Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Há uns tempos, durante uma curta viagem pelo concelho de Mirandela, deparei-me com a existência de um topónimo muito peculiar, que assumia, na sinalização local, duas grafias: Suçães ou Sucçães.

Algumas fontes relacionam imediatamente a origem de Su(c)çães com a presença de «uma propriedade rústica anterior à Nacionalidade», ou seja, uma villa romana, cujo nome terá evoluído, posteriormente, para Suxães (segundo as Inquirições de D. Afonso III).

Gostaria de saber se, conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, a grafia deste topónimo deve ser originalmente mantida (enquanto Sucçães) ou alterada para Suçães...

Muito agradeço os vossos esclarecimentos.

Resposta:

O topónimo transmontano em questão escreve-se Sucçães conforme a ortografia de 19451, mas Suçães no quadro da norma em vigor, a do Acordo Ortográfico de 19902.

Trata-se de um topónimo muito curioso, porque a grafia com , que a ortografia de1945 fixava, não tem explicação clara, podendo até ser muito discutível.

É verdade que o topónimo aparece sob a forma Suxaes nos Portugaliae Monunenta Historica. Leges. vol VIII (1961), na transcrição das Inquirições de Afonso III. No entanto, não é líquido que tal x fosse a representação gráfica de uma pronúncia medieval correspondente a [ks] (o valor de x em táxi, por exemplo).

Com efeito, pensando que do latim traxui resultou trouxe, que no português padrão soa "trosse", com [s] – apesar de dialetalmente ainda se dizer "trouxe", com o x de baixo, cujo símbolo fonético é [ʃ] –, seria de esperar que, num topónimo com origens medievais e transmitido por via popular, a sequência consonântica [ks] se simplificasse também como segmento simples, a soar [s] ou [ʃ]. Além disso, a consulta das Inquirições de D.Dinis de 1288 parece exibir a forma com apenas um ç, tal como o atual Suçães3. Quase quinhentos anos mais tarde, as 

Pergunta:

Como de fato se escrevem as palavras "Fulani", "Fiji", "Mali", "Bali", "Omani", "Origami", "Tsunami", "Maori", "Hindi", "Bengali", "Somali", já que parece que todas são paroxítonas, embora não tenham acento?

Obrigado.

P.S.– Parabéns a todos que fazem este excelente trabalho no Ciberdúvidas, que é um dos grandes baluartes atuais de nossa língua!

Resposta:

A maior parte dos casos mencionados na pergunta estão fixados pela ortografia, recomendando-se que seja pronunciados como palavras oxítonas: Fiji, Mali, Bali, omani (ou omanense), origami, tsunami, maori, hindi, bengali, somali.

Dentro deste conjunto existem as seguintes variantes paroxítonas. também corretas: tsunâmi, híndi.

Quanto a fulani (adjetivo e substantivo) e Fulani (substantivo usado como etnónimo) – formas alternativas a fula/Fula1 –, são estas formas ainda pouco usadas e ainda em fase de estabilização quanto à sua generalização nos registos lexicográficos em fontes de referência. Em todo o caso, tal como estão atrás grafadas, também se pronunciam como oxítona – cf. Infopédia.

Em nome da equipa do Ciberdúvidas, aqui ficam expressos os agradecimentos pelas estimulantes palavras de apreço no final.

 

1 Fula é a denominação de um grupo étnico que se encontra em vários países da África Ocidental, entre eles, a Guiné-Bissau. A língua ou sistema de dialetos fulas têm sido integrados na família nigero-congolesa.

Cf. 

Pergunta:

No Brasil, é generalizado o uso de azeite para designar óleos, como na expressão «azeite de dendê».

Como consequência, a expressão «azeite de oliva», para se designar o óleo do fruto da oliveira, é típica no país (apesar de que, em Portugal, é considerada pleonástica).

Por isso, pergunto-lhes, há alguma relação entre os termos oliva e óleo, que seriam, nesse caso, os equivalentes de origem latina dos termos de etimologia árabes azeitona e azeite, respectivamente?

Muito obrigado pelo seu excelente trabalho! Desejo-lhes um ótimo ano!

Resposta:

É adequada a descrição que é feita na pergunta sobre a palavra azeite (do árabe zayt, «óleo, essência, azeite») e do contraste existente entre os respetivos usos no Brasil e em Portugal1. No Brasil, é, portanto, frequente a expressão «azeite de oliva», enquanto, em Portugal, se diz apenas «azeite», uma vez que empregamos óleo, em todos os outros casos.

Também se confirma aqui que entre oliva e óleo há uma relação etimológica muito estreita, porque são palavras que partilham o mesmo radical latino, que tinha duas variantes ole- e oli-. Com efeito, óleo vem do nome latino oleum, que significava «azeite», e oliva é adaptação de oliva, que em latim designava a árvore (oliveira) e o fruto chamado correntemente azeitona, ou oliva, que isoladamente ocorre menos (sobretudo em Portugal).

Assinale-se que as palavras latinas constituíam adaptações de duas palavras do grego antigo: com efeito, oleum corresponde a élaion, ou («azeite de oliveira»); e oliva, a elaía, as («azeitona; oliveira»).

