Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Palavras acabadas em io são às vezes pronunciadas sem o o final no Brasil, que soa [u].

Tal fenómeno se opera em Portugal?

Há um livro que vocês me poderiam indicar para eu ler acerca desses casos?

Muito obrigado!

Resposta:

Pode acontecer nos dialetos da região compreendida entre Portalegre e Castelo Branco (centro interior), mas no quadro mais alargado da perda da vogal final -o:

«[na variedade da Beira Baixa e Alto Alentejo, dá-se a] elisão da vogal final não acentuada [u], grafada , ou a sua realização como [ɨ] [...]:

16 a. [baɫdˈi] baldio b. [k'ɔp] copo c. [tɾ'õkɨ] tronco [...].»

(Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2029, p. 103),

A vogal [ɨ] ocorre no português de Portugal como vogal átona e soa aproximadamente como o e mudo francês.

Pergunta:

Existe alguma diferença de significado entre sorôdio e serôdio ?

A primeira aparece associada à cultivo do arroz.

Com agradecimentos antecipados.

Resposta:

Serôdio, «tardio, fora de tempo», é a forma da norma-padrão e, portanto, indiscutivelmente correta.

A forma sorôdio já é mais discutível, pelo menos, como variante de serôdio, como já no século XVIII, dizia o gramático Madureira Feijó (1688-1741), na sua Orthographia (1734).

Mesmo assim, sorôