Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da palavra "afromimizento" , usada por Sergio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares:

«Mutilação politicamente correta de obra literária, promovida por quem deveria defender o legado do bisavô. É crime! Nenhum preto pediu! Não vemos racismo na obra de Monteiro Lobato! Exceto afromimizentos, ínfima minoria, pretos odeiam a ridícula tutela da branquitude marxista!»

Resposta:

É uma palavra composta criada pontualmente a partir do elemento afro-1, forma reduzida de africano, e mimizento, um sinónimo de mimado que se usa na linguagem informal do Brasil (cf. Dicionário Informal, consultado em 07/01/2021).

Com esta palavra, de intenção depreciativa e ofensiva, o seu criador pretende atacar os militantes antirracistas, em especial, os de ascendência negra africana, acusando-os de as suas reivindicações terem razões fúteis.

O vocábulo foi usado reativamente, na sequência da notícia segundo a qual os descendentes do escritor Monteiro Lobato (1882-1948) tencionam reeditar a obra deste autor extirpada de termos racistas (ler aqui).

 

1 Em casos como os de afrodescendente, o elemento afro- também pode encarado como uma unidade prefixal. Nesse caso, dir-se-á que afromimizento é uma palavra derivada por prefixação.

Pergunta:

Uma amiga minha da zona de Aveiro falou-me da existência do termo "ressolho" ou "rossolho" aplicado no sentido de «estar-se mal vestido, mal arranjado».

Contudo, apenas conheço os vocábulos ressolho, com sentido de «redemoinho produzido nos pegos dos rios, quando há cheia», e de ressolhar, no sentido de «sentir-se (o cavalo) incomodado com os efeitos do sol forte».

Como se explica, então, o uso oral do termo que apresentei no início?

Muito obrigada!

Resposta:

Nas fontes disponíveis1, apenas se regista ressolho, de origem obscura, com os significados indicados pela consulente. Quanto a ressolhar, trata-se de verbo que terá outra origem, no castelhano resollar, «resfolegar», um derivado de sollar, «soprar» (cf. Infopédia e Dicionário Houaiss)

Note-se, mesmo assim, que o uso documentado na zona de Aveiro é digno de registo, até porque pode ser devido a extensão semântica. Com efeito, por metáfora, uma pessoa mal arranjada pode evocar um redemoinho. Por outro lado, o uso aveirense de ressolho pode aproximar-se de outros itens lexicais.

Assim, admitindo a variação que dialetalmente se verifica na realização das vogais átonas, não é impossível que o registo normativo de ressolho seja compatível com uma variante (não atestada) com a forma "rossolho".

Além disso, o autor ilhavense Domingos Freire Cardoso,em Palavras co Bento no Leva, consigna, em relação ao léxico do dialeto de Ílhavo, o vocábulo reçoeiro, no sentido de «ponta do cabo que ficava em terra e servia para puxar uma das mangas da rede; pescador que na ré do meia-lua  vai largando o reçoeiro». Na mesma obra, regista-se a variante ressoeiro, com os mesmos significados, mas ainda com outros, que terão emergido por extensão semântica: «pessoa atrasada; último». Não é impossível que de ressoeiro, talvez alterado como "ressolheiro" (não atestado) ou amalgamado com uma palavra terminada com o sufixo -olho, de valor depreciativo (p. ex. zarolho), se tenha formado re...

Pergunta:

Como bem se sabe, o género do nome bebé não está marcado morfologicamente, mas sim sintaticamente através do uso, por exemplo do artigo definido («o bebé»/«a bebé»).

Não obstante, casos há em que não é possível recorrer a essa diferenciação através de um determinante, pelo que é habitual, ainda que também sintaticamente, estabelecer a diferença de género com o recurso à justaposição dos nomes menino ou menina (p. ex.: «Vende-se roupa de "bebé menina”»).

Ainda que seja infrequente encontrar tal composição hifenizada, não estaríamos perante um caso de uma palavra composta através da justaposição de dois elementos de natureza nominal que, além de manterem o seu próprio acento, formam também uma unidade sintagmática e semântica (à semelhança da já lexicografada bebé-proveta), pelo que deveria ser grafada com hífen (p. ex. “bebé-menina”/“bebé-menino”)?