Acrescente-se, por último, que azeitona (como o espanhol aceituna) vem do árabe dialetal hispânico (ou árabe andalusi) azzaytúna, que equivale ao árabe clássico zaytūnah, por sua vez um empréstimo da língua aramaica, com a forma zaytūnā, diminutivo de zaytā, «azeite», neste último idioma2. O topónimo português Azeitão (Setúbal) tem origem na mesma raiz árabe, na forma zaytún, «oliveiras», plural de zaytúna3.

 

1 Em espanhol, também se emprega o termo correspondente, aceite, para designar não só o azeite de oliva (ou, numa perspetiva mai...

Pergunta:

Sobre as novas medidas que começam às 00h de 15 de janeiro, ou seja, no inicio de sexta-feira, podemos dizer 00h e meia-noite?

Por exemplo, as novas medidas começam à meia-noite de sexta-feira? É a mesma coisa (tal como 12h é o mesmo que meio dia)?

Obrigado e feliz 2021,

Resposta:

A meia-noite de 14 coincide com as 00h00 do dia 15.

Em todo o caso, dizer «meia-noite», por um lado, e usar 24h00 ou 00h00, por outro, é empregar expressões que decorrem de perspetivas diferentes, mas que na prática querem dizer a mesma coisa.

Ainda assim, convém atentar no seguinte:

– Quando se diz «à meia-noite do dia 14», a referência vai para as 24h00 do dia mencionado, ou seja, marca o fim do dia mencionado, e não o princípio do dia seguinte, ou seja, as «00h00 do dia 15». É, portanto, estranho que se diga – por exemplo, como aqui se anuncia – que as medidas de confinamento são aplicadas a partir «da meia noite de sexta», quando o que se quer dizer realmente é que começam às 00h00.

– A expressão «meia-noite» – como acontece com as suas congéneres em espanhol, francês, italiano, inglês... –, é uma expressão tradicional e, portanto, surgida em tempos em que o tempo não era marcado pelo ciclo de 24 horas. Em galego, regista-se medianoite como «hora duodécima despois de mediodía, que marca a transición dun día a outro» (dicionário da Real Academia Galega). Mas em francês a definição pode ser mais clara, e associa-se minuit ao final do dia, e não às 00h00 do dia seguinte: «Heure du milieu de la nuit, la douzième après midi, la vingt-quatrième d'un jour» (tradução livre: «hora do meio da noite, a décima segunda depois do meio-dia, a vigésima quarta do dia»; Trésor de la Langue Française).

 – Tem sido este também o uso de meia-noite em português, como Maria Helena de Moura Neves assinala no seu 

Pergunta:

A respeito da origem da nasalidade em mui/muito, José Joaquim Nunes, no seu Compêndio de Gramática Histórica (1975[1911]), afirma o seguinte:

«embora MUI e MUITO sejam formas clássicas, nas cantigas 38 e 453 do Cancioneiro da Ajuda [séc.XIII], aparecem já nasaladas, como mostram as grafias MUYN e MUINTO donde se conclui não se moderna na língua a nasalização(...).»

Já o gramático Said Ali, na sua Gramática Histórica da Língua Portuguesa (1964[1931]), pensa diferente:

«No extraordinariamente usado MUITO , foi tão tardia a mudança, que o cantor d'Os Lusíadas [séc. XVI] ainda podia dar-lhe para rima FRUITO e ENXUITO. Não se sabe a data da alteração definitiva, porque em MUITO e MUI nunca se assinalou – caso único – a vogal nasal pela escrita. Que em português antigo se pronunciava a tônica como U puro e fora de dúvida, porque, em caso contrário, não lhe faltaria o til, sinal tão profusamente usado naquela época.»

1) O Cancioneiro da Ajuda é do séc.XIII, e Os Lusíadas do séc. XVI, qual dos estudiosos está certo ?

2) Há atualmente consenso entre os estudiosos a respeito de um período específico sobre o começo da nasalidade em mui e muito?

Grato pela resposta.

Resposta:

É difícil dizer qual dos dois estudiosos está certo – e talvez a pergunta até tenha de se formular de outra maneira.

Com efeito, o indício de mui e muito já se pronunciarem com nasalidade não é incompatível com a sua pronúncia oral, nem com a rima que possam estabelecer com os arcaísmos fruito e enxuito. Aliás, o que J. J. Nunes diz é que, pela leitura dessas ocorrências, se pode supor já haver nasalização, o mesmo é dizer que a pronúncia tinha passado definitvamente a ser nasal.

Na verdade, o que se deve ter passado corresponde a uma situação de variação linguística, em que as formas orais e as formas nasalizadas existiam em simultâneo no uso. De resto, nos dialetos setentrionais portugueses subsistem formas com ditongo oral, tal como acontece em galego. Além disso, não é seguro que a leitura que J. Joaquim Nunes faz das cantigas do Cancioneiro da Ajuda (ver também aqui) seja seguramente a de um sinal de nasalidade. Hoje sabemos que, na escrita medieval há vários diacríticos que podem não ser exatamente os dos dias de hoje.

Em suma, a nasalidade de mui e muito pode existir desde o período galego-português. Além disso, não é impossível que coexistisse com a pronúncia oral até bastante tarde, até aos séculos XVII ou XVIII.