Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Algumas ocorrências que encontrei de pronomes oblíquos átonos arcaicos:

«Que estais no céu, santificado... Não no disse eu, menina? Seja o vosso nome…» (Almeida Garrett)

«Ele ou é trova, ou latim muito enrevezado, que eu não no entendo.» (Almeida Garrett)

«Via estar todo o Céu determinado / De fazer de Lisboa nova Roma; / Não no pode estorvar, que destinado / Está doutro Poder que tudo doma.» (Camões)

«O favor com que mais se acende o engenho / Não no dá a pátria, não, que está metida…» (Camões)

«Ora sabei, padre Fr. João, que eu bem no supunha, bem no esperava; mas parecia-me impossível, sempre me parecia impossível que viesse a acontecer.» (Eça de Queirós)

«A culpa de se malograrem estes sublimes intentos quem na tem é a sociedade…» (Camilo Castelo Branco)

«Parentes, amigos, nem visitas nenhumas parecia não nas ter.» (Almeida Garrett)

Há alguma explicação para o uso da consoante n antes dos oblíquos átonos?

Muito obrigado!

Resposta:

No português culto e literário, de tradição oitocentista, os pronomes átonos têm a forma -no/-na depois de formas verbais terminadas em nasal:

(1) Compraram um apartamento e venderam-no logo a seguir.

Acontece que no português mais arcaico as formas -no/-na também podiam ocorrer depois do advérbio de negação não, dada a nasalidade:

(2) Havia muitas cerejas no mercado. mas eu não nas quis comprar. [ou seja, no português escrito padrão: «não as quis comprar»]

Este é um fenómeno que ainda sobreviverá entre alguns falantes mais velhos de Portugal, geralmente pouco escolarizados.

No entanto, é uma sobrevivência curiosa com valor histórico, porque aponta para um fenómeno de assimilação que terá ocorrido em tempos recuados, desde a alta Idade Média, no período galego-português, conforme ilustra o seguinte exemplo (o asterisco marca o seu estatuto hipotético):

(3) *non lo quis > non no quis > não no quis

O esquema acima pretende reconstituir a sequência de advérbio de negação, forma arcaica do pronome o e o verbo. O que aconteceu foi o l de lo, que geralmente desaparecia (síncope) depois de formas verbais acabadas em vogal (quero-*lo» > quero-o), ter sido assimilado pelo som nasal de non (mais tarde, a partir de finais do século XIV, nam e não) e ter passado a articular-se também como n: *non lo > non no.

Trata-se de uma explicação que tem de ser histórica e dialetológica, o que também explica que o uso em questão apareça em Camões e depois mais tarde no século XIX como forma de recriar literariamente a fala popular (casos das citações Almeida Garrett, Camilo Castelo B...

Pergunta:

Estava lendo Marília de Dirceu [de Tomás António Gonzaga] e me deparo com este verso:

«O mesmo, que cercou de muro a Tebas.»

Que eu saiba só tem duas regência o verbo em questão:

1) Cercar algo DE.

2) Cercar-se DE.

Gostaria de saber se a regência do verbo é outra (Cercar A algo DE) ou se Tebas é de gênero feminino.

Resposta:

Não convém tomar como exemplo do funcionamento linguístico atual textos com mais de 200 anos. É o caso do verso em questão.

Como é improvável que Tebas, nome próprio do género feminino, se usasse (ou se use) com artigo definido, no exemplo ocorrerá um objeto direto1 preposicionado, tendo a frase por núcleo o nome próprio em apreço. Esta construção era frequente no século XVII e manteve-se com alguma vitalidade no século XVIII, geralmente envolvendo nomes próprios de pessoa, embora também se documente o seu uso com nomes de países, regiões ou cidades que constituam entidades políticas:

(1) «Em Hespanha o insigne Portuguez Viriato, filho de hum pastor, poz em duvida se Hespanha dominaria a Roma, ou Roma a Hespanha, como confessáraõ os mesmos Romanos.» (Antonio de Sousa de Macedo, Eva e Ave ou Maria Triunfante, 1676, ibidem)

2) «Algumas tropas passaram há pouco tempo para Provença e Delfinado, e muitos discursaram que eram disposições para invadir a Castela no caso daquela morte.» (J. Cunha Brochado, Cartas,1707 in Corpus do Português )

Tanto em (1) como em (2),  Roma e Castela, que, tal como hoje, não se fazem acompanhar de artigo definido («vivia em Roma/Castela»), têm associada a preposição a e desempenham a função de objeto direto das respetivas orações («dominaria a Roma» = «dominaria Roma»; «para invadir a Castela» = «para invadir Castela»).

