Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Por favor, qual a acentuação tónica na palavra Madagascar?

Obrigado.

Resposta:

Escreve-se Madagáscar, com acento agudo na sílaba -gas-, conforme se pode confirmar pelo Vocabulário da Língua Portuguesa (1966) de Rebelo Gonçalves, pelo Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa (1999) da Academia Brasileira de Letras e, mais recentemente, pelo Código de Redação do português nas instituições europeias.

Contudo, também é possível Madagascar, sem acento gráfico, portanto, com acento tónico na sílaba -car, como se comenta no Dicionário Houaiss: «[...]em português o nome grafa-se Madagascar ou Madagáscar: Madagáscar, paroxítona, adotada em Portugal, já se registra nos Lusíadas (X, 137, 8); Madagascar, oxítona, seria preferível pela analogia com numerosos oxítonos em -ar da língua portuguesa, dentre os quais outros nomes de origem malaia, como Zanzibar, Malabar, Macassar, todos pronunciados com acento oxítono.»

Registe-se que, em Portugal, há muito que a forma Madagascar é rejeitada. Em Topónimos e Gentílicos (1941), de Xavier Fernandes, Madagascar figura entre as «formas estrangeiras ou mal aportuguesadas» (p. 65). No Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947), Rebelo Gonçalves é perentório: «Proscreva-se...

Pergunta:

Não sei se é só no Brasil, mas aparece-me que é de comum acordo aqui que feito pode agir como conjunção.

Por exemplo: «Meu pai está feito um padre»; ou «Ele chorou feito uma mulherzinha».

É correto dizer isto? Não será o caso de uma inversão de termos («Feito uma mulherzinha, ele chorou»/ «Feito um padre, meu pai está»)? Se for conjunção, a norma abona o uso?

Resposta:

É uso que se aceita como característico da língua popular, mas que geralmente se rejeita quando se trata de falar e escrever formalmente. Quanto à necessidade de inversão, é esta possível, mas sem constituir de maior ou menor gramaticalidade.

O Dicionário Houaiss consigna o uso de feito como conjunção, identificando-o como brasileirismo: «conjunção (...) conjunção comparativa.  Regionalismo: Brasil. (...) como, do mesmo modo que, tal qual. Ex.: trabalha f. burro de carga.» O Dicionário Priberam regista esta função conjuntiva de feito: «conjunção (...). [Brasil] Usa-se para ligar frases por subordinação e indica comparação (ex.: o ódio alastrou feito uma epidemia; soldados choravam feito crianças).»

A linguista brasileira Maria Helena de Moura Neves confirma que «o particípio passado de fazer é forma verbal gramaticalizada, na linguagem coloquial, como conjunção comparativa ("como"): "Deixou a gente largada no mundo, feito cachorro sem sono, casou e foi morar na roçada sogra dele. (...)"»(Guia de Uso do Português, Editora Unesp, 2003).

Este uso é conhecido em Portugal, mas parece menos frequente (a secção histórica do Corpus do Português não faculta atestações) e não exatamente com a mesma sintaxe. Com efeito, observa-se que, entre falantes portugueses, feito pode ocorrer com função descritiva, mas sujeitando-se às regras da concordância: «Fiquei à espera fei...

Pergunta:

Corre em Portugal usarem o pronome de caso reto ele como objeto? Por exemplo: «Eu amei "ela".»

Foi uma invenção do Brasil ou teve origens com os portugueses que cá vieram?

Resposta:

É uma tendência que já devia existir na língua à data da independência do Brasil1.

Hoje em dia, no português falado em Portugal, nota-se que é frequente ocorrer ele/ela no lugar de o/a depois de verbos de perceção (ver, ouvir) e verbos causativos (mandar, deixar):

(1) Vi ele maltratar o cão. [em vez do correto «vi-o maltratar o cão]

(2) Deixou ele ir sozinho ao médico. [em vez do correto «deixei-o ir sozinho]

Observe-se, porém, que, mesmo coloquialmente, é rara ou nula a ocorrência de ele/ela com a função de complemento direto em frases simples e orações finitas. Na fala espontânea, diz-se, portanto, «vi-o/a ontem» e «deixei-o/a aqui».

