Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em 1945 o gentílico «torreense» desapareceu. Uma palavra que está registada na história de Torres Vedras. Mas nos escritos nacionais atuais não existe e é considerado um erro. Porquê não voltar a colocá-la no dicionário?

Este “erro” nos dias de hoje ainda existe. Dá nome ao clube de futebol da cidade, dá nome a várias empresas desta terra e relembra as bandas, a filarmónica, os refrigerantes e tantas outras empresas que atualmente já não existem. Reforço, porquê não voltar a colocar esta palavra com história no dicionário? De acordo com o ponto C da alínea 2 da base V do Acordo Ortográfico de 1990, estabelecia desta forma as grafias: “goisiano (relativo a Damião de Góis), siniense (de Sines), sofocliano, torriano, torriense [de Torre(s)]”.

É curioso que sineense, (também uma palavra com história local), atualmente existe no dicionário e também é considerada nos escritos nacionais atuais um dos gentílicos de Sines. Torreense, uma palavra com história e memória local, é atualmente uma palavra sem significado e inexistente nos escritos nacionais atuais.

Aguardo uma resposta. Obrigado.

Resposta:

Desde há muito tempo que se escreve torriense (ver nos conteúdos em arquivo aqui e aqui). A forma torreense já tinha desaparecido da ortografia antes de 1945.

Com efeito, em 1940, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia das Ciências de Lisboa fixava as grafias açoriano, siniense e torriense; no entanto, contraditoriamente consignava cabo-verdeano, que, depois de 1945, passou a escrever-se cabo-verdiano, com i.

As Bases Analíticas do Acordo de 1945 – generalizava a sequência -iense em gentílicos derivados de topónimos com e átono como vogal final:

«(Base IX, 3.º) 3.° Escrevem-se com i, e não com e, antes da sílaba tónica, os adjectivos e substantivos derivados em que entram os sufixos mistos de formação vernácula iano e iense, os quais são o resultado da combinação dos sufixos ano e ense com um i de origem analógica (baseado em palavras onde ano e ense estão precedidos de i pertencente ao tema: horaciano, italiano, duriense, flaviense, etc.): açoriano, cabo-verdiano, camoniano, goisiano («relativo a Damião de Góis»), sofocliano, torriano («de Torres Vedras»); siniense («de Sines»), torriense («de povoação chamada Torres»).»

É discutível o facto de, no VOLP de 1940, se con...

Pergunta:

Qual seria a definição correta de teodidata?

Resposta:

É um termo esporadicamente usado na língua portuguesa com o significado de «ensinado por Deus».

Os dicionários gerais não o registam, mas encontra-se em textos de caráter filosófico ou de teologia, que aludem à expressão «inspirados por Deus», provinda de um versículo do Evangelho de São João (6, 45):

(1) «Está escrito nos profetas: e serão todos ensinados de Deus.» (Frederico Lourenço, Bíblia. vol I. Novo Testamento. Os Quatro Evangelhos, Lisboa, Quetzal, 2016, p. 349)

Mas o vocábulo que passou a diferentes línguas ocidentais, entre as quais o português, com a forma teodidata, provém do grego bíblico theodidaktós, que figura na 1.ª Carta aos Tessalonicenses (4, 9) e significa «ensinado por Deus»:

(2) A respeito do amor fraterno não tendes necessidade que se vos escreva, pois vós próprios fostes ensinados por Deus a amar-vos uns aos outros.» (Frederico Lourenço,  Bíblia. vol. II. Novo Testamento. Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, Lisboa, Quetzal, 2017, p. 382)

A palavra ocorre também em traduções diretas ou indiretas da obra do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855).

Pergunta:

Sempre grato pelo vosso trabalho, venho por este meio novamente pedir esclarecimento a uma dúvida gramatical que me surgiu.

Estou a fazer um exercício sobre o uso da estrutura estar + a + infinitivo, para ações em processo.

Há um caso particular em que devo utilizar o verbo pronominal vestir-se. A minha primeira resposta foi «nós estamos a nos vestir», pois, segundo o que estudei antes, a presença da preposição a exige que o pronome esteja antes do verbo. Contudo, a correção do livro mostra «nós estamos a vestir-nos».

Assim sendo, qual é a posição correta do elemento pronominal em dita estrutura?

Desde já, obrigadíssimo pela ajuda.

Resposta:

A construção que nos apresenta é típica do português de Portugal, variedade linguística em que se evita intercalar um pronome entre a preposição a e o infinitivo -- ao contrário do que se observa com outras preposições. Sendo assim, a forma correta é de facto «estamos a vestir-nos».

Também é possível num registo menos formal deslocar o pronome para junto do auxiliar, obtendo-se a construção «estamo-nos a vestir».

O espanhol <i>descambiar</i> e o português <i>destrocar</i>
Amigos verdadeiros e falsos, interlinguisticamente falando

Em espanhol, o verbo cambiar traduz-se em português por mudar e trocar. E existe o verbo descambiar, que, literalmente traduzido, parece equivalente ao destrocar português. Um apontamento de Carlos Rocha sobre um (quase) falso amigo do espanhol para falantes de português.

 

 

Pergunta:

A expressão «erro de simpatia» voltou a ouvir-se sobre o caso à volta do currículo do Procurador Europeu José Guerra, cuja categoria profissional erradamente atribuída a ministra da Justiça Francisca van Dunem considerou ser «um erro de simpatia». Ou seja, que julgo ser esse o sentido da expressão, que é desculpável e, portanto, não penalizável.

A minha dúvida é porém esta: qual a origem concreta da expressão «erro de simpatia»?

Os meus agradecimentos.

Resposta:

Nos dicionários, guias de uso, corpora e reportórios de curiosidades linguísticas consultados1, não se encontraram nem registo, nem pista evidente, nem clara explicação da motivação da sequência «erro por simpatia».

No entanto, depreende-se que simpatia, em «erro de simpatia», se interprete como «afinidade que se supõe existir ou que se estabelece, por vezes insconcientemente, entre duas entidades (pessoas, coisas, situações, etc.)», de acordo com um uso mais antigo que o Dicionário Houaiss regista («correspondência que se julgava existir entre as qualidades de certos corpos»).

Uma definição enquadrável nesta linha de exploração é a que o escritor António Cabrita expôs no seu blogue Raposas a Sul em 11/12/2011: «[..] há os erros de simpatia, aqueles que reproduzimos porque a nossa vontade completou ou cegou-nos ao que está escrito.»

O mesmo autor ilustra depois assim a situação que se denomina «erro de simpatia»:

«Por exemplo, neste blogue cometi um erro no post mais lido (vá lá saber-se porquê) que o leitor ou nunca dá conta, ou nunca se manifesta – o que, para mim, em termos práticos dá no mesmo. Na publicação intitulada «Einstein e os meus alunos» conto um episódio verdadeiro em que ofereci quarenta livros digitais ao aluno que me quisesse vir ajudar numa mudança de casa; tendo-se os alunos abstido da possibilidade de adquirirem num só dia 40 livros novos. Ora, no texto, começo por dizer que eram 40 e acabo mudando o número para 50. Não sei porque o alterei, a verdade está no primeiro número. Mas o que é facto é que nenhum dos 875 leitores que leu esse post ...