Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O termo "hipospádias" (género masculino), ou "hipospádia" (género feminino) é frequentemente utilizado em Urologia.

Como apenas encontro registado o termo hipospadia (género feminino), qual é, de facto, a designação correta?

Resposta:

Do ponto de vista linguístico, recomenda-se a forma hipospadia, «anomalia congénita da posição do meato urinário que abre na face inferior do pénis ou mesmo no períneo»1, com acento tónico na sílaba -di- (soa "hipospadía"), porque é a que se regista sistematicamente como nome feminino em diferentes dicionários e vocabulários ortográficos2.

No entanto, existe margem de tolerância para variantes, como se assinala, por exemplo, no Dicionário Houaiss, a propósito do elemento de composição -spadia:

«[-spadia] pospositivo, do radical grego spad- + -ia (sufixo. formador de substantivos abstratos), tal radical é ampliação do radical. spa- do verbo spáō "retirar, extrair, arrastar; fig. engolir, devorar; dilacerar" ocorrente em spadiks, ikós "ramo arrancado", spadón, ónos "extração, espasmo", spádón, ontos "eunuco" (> português espadão "homem castrado"); a variação prosódica spadía/spádia certamente se deve à flutuação entre a prosódia grega e a latina; ocorre ainda a possibilidade de um -s final cuja presença é de difícil explicação visto que não parece estar necessariamente indicando o número plural; é igualmente de difícil explicação a oscilação de género masculino/feminino, parece razoável apontar-se o género feminino como o normal para todos os vocábulos formados com este elemento de composição; ocorre na terminologia médica do séc. XIX em diante: anaspadia, anaspádia, ...

Pergunta:

A utilização do termo onfalocelo, hidrocelo, espermatocelo e varicocelo são utilizados commumente em patologia cirúrgica do recém-nascido, da criança, do adolescente e do adulto, mas só encontro registados os termos onfalocele, hidrocele, espermatocele e varicocele, todos com o género feminino.

Qual o termo correto?

Resposta:

Do ponto de vista histórico-linguístico, recomendam-se as formas formadas com -cele, um elemento de composição com origem no grego kḗlē, ēs, com o significado de «tumor, hérnia».

Como se observa no Dicionário Houaiss:, -cele constitui um «pospositivo, do grego kêlé, és "tumor, hérnia" [, que] ocorre já em vocábulos originariamente gregos, broncocele (bronkokḗlē), já em cultismos das biociências, em especial da medicina, a partir do séc. XVIII, para designar tumorações ou herniações [...].»

Seguem-se os significados dos termos em questão, de acordo com o dicionário de termos médicos da Porto Editora (Infopedia):

espermatocele: «distensão quística do epidídimo ou da rede testicular»;

hidrocele: «acumulação de líquido (seroso, hemático, purulento) na túnica vaginal do testículo ou no tecido que envolve o cordão espermático»;

onfalocele: «hérnia umbilical»;

varicocele,:«dilatação varicosa das veias do cordão espermático (testículo) ...

Pergunta:

Qual será a tradução apropriada para o termo inglês outlier?

Resposta:

Depende do contexto, como se verifica pela consulta do dicionário inglês-português da Infopédia., onde o vocábulo encontra as seguintes traduções:

«nome 1. indivíduo que não reside na localidade onde exerce atividade; 2. animal que vive isolado; 3. anexo, edifício separado do principal; 4. GEOLOGIA maciço isolado; 5. (estatística) valor ou pessoa que, numa média, apresenta um grande afastamento em relação aos demais da amostra».

Um outlier pode, portanto, denotar alguém ou alguma coisa que fica de fora de determinado padrão, situação que pode até ser muito posiiva1. Falando-se de estatística, um outlier corresponderá, portanto, a «valor dispcrepante», «valor atípico», «valor aberrante» – cf. Linguee.

 

1 É o caso do uso de outliers no título uma obra de não ficção de Malcolm  Gladwell – Outliers: The Story of Success (2008) –, cujo título pouco foi alterado na tradução publicada em Portugal, Outliers. História do Suces...

Pergunta:

Não me parece que haja controvérsia quanto à normal culta pressupor que uma pessoa se sente «ao piano», jamais «no piano», quando se quer expressar que se tenha sentado no banco do instrumento para executar uma obra musical. Depois desse estágio, começam minhas dúvidas.

