Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber qual o real significado da expressão brasileira «rodar a baiana».

«Eu rodo a baiana, mas você só sai dessa sala quando terminar as atividades.»

Obrigado!

Resposta:

Trata-se de uma expressão idiomática brasileira que tem registo dicionarístico: «rodar a baiana: reclamar ou brigar com escândalo», segundo o Dicionário Houaiss, que em nota etimológica acrescenta que, na locução, baiana se deve entender «como roupa de baiana com saia rodada».

A sua origem não parece clara, mas a tese mais aceite1 encontra-se sintetizada no Wiktionary, com base em fonte jornalística brasileira2:

«Nos blocos de carnaval do Rio de Janeiro, no início do século XX, alguns foliões apertavam as nádegas das moças fantasiadas que desfilavam. Para evitar isso, alguns capoeristas desfilavam no meio dessas moças, fantasiados como elas. Quando alguém tinha algum ato desrespeitoso com as moças, os capoeristas atacavam. Quem estava de fora e não estava informado da situação via apenas "rodar a baiana" e, em seguida, iniciar-se uma grande confusão.»

Acrescente-se que, no contexto desta expressão, baiana deve entender-se não como «mulher habitante ou natural da Bahia», mas, sim, como «indumentária tradicional das negras e mestiças da Bahia, que consta de saia comprida muito rodada, bata de renda, torso ou turbante, pano-da-costa, chinelas, colares, brincos e balangandãs» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa) e, mais concretamente, à saia, que roda.

 

1 Cf. "rodar a baiana", Wiktionary, consultado em 26/09/2020.

2 "Rodar a baiana", Aventuras na História, 01/06/2006 e 23/...

Pergunta:

Gostaria de saber se há alguma razão conhecida para o facto de, para os lados das chamadas «Terras de Santa Maria», ou seja, Santa Maria da Feira e arredores, haver uma pronunciação muito estranha do verbo entrar, nomeadamente entre as pessoas mais velhas, mas que ainda não cessou de ser transmitida também aos mais novos.

Ora acontece que por aqui, em vez de «tu entras por aquela porta e viras à direita», há muitas pessoas que pronunciam «tu éntres por aquela porta e viras à direita». Já quando se usa o plural, também aqui se diz «eles éntrem na casa pela garagem», em vez de «eles entram em casa pela garagem».

Gostaria também de perceber se isto, a ser um regionalismo, é exclusivo desta região, ou se estas formas distorcidas (e que, confesso, muita confusão me fazem) também são encontradas noutras regiões do país.

Obrigado.

Resposta:

Os dois casos em questão, objeto de descrição linguística de tipo dialetológico ou sociolinguístico, dizem respeito a formas não aceites pela norma-padrão, quer em Portugal noutros países de língua portuguesa.

Assim, em relação ao primeiro caso, "éntres", não se encontraram registo nem comentário nas fontes disponíveis1. No entanto, fica aqui mencionado como atestação.

No segundo caso, está documentada a convergência de -am em -em nas formas da 3.ª pessoa do plural do presente e do imperfeito do indicativo dos verbos da 1.ª conjugação. Diz-se, portanto, "andem" ou "plantem", em lugar das formas corretas andam e plantam; além disso, chega-se a pronunciar "queimavem", em vez de queimavam, ou "apanhavim" (o mesmo que apanhavam), ainda com maior redução vocálica2. Em Portugal, é um fenómeno especialmente frequente no Sul e nas ilhas, entre população menos escolarizada e/ou menos exposta  aos usos normativos.

1 Foi consultada a Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 127/128) e a Revista Lusitana (1887-1943).

2 Cf. Gramática do Português (pp. 127/128).

Pergunta:

Na frase «Joaquim! O carteiro tem uma carta para si.» Está certo esse «para si», o correto não seria «para você»?

Há duas pessoas distintas na frase acima. Essa frase tirei de um livro de aprendizado de línguas estrangeiras de uma famosa editora francesa, só mudei o nome.

Fiz essa pergunta numa famosa rede social de perguntas e respostas, quando me convenci de que o uso do si está correto, uma pessoa responde-me isso e fico a pensar novamente se está correto ou não:

«O uso do si na frase é um coloquialismo gramaticalmente incorreto praticado em Portugal sem base na gramática. Lembrem-se de que o português é uma língua regulamentada internacionalmente e tem regras. No caso, independentemente de onde se fale, seja em Portugal, no Brasil ou alhures, a regra gramatical só permite o uso do si como pronome reflexivo (ou reflexo), como se vê [aqui].»

Resposta:

A frase apresentada é típica do português de Portugal, onde si é a forma de você depois de para: «para si» = «para você». Este uso não está incorreto, mas só é válido em Portugal e nos países africanos de língua portuguesa. Obviamente que não se aceita no Brasil, porque não ocorre entre falantes deste país nem tem tradição na sua norma culta.