Parece, portanto, que o português coloquial do Brasil generalizou esta tendência a todos os contextos de objeto direto.

 

1 Cf. Gramática do Português, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, p. 2257.

Pergunta:

Ultimamente ouço pessoas (sobretudo adolescentes, em particular o meu filho) usar a expressão “meter graça”.

Não me parece uma alternativa correta à expressão “ter graça” e gostaria de pedir o vosso esclarecimento.

Obrigado.

Resposta:

A forma tradicional e correta da locução em apreço é «ter graça».

Como se sabe, muitos adolescentes costumam empregar termos do calão e da gíria, bem como inovações (deturpações e verdadeiras inovações) lexicais e sintáticas, de maneira a afirmarem-se como indivíduos e como grupo perante as convenções dos adultos – da família à escola e às autoridades.

Em lugar de «ter graça», que continua a ser a forma que a locução tem e deve ter, documenta-se, na verdade, a expressão «meter graça», por exemplo, numa canção rap do cantor Sam, the Kid.

Pergunta:

«Tebaldo – Como! Sacas da espada contra uns pobres corçozinhos sem força? Aqui, Benvólio! Vem encarar a morte!» (SHAKESPEARE, W. Romeu e Julieta e Tito Andronico. trad. de Carlos Alberto Nunes. 14.ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 21. ISBN 85-0040978-9).

Encontrei esta construção – o verbo sacar + a contração da – durante a leitura da edição acima referenciada, mais de uma vez, tanto na primeira quanto na segunda obra shakespeariana.

Minha intuição aceita o seu uso, mutatis mutandis, com o verbo no infinitivo, tal como em «O sacar da espada contra uns pobres corçozinhos sem força», ou mesmo com o substantivo saque", a saber: «O saque da espada contra uns pobres corçozinhos sem força.»

Entretanto, o seu uso como no excerto acima citado me causa estranheza, porque para se sacar da espada seria necessário se sacar algo dela, e não a própria espada. Portanto, eu gostaria que me explicassem – não para desafiar o saudoso tradutor Carlos Alberto Nunes, mas para aprender – se está correta essa construção e porquê.

Desde já, sou-vos muitíssimo grato.

Resposta:

A construção está correta, pois verbo sacar emprega-se com ou sem a preposição de em referência ao objeto da ação de sacar.

No seu Dicionário Prático de Regência Verbal, o gramático brasileiro Celso Pedro Luft (1921-1995) regista os dois usos como gramaticais:

«Sacar revólver (da cinta), a espada (da bainha). Sacar do revólver, da espada. "É bom no gatilho, saca rápido” (Aurélio).»

Em observação, o mesmo autor acrescenta, citando o gramático e lexicógrafo Antenor Nascentes (1886-1972): «"O posvérbio de traz idéia de utilização do instrumento sacado” (Nascentes, 1960: 186).»1

Observe-se que a diferença entre uso transitivo direto e uso preposicional é mínima, como se infere da primeira abonação de uma das aceções deste verbo no Dicionário Houaiss: «transitivo direto, transitivo indireto e intransitivo 1.1 tirar para fora, bruscamente e com violência; arrancar, puxar em ameaça. Ex.: sacar (d)o sabre; pistoleiro que saca com muita agilidade

Note-se, por último, que a possibilidade de o objeto de sacar se realizar como constituinte sintático preposicionado não se deve confundir com outra possibilidade entre os usos de sacar – a de este verbo, na aceção de «tirar para fora bruscamente», selecionar um objeto direto e um objeto indireto que marca o lugar donde se retira alguma coisa com brusquidão: «Sacar a carteira do bolso» (Luft, op. cit.).

 

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