio, o verbo concorda com o sujeito...

Pergunta:

Qual a forma correcta de se dizer:

«Garfo de peixe», ou «garfo a peixe»?

«Garfo de carne», ou «garfo a carne»?

Obrigado.

Resposta:

Em português as formas usadas para referir a finalidade de cada talher apresentam sempre a preposição de: as formas corretas são, portanto, «garfo de peixe/carne», tal como se emprega «colher de sopa/sobremesa». É também possível a preposição para – «garfo para peixe/carne» –, mas trata-se de um uso menos consolidado e, portanto, menos corrente, para vincar a finalidade do talher em referência.

Note-se que se atesta o uso de «garfo a peixe/carne» em páginas da Internet, mas trata-se com toda a probabilidade de um galicismo que não se justifica. Com efeito, a ocorrência da preposição a parece dever-se à influência do francês, língua em que a preposição à exprime muitas vezes relação e finalidade; daí que «garfo a peixe/carne» evoquem facilmente «fourchette à poisson», ou seja, «garfo de peixe».

Pergunta:

Face a divergentes opiniões, e após ter consultado o Dicionário de Língua Portuguesa da Academia, gostaria que me elucidassem sobre o processo de formação da palavra desunhar, que, segundo aprendi, é prefixo des + unha + sufixo ar, tal como está no referido dicionário.

Será, então, uma palavra derivada por prefixação e por sufixação, ou tem outra classificação?

Agradeço antecipadamente a vossa disponibilidade e as vossa lições.

Resposta:

O verbo desunhar correntemente usado com pronome reflexo, desunhar-se1 («fazer grande esforço para executar um tarefa difícil») – deriva por sufixação de unhar.

Note-se, porém, que, em Portugal, o verbo unhar parece usar-se pouco, o que pode sugerir que desunhar é formado por parassíntese, isto é, que são simultâneas a prefixação de des- e a sufixação de -ar. Não é de facto o que acontece, porque se trata de um verbo derivado por prefixação. De qualquer forma, importa sublinhar que, no contexto do estudo da gramática em Portugal, nos ensinos básico e secundário, trata-se de um caso de análise menos consensual, que só muito pontualmente será explorado.

 

1 Ao verbo desunhar associam-se várias aceções: «arrancar as unhas», «fazer rachar os cascos dos equídeos devido a percorrerem longas distâncias», «desprender do fundo a unha de uma âncora» (ver dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Conjugado pronominalmente, desunhar-se pode significar «empenhar-se por atingir um objetivo», «trabalhar com rapidez», «agir sofregamente» e «fugir» (cf. idem, ibidem; ver também o Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Gostaria de saber qual o significado da expressão ena no português de Portugal.

Resposta:

Transcrevemos a definição da Infopédia, que é adequada: «ena [...] interjeição [que] exprime alegria, surpresa ou admiração». O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa considera-a próxima das interjeições ui! e eia!; com esta última também a identifica o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), que menciona, além disso, caramba como outra interjeição sinónima. São exemplos do uso de ena as seguintes frases:

(1) «Ena, que maravilha!»

(2) «Ena, então por cá?»

(3) «Ena, tanta gente!»

No Corpus do Português, de Mark Davies, há algumas ocorrências desta interjeição, todas de textos em português de Portugal, como é o caso da que a seguir se apresenta, marcando admiração ou surpresa:

(4) «Vai ele abre a caixa. Ena tanto bicho! Cobras e um lagarto, só visto...» (Irene Lisboa, O Pouco e o Muito: Crónica Urbana, 1956)

A interjeição também surge associada a e a pai:, sendo esta não propriamente a palavra pai, mas antes uma variante da expressão , que se costuma considerar como uma forma curta de rapaz, com função vocativa:

(5) «Ena pá! O que tu fizeste!» (dicionário da ACL, s.v. ena)

(6) «Viveu ali um rei mouro, que deixou [...] um monte de oiro, e noutra um tesouro de diamant...

Pergunta:

Gostava que me explicassem a forma de aplicar nos ou em no caso de me referir a uma aldeia. Neste caso a aldeia tem por nome Foios e algumas pessoas dizem «...em Foios vai realizar-se...» e outros «...nos Foios vai realizar-se....».

Qual é a maneira correta e poderão aplicar-se as duas formas?

Obrigado.

 

Resposta:

Os dois usos, com e sem artigo definido, são possíveis, mas o juízo sobre a correção ou adequação de cada um depende também muito da tradição local.

O topónimo Foios parece ter origem numa forma masculina, foios, do regionalismo foia1, «cavidade, buraco», que é um nome comum procedente do latim latim fovĕa-, «cova» (dicionário de português da Infopédia), . Sendo assim, se historicamente Foios começou por ser um nome pluralizado, então, é legítimo e até preferível o artigo definido: «vou aos Foios». Note-se, porém, que muitas vezes, para dar maior formalidade, se omite o artigo definido, quando se fala, por exemplo, da «junta de freguesia de Foios». Este uso terá menos razão histórica, embora se entenda e não se possa dizer que está totalmente errado.

Convém também dizer que, estando o uso de artigo mais difundido entre os naturais e residentes da localidade em questão  que a sua omissão, então «os Foios» é a forma a adotar.

 

1 Escreve-se aqui foio e foia, sem acento agudo, conforme a Base IX, 3, do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Note-se que, antes da entrada em vigor desta norma, se escrevia fóio e fóia, para indicar o ditongo oi com o aberto ...