Agradeço, desde já, a vossa resposta e atenção!

Resposta:

O que é exposto pelo consulente constitui uma excelente fundamentação para o uso do hífen em associações lexicais que incluam menina e menino. Contudo, à luz da ortografia em vigor e dos atuais registos dicionarísticos1, não se pode dizer que o hífen seja estritamente obrigatório nestas associações lexicais.

É verdade que, a reforçar a necessidade de um hífen, existe a noção de determinante específico, que tem aceitação na lexicografia brasileira e abrange, por exemplo, o uso de mãe como segundo elemento na formação de compostos. Leia-se, a propósito desta palavra, a nota de gramática e uso que lhe dedica o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (1.ª edição, 2001, s. v. mãe):

«vindo após outro substantivo, ao qual se liga por hífen, [mãe] é um determinante específico e significa "fonte", "origem" (navio-mãe, idéia-mãe, célula-mãe), "geratriz" (rainha-mãe), "principal", "mais importante" (agulha-mãe, nave-mãe); anteposto, significa "que é mãe" ("a mãe-leoa defende até a morte seus filhotes"), "origem", "lar" (mãe-pátria, mãe-Terra

Ainda segundo o Dicionário Houaiss, também o vocábulo mulher se emprega como determinante específico, mas, neste caso,nem sempre com hífen:

«empregado também apositivamente (determinante específico que significa "relativo à feminilidade, às qualidades ou aos atributos femininos, ou o aspecto ou os elementos femininos da personalidade") em: a) locuções: menina mulher; filha mulher; b) comp...

Pergunta:

Antes de mais, muito obrigado pelo vosso trabalho e competência, que ao longo dos anos me têm sido muito úteis. O vosso serviço é uma belíssima escola!

Gostaria de perguntar se é possível utilizar a palavra "capelã" como feminino de capelão.

Tenho procurado – possivelmente mal –, mas não tenho encontrado o termo.

Muito obrigado.

Resposta:

Agradecemos com satisfação as suas palavras de apreço.

A forma capelã está correta, mas a sua ausência dos dicionários parece dever-se a razões extralinguísticas, talvez ligadas  ao facto de serem ainda raras as mulheres a exercerem funções de capelão (ou, por outra, capelã).

Nas fontes consultadas, não se assinala que, no contexto da Igreja Católica, seja possível possível atribuir a responsabilidade dos ofícios religiosos de uma capela a uma mulher. Contudo, no contexto das igrejas protestantes, nota-se que ocorre a forma capelã.

Pergunta:

Pensava eu que só em Portugal se dizia «Para/a si, de si, por si, consigo» fora do valor reflexivo, mas leio Nelson Rodrigues e tenho uma surpresa com a reprodução dum diálogo:

«Dr. Alceu, reze menos por mim. Se quiser, não reze nada. Mas seja meu amigo. Apenas isso: — meu amigo. E, se insiste em rezar, vamos fazer uma permuta: o senhor reza por mim e eu rezo POR SI.»

A crônica foi escrita em dezembro de 1967, mas o facto deve ter ocorrido uns dez anos antes, pelo que conheço do coleguismo de Alceu Amoroso e Nelson Rodrigues.

A primeira pergunta é: o autor estava imitando um procedimento típico de Portugal ou já existia no Rio à época? Fico um tanto dúbio porque até a primeira metade do século XX lá ainda se usava a segunda pessoa do singular corretamente. Quando surgiu este valor do pronome si em Portugal? Isto é, quando deixou de ter só valor reflexivo?

Resposta:

Agradecemos a informação.

No Corpus do Português, não encontramos ocorrências de si com valor de 2.ª pessoa do singular anteriores ao século XIX, que, como se espera, se detetam em textos de autores portugueses oitocentistas (Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis).

Não obstante, também se pode identificar este uso em cartas de Machado de Assis, o que pode sugerir que, pelo menos, na cidade ou na região do Rio de Janeiro, não era desconhecido.