Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Há, notadamente, diferenças na grafia dos nomes dos países e das cidades no Brasil e em Portugal, como Irã e Irão; Moscou e Moscovo, Liechtenstein e Listenstaine/Listenstaina. Gostaria de saber o verdadeiro porquê disso.

Parece-me – mas não sei se estou certo disso – que as formas europeias são tentativas de um aportuguesamento maior, para talvez enfatizar o gênero do nome do país, e que as formas brasileiras são, limitadamente, tentativas de aproximar a grafia e a fonética da forma local.

Estou certo disso? Qual o verdadeiro motivo dessas diferenças?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se de diferentes formas de adaptar legitimamente os topónimos em questão. O Brasil e Portugal são países que estão politicamente separados e, portanto, foi inevitável que essa realidade política tivesse repercussão em vários planos linguísticos, designadamente quando se tratava de fixar nomes estrangeiros que, até ao momento da separação, tinham pouca ou nenhuma tradição em português.

Contudo, não se pode aqui confirmar inteiramente as grandes tendências que o consulente propõe a respeito das duas variedades.

Com efeito, começando por Irã, esta é adaptação do francês Iran, que em Portugal passou a Irão, por razões que não são óbvias, mas poderão ir ao  encontro do que o consulente classifica  de tentativa de «um aportuguesamento maior, para talvez enfatizar o gênero do nome do país». Na verdade, sendo nome masculino («o Irã»), poderia parecer estranha a terminação , geralmente identificada com o género feminino. Mas também pode ter ocorrido a analogia com os casos como Afeganistão, Indostão, que se referem a países ou  territórios vizinhos do Estado assim chamado. São conjeturas que não se levam mais longe nesta resposta.

Sobre Listenstaine/Listenstaina, nota-se este nome tem tido certa instabilidade. Em Portugal, tem-se usado Liechtenstein, apesar de, pelo menos, desde 19402, se registar Listenstaina como forma vernácula. Mesmo assim, mais recentemente o Código de Redação do português para a União Europeia optou por Listenstaine, cuja sílaba final -ne em português soa quase como o -n final da forma alemã.

Quanto à forma Moscou, tida por francesismo, parece ter tido uso em Portugal, ma...

Pergunta:

"Má-fama" ou "má fama"?

Por exemplo, «uma mulher de má fama» ou «uma mulher de má-fama»?

Resposta:

Escreve-se «de má fama», sem hífen e no sentido de «com má reputação» (cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).  O nome fama, sem adjetivação, tem geralmente sentido favorável, mas igualmente ocorre a expressão «boa fama», também não hifenizado.

Assinale-se que dicionário da Academia das Ciências de Lisboa inclui esta expressão no artigo de fama, como sinónimo de reputação:

«3.Opinião pública sobre uma pessoa ou coisa.REPUTAÇÃO. Os produtos desta empresa têm muito boa fama. O rapaz tem má fama por causa do seu  comportamento e da vida que leva. Casa de má [fama]; pessoa de má [fama]; ter boa, má [fama].»

Note-se, porém, que o adjetivo afamado, correspondente a fama, entra na formação dos adjetivos mal-afamado e bem-afamado, ambos grafados com hífen (cf. Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, do Instituto Internacional da Língua Portuguesa).

Pergunta:

«O Manuel, tarimbado em discursos, tomou a palavra.»

«Em» é a regência correcta de tarimbado?

Como sempre, grato pelos vossos esclarecimentos.

 

O consulente escreve de acordo com a norma ortográfica de 1945.

Resposta:

É uso correto.

