Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Junto envio uma citação que contém a palavra "alfoque".

«Ti Chico é mais prático na descrição: "Joga-se o berbigão para dentro da murejona pela boca. Leva um cabo grosso, põe-se um alfoque e atira-se ao mar."» (jornal Barlavento, 01/10/2020, p. 8)

Consultei vários dicionários da língua portuguesa e outros do léxico algarvio, mas sem sucesso.

Espero que consigam satisfazer a minha curiosidade.

Obrigado.

Resposta:

O contexto permite inferir que pela palavra alfoque se denota algum tipo de nó utilizado nas artes de pesca.

Com efeito, é esta a conclusão mais provável, até porque há registo de formas algo parecidas, com essa semântica. Por exemplo, José Pedro Machado, no seu Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Lisboa, Círculo de Leitores, 1991), recolhe alforques, que remete para alfornes, o mesmo que «cabos que, em certas redes, partem da cadoura para as tralhas»1. A remissão é mais da ordem da sinonímia, porque o autor citado não esclarece a relação formal (fonética) que se intui entre alforques e alfornes, muito embora seja praticamente impossível explicar a passagem de -q- a -n- e vice versa. Talvez a relação entre as duas palavras não seja estabelecida por regras fonéticas ou fonológicas, mas por algum fenómeno de analogia, que não é, por enquanto, claro.

Seja como for, na Internet, numa página em inglês ocorre alfoque, que se define como «nó corredio» («slipping knot») na frase «each pot has a rope around its neck with a slipping knot (“alfoque”)» [= «cada vaso tem um cabo amarrado à volta da boca com um nó corredio ("alfoque")»].

É de assinalar, contudo, que Eduardo Brazão Gonçalves (Dicionário do Falar Algarvio, Algarve em Foco Editora, 1996) recolhe alforque, no sentido de «pe...

Pergunta:

Gostaria de saber se é correto dizer «fazer uma festa», ou «festas a alguém», com o significado de «carícia».

Na minha terra natal diz-se muito, por exemplo, «fazer festas» às crianças, com esse significado de as acariciar.

Muito obrigada desde já.

Resposta:

Trata-se de um expressão normalíssima em português, que se atesta tanto em Portugal como no Brasil e noutros países.

Encontra-se «fazer festas», que pode eventualmente realizar-se como «fazer uma festa», como sinónimo de acariciar em alguns dicionários. Não se acha, é certo, nos dicionários eletrónicos do português de Portugal – Dicionário InfopédiaDicionário Priberam –, mas há registo da expressão no dicionário de Caldas Aulete e no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (2001), onde se pode ler como definição de festa (mantém-se a ortografia do original):

«5. Toque suave da mão no corpo de pessoas ou animais, como demonstração de afecto, ternura. ≃ AFAGO, CARÍCIA, MEIGUICE. Fez uma festa ao cão. Foi fazendo festas à criança até esta adormecer. Fazer uma [festa], fazer [festa]s

A variante «fazer festa», com festa sem artigo e no singular, figura em dicionários brasileiros, como sejam o Dicionário Houaiss e o Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.

Em tom carinhoso, é também comum dizer-se em Portugal «fazer festinhas» (por exemplo, a um bebé ou a um animal).

Pergunta:

Estava eu assistindo ao filme O Pai Tirano, de 1941 [com realização de António Lopes Ribeiro], e ouvi um personagem dizer ao outro «Cê tá maluco»*.

Pensei que era só o Brasil que usava a redução.

Portugal também a usa, mas em que escala?

*Em 1:36:42 do filme.

Resposta:

A forma , redução de você, não é impossível em Portugal, mas não parece ter aqui uso estável nem sistemático como no Brasil.

Pode produzir-se ocasionalmente, por exemplo, numa frase exclamativa, como é o caso da ocorrência no filme citado, em que o ator (Ribeirinho) concentra toda a força da elocução na sequência «tá maluco» (em que é a forma popular de está), com o resultado de você ficar reduzido à sílaba tónica -.

É igualmente de notar que a descrição linguística não tem reconhecido como uma variante autónoma de uso consistente no português de Portugal. Com efeito, enquanto a forma tem presença em alguns dicionários brasileiros1 como variante de você, na lexicografia portuguesa2 apenas está ela consignada como o nome da letra assim chamada.

 

1 Ver Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa s. v. 2 (trata-se de homónimo da entrada 1, nome da letra C)  e Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. A versão eletrónica do dicionário de Caldas Aulete também acolhe como variante reduzida de você.

2 Foram consultados o Novo Dicionário da Língua Portuguesa (1913), de 

Pergunta:

Vi no dicionário do Google que quisto era particípio passado de querer. Quando é que o suplantou o particípio querido?

Resposta:

Não foi possívei aceder a fontes que facultassem dados precisos sobre a distribuição das duas formas participiais no período medieval.

Mesmo assim, pode supor-se que as duas formas terão coexistido como particípios passados na Idade Média. Acontece, porém, que quisto, pelo menos, do século XVI em diante1, se especializou e passou a ocorrer quase apenas em expressões como «bem quisto» e «mal quisto», que deram origem às formas aglutinadas benquisto e malquisto2.

1 Foi consultado o Corpus do Português, de Mark Davies.

2 Cf. o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001) da Academia de Ciências de Lisboa e o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Qual seria a melhor tradução para português da palavra inglesa perfunctory?...

Em várias traduções surge como significando «superficial», «descuidado», «apressado» ou até «negligente». Aparentemente estes termos corresponderão ao significado do latim tardio perfunctōrius, no entanto esta palavra não terá tido um correspondente na língua portuguesa (que poderia ser útil).

Aplicar-se-á melhor a expressão «por mera formalidade»? (Oxford Languages) Estará mais dependente do contexto?

Parece-me que no inglês há uma componente interessante e algo distinta, frequentemente aplicada, que corresponde a algo executado meramente como rotina ou pró-forma («performed merely as a routine duty»), porque tem de ser feito, mas associado a uma conotação mais negativa de claro desinteresse, de evidente falta de empenho e até irrelevância efetiva para o executante.

Resposta:

A palavra perfunctório está registada em português desde os começos do século XVIII e não parece ter um significado muito distinto do seu cognato inglês. Com efeito, consultando o Dicionário Houaiss, vê-se que o adjetivo é definido do seguinte modo:

«1 que se faz de modo rotineiro, em cumprimento de uma obrigação; 2 que tem pouca utilidade; ligeiro, superficial»

Não se trata de um registo meramente brasileiro, visto que também está consignado no dicionário de Cândido Figueiredo; e igualmente se encontra no dicionário da Porto Editora (Infopédia).

Em conclusão, o inglês perfunctory e o português perfunctório não são falsos amigos. Contudo, se se achar que perfunctório se usa pouco em português (o que também não se confirma claramente), pode recorrer-se a advérbios e locuções como negligentemente, «com negligência», «sem imaginação», «com desinteresse» ou os adjetivos sugeridos na pergunta.