Sei que Napoleão Mendes de Almeida acolhe «tocar ao piano» e condena "tocar no piano". Entretanto tocar (ou executar) "no piano" (executar uma obra por meio do instrumento) é indiscutivelmente errado no que tange à normal culta?

Além disso, quando a construção se transforma um pouco e se faz uso de "execução" ou "performance", então também "execução no piano" e '"performance no piano" são construções condenáveis, tornando-se imprescindível o uso de "execução ao piano" e "performance ao piano"?

Muito obrigado!

Resposta:

Se a pergunta é relativa à utilização do piano, o uso indiscutivelmente correto é «tocar piano», sem qualquer preposição.

Mas é possível «tocar ao piano», quando se refere a interpretação de uma peça musical com uso de um piano – ou seja, «ao piano»:

(1) «Se ao menos tivesse uma irmã, inteligente e poética! Fazia-o suspirar, cerrar os olhos, a ideia de uma mulher de alma romântica, que o amasse, recebesse, reconhecida, a revelação das suas sensibilidades e para o acalmar lhe soubesse tocar ao piano melodias de Weber ou árias de Mozart!» (Eça de  Queirós, A Capital, 1925, in Corpus do Português).

(2) «A Gioconda tocava ao piano o seu Chopin, Noturno n.° 2» (Erico Veríssimo, O Tempo e o Vento, parte 3, tomo 2, ibidem).

Quanto a «sentar-se ao piano», é expressão elíptica por «sentar-se ao piano para/a tocar (este instrumento)»:

(3) «De repente, sai do quarto, vem à sala de visitas, grita pela irmã, fá-la sentar ao piano, obrigando-a a tocar a "Bamboula [...].» (Lima Barreto, Diário Íntimo, ibidem)

Que levantem reservas quanto a «sentar-se no piano» é mais discutir uma questão de ambiguidade – a  expressão pode entender-se literalmente, como «sentar-se em cima do piano» – do que achar-se em presença de uma incorreção. Na verdade, ao contrário do que diz o consulente, o gramático Napoleão Mendes de Almeida não condenava «tocar no piano», muito pelo contrário, pois censurava «ao piano», que, segundo ele, era um galicismo a evitar (Gramática Metódica da Língua Portuguesa, p. 292):

Pergunta:

Se alguém escrever «andaste comigo à escola?» está a cometer algum erro?

Bem sei que a expressão «andaste comigo na escola?» é mais frequente, mas a primeira sendo mais antiga está formalmente incorreta?

Obrigado.

Resposta:

A expressão em causa, que não foi possível encontrar atestada noutra fonte que não a da pergunta que é feita, tem cabimento na comunicação mais informal, mas arrisca-se a ser vista como um erro noutros contextos. Em situações que requeiram menos familiaridade, emprega-se a expressão mais corrente: «andaste/andou/andaram comigo na escola».

Pode tratar-se de um caso de analogia com «ir à escola». Contudo, é importante assinalar que o verbo andar ocorre em muitas expressões populares, e aparece em algumas como abreviação de «andar a apanhar» no sentido de «andar a colher» ou «andar à procura»: «andamos aos figos», «andava à azeitona», «andou à amêijoa». Um exemplo deste último caso:

(1) «Cheira a maresia. Na maré baixa há centenas de vultos na água, andam à amêijoa. » ("Bruno Vieira Amaral no lugar do morto", Público, 21/04/2017 )

A esta construção pode associar-se uma expressão que exprima companhia: «andava comigo à amêijoa», ou seja, «andava comigo a apanhar amêijoa» ou «na apanha da amêijoa». É possível que esta construção tenha contaminado «andar (com alguém) na escola» (equivalente a «ser colegas na mesma escola»), e daqui tenha resultado «andar com alguém à escola» – mas não se encontraram fontes seguras que legitimem esta hipótese.

Observe-se ainda que a falta de dados sobre a construção não permite confirmar que seja mais antiga que «andar com alguém na escola».

 

N. A. (07/06/2021) – Um consulente identificado, a quem agradeço a partilha, comunica-me que a expressão «andar à escola» encontra registo numa edição de 1902 do livro Cantos populares portuguezes, de...