Sendo assim, no verso em questão, «cercou de muros a Tebas», apresenta-se um objeto direto preposicionado ...

Pergunta:

Tenho encontrado o termo "membrezia" e "membresia" em sites portugueses para definir a pertença a um grupo/ clube.

Qual dos termos é mais aceitável, se é que algum? Li a entrada acerca de "membresia" mas não fazia menção a esta outra grafia...

Obrigada.

Resposta:

Por enquanto, membresia, que já tem registo dicionarístico (cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa), é termo para empregar ainda com alguma cautela, pelo menos, em Portugal.

Há 16 anos já se falava desta palavra e do seu uso no Brasil – cf. Dúvidas Linguísticas, na página do FLiP, 04/08/2005). Trata-se de uma clara adaptação do espanhol americano membresía (com a variante membrecía), castelhanização do inglês membership, termo que, em português, continua  a ser geralmente traduzido de formas variadas, de nomes a construções, em função do contexto: adesão, associação, filiação, afiliação, «ser membro/filiado» – cf. Linguee e resposta anterior aqui.

Em todo o caso, querendo adaptar o castelhano, diga-se que quer membresia quer o não atestado membrezia dão corretamente conta da dualidade originária de membresía/membrecía. A primeira forma tem s, tal como na correspondência entre o português casa e o castelhano casa (se bem que a pronúncia do s português e a do s castelhano tenham diferenças apreciáveis); a segunda, apresenta z, alinhando com palavras portuguesas com z intervocálico que são 

Pergunta:

O que significa a palavra mentidero?

Em que sentido posso empregá-la?

Resposta:

Trata-se do castelhanismo mentidero, que significa «lugar onde se reúnem pessoas para conversar» e «grupo humano ou ambiente em que se comentam alguns aspetos da atualidade» (dicionário da Real Academia das Ciências).

Ocorre também sob o aportuguesamento mentideiro  (Infopédia): «1. lugar donde habitualmente se propagam boatos e mentiras; 2. conjunto de pessoas que falam da vida alheia; soalheiro».

A palavra ocorre, portanto, em referência a grupos de pessoas que se dedicam a divulgar e comentar a vida alheia, muitas vezes, como exercício de maledicência.

Pergunta:

Já li a pergunta "A concordância do verbo doer" e tenho uma pergunta relacionada: tem a palavra dor de ser usada em concordância com o número da parte do corpo que está a doer?

«Dores na costas», mas «dor de cabeça»?

Na minha língua materna seria sempre o plural, porque a região que dói não é bem delineada e praticamente inumerável.

Resposta:

O uso do plural dores não depende sistematicamente da forma gramatical da parte do corpo a que se reporta.

Diz-se: «estou com dores nas costas», «estou com dores de cabeça», «estou com dores de dentes», «estou com/tenho dores de estômago», «sinto dores no peito», no sentido genérico de «ter dor» ou «ter dores». Por outras palavras, dores pode remeter para qualquer parte do corpo, seja esta geralmente denotada por um nome no singular ou por um nome no plural.

Mas também se emprega o singular, para sublinhar uma dor numa situação concreta:

(1) Estou com uma enorme dor de cabeça/de dentes

Este uso pode dispensar o artigo indefinido: «estou com dor de cabeça»

Uma consulta do secção histórica do Corpus do Português, de Mark Davies, mostra que a ocorrência do plural de dor não é concomitante do plural do seu complemento, porque a par  de «dores de costas» se atesta «dor de costas» e «dores de dentes» (11 ocorrências), que inclui o plural dores, associado a outro plural, dentes, e chega a figurar textualmente menos vezes que «dor de dentes» (28 ocorrências).

O uso do plural parece mais frequente em Portugal do que no Brasil. Com efeito, uma consulta do mesmo corpus revela que, enquanto nos textos representativos do português de Portugal têm frequências próximas as sequências «dor de...» (92 vezes) e «dores de...» (82 vezes), nos textos do Brasil desenha-se um claro predomínio de «dor de...» (172 vezes) sobre «dores de...» (39 vezes).

Também o exame da construção «(ter/sentir) dor em(parte do corpo)» no referido corpus – p. ex., «dor na coluna»/«dores na espinha» e «dor nas costas/dores nas costas» – leva a concluir que não há relação entre a pluralização de dor e a do nome anatómico a que se refere.