Tarimbado é um particípio adjetival (de tarimbar1), que o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista como brasileirismo com o significado de «que é experiente, que tem tarimba». No entanto, a consulta de outros dicionários portugueses não confirma que se trate de palavra apenas usada no Brasil (cf. também Infopédia  e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

Quanto à construção de regência, segundo fontes brasileiras, associa-se-lhe a preposição em, conforme indica Celso Pedro Luft no seu Dicionário Prático de Regência Nominal:

«TARIMBA s.f. TARIMBADO a., s.m. em: Ter tarimba [experiência]/ser tarimbado em algo. “Antigo e tarimbado em qualquer ramo de atividade” (Aurélio, V. veterano, 3).»

A mesma preposição é atestada no Dicionário Michaelis.

 

1 O verbo tarimbar significa prestar serviço como militar; ser soldado» e deriva (ou melhor, é a conversão verbal) de tarimba, que, além de denotar um «estrado de madeira que serve de cama aos soldados no quartéis e postos de guarda» ou uma «cama rude e desconfortável», significa também «vida de soldado» e, por extensão metafórica, «experiência de vida» (cf. dicionário ...

Pergunta:

Há alguma tendência para considerar o mais-que-perfeito simples «mais passado» do que o mais-que-perfeito composto ou vice-versa?

Por exemplo: «O Manuel foi dar uma volta de automóvel; antes disso, tinha lavado o carro; ainda antes, estivera a pensar no que havia de fazer» ou «O Manuel foi dar uma volta de automóvel; antes disso, lavara o carro; ainda antes, tinha estado a pensar no que havia de fazer»?

Obrigado.

Resposta:

Não há diferença entre as duas formas de pretérito mais-que-perfeito, a simples (lavara, estivera) e composto (tinha lavado, tinha estado): ambos marcam um intervalo de tempo anterior a outro intervalo passado, como se assinala na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 524/525):

«Na maioria dos seus casos, o pretérito mais-que-perfeito simples é praticamente equivalente ao mais-que-perfeito composto [...], muito mais frequente. [...] Corroborando esta equivalência, é possível que os dois tempos coocorram com o mesmo valor temporal: cf. "A Ana tinha visitado o avô, mas não lhe dissera que havia uma maneira de ele sair daquela situação."»

O que se observa na escrita é que ocorrem as duas formas, provavelmente com o intuito estilístico de evitar a monotonia:

(1) «Ah! Era tarde. Muito tarde. Ela bem via que o tinha perdido. Quisera resistir? Quisera fazer--se desejar? Coitada! Que infelicidade!» (João Gaspar Simões, Pântano, 194, in Corpus do Português, de Mark Davies).

(2) «Foi por eles que soube que " seu Jusa " se tinha enforcado e ficara todo um dia pendurado na corda amarrada na trave do tecto da loja [...]» (Castro Soromenho,

Pergunta:

Sempre me pareceu que devemos escrever «dependurar em», mas tenho visto, nomeadamente em textos poéticos, a forma «dependurar de». Está correta? A minha impressão está errada?

Obrigado, desde já.

Resposta:

É uso correto.

Nos dicionários de verbos consultados para dar esta resposta, indica-se que dependurar tem a mesma sintaxe que pendurar, verbo que constrói regência com em, de e sobre1.

Em textos literários do português de Portugal, atesta-se o uso de de associado ao particípio passado dependurado:

(1) «Até com uns pedaços de grilhões dependurados do pulso, e uma espada erguida na mão» (Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires, in Corpus do Português);

(2) «"Ferrageiro e gebo" rugia, entre dentes, ao descobri-lo, dependurado do smoking, a olhar absorto para a casaca dum criado» (João Gaspar Simões, Pântano, 1939, ibidem);

(3) «Acudindo de longe, o Palma vem encontrar o velho dependurado da trave do casebre» (Manuel da Fonseca, Seara de Vento, 1958, ibidem).

 

1 Cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. Celso Pedro Luft, no seu Dicionário Prático de Regência Nominal dá exemplos: «“3. TDpI: pendurar-se de ... Estar suspenso, dependurado ou pendente: Pendurar-se de um galho de árvore. Um filho pequeno pendura-se-lhe do seio. // Pendurar-se em, ...