Quanto a considerar «para si» completamente incorreto, porque se diz que «o português é uma língua regulamentada internacionalmente e tem regras» e «seja em Portugal, no Brasil ou alhures, a regra gramatical só permite o uso do si como pronome reflexivo (ou reflexo)», trata-se de uma perspetiva muitíssimo discutível e contestável. Na verdade, em Portugal, o uso explícito de você – que geralmente fica subentendido no emprego das formas verbais e pronominais de 3.ª pessoa1 – é visto por muitas pessoas como pouco cortês. O emprego de «para si» e consigo contorna esse dilema do tratamento do interlocutor na 3.ª pessoa do singular.

1 Em Portugal, é frequente produzirem-se enunciados dirigidos a um interlocutor tratado na 3.ª pessoa, sempre evitando o pronome de tratamento você; por exemplo: «Então, como está? Já sabe da novidade? Não sabe?! Ah, mas eu conto-lhe... Mais logo, quando o vir ao almoço.»

 

N. E. (30/09/2020) – Historicamente, si e consigo eram apenas formas reflexas (ou reflexivas ) da 3.ª pessoa  em todas as variedades da língua portuguesa. Porém, em Portugal, estas formas pronominais, sem deixar de ser usadas reflexivamente, ocorrem sobretudo associadas a você (que, como foi dito, se subentende na comunicação). No português europeu, aceita-se, portanto, e está correta uma frase como «trouxe este livro para si, porque gostava de o discu...

Pergunta:

Uma dúvida em relação à palavra "tecitura" ou "tessitura".

Vi alguns usos e não encontrei consenso. Pela ortografia é errado usar "tecitura" com "c", já que o sentido adotado seria o de tecer ou entrelaçar?

Resposta:

Escreve-se tessitura com ss.

Apesar de a palavra estar relacionada semântica e historicamente com tecer e tecido, foi ela introduzida em português como estrangeirismo de origem italiana, língua em que se escrevia com ss por razões relacionadas com a fonética histórica do italiano, como aponta o Dicionário Houaiss:

«["tessitura vem do] italiano tessitura (sXIV) 'organização de um discurso religioso', (1640) 'ação de fazer tapeçaria sobre uma tela ou o trabalho assim tecido', (1737) 'organização e composição de uma obra literária, contextura', (1879) acepção em música, (1881) acepção 'modo de dispor ou ordenar', do verbi italiano tessere, este, do latim texo, is, xui, xtum, ĕre 'tecer, fazer tecido; entrançar, entrelaçar; construir sobrepondo ou entrelaçando'.»

A palavra tessitura tem o seu primeiro registo dicionarístico conhecido em 1879-1881, datas da 1.ª edição do Dicionario Contemporâneo da Lingua Portugueza, de Caldas Aulete (cf.idem, ibidem).

Pergunta:

Sou brasileiro, estudando o sotaque Português-EU.

Considere-se a frase «Sei que a Inês é do Porto».

Às vezes a letra "d" vem posicionada entre os dentes, há alguma regra para isso? Isso sempre acontece em todas as vogais? Há algum nome para esse tipo de acontecimento?

Fica algo próximo do espanhol, a posição da língua é a mesma do "th" do idioma inglês? É algo que acontece em todos os lugares de Portugal?

Eu tenho outros áudios, e percebo a mesma situação em palavras como: nada, cansada etc. [Por exemplo, aqui:] 0:55 nada; 2:14 possibilidades; 2:20 doutros; 3:02 dez.

Obrigado desde já.

Resposta:

Quando o /d/ é intervocálico, quer dentro de palavra (dado), quer entre palavras («casa da gente»), a sua tendência, no português europeu, é tornar-se uma consoante fricativa interdental sonora (ou vozeada)1, próxima ou igual ao th inglês – símbolo fonético [ð] –, que ocorre no artigo definido the, no demonstrativo that ou no adjetivo e pronome other.

Este fenómeno de fricatização abrange outras consoantes oclusivas sonoras intervocálicas e pode fazer parte das realizações da pronúncia-padrão.2 Regista-se também nos dialetos setentrionais portugueses e mesmo nos dialetos centro-meridionais, pelo menos, mais a norte. No entanto, não costuma ocorrer nos dialetos centro-meridionais do Alentejo ou do Algarve. Trata-se de um fenómeno de que os falantes não têm geralmente consciência clara, e, portanto, não parece ser motivo de atitude especial, ao contrário do que sucede com outras prolações.

1 Atualmente emprega-se mais vozeado nos estudos linguísticos. No ensino não universitário de Portugal, continua a falar-se em consoante sonora, por oposição a surda, embora ao parâmetro distintivo se chame vozeamento.

2 Cf. António Emiliano, em Fonética do Português Europeu (Lisboa, Guimarães Editores, 2009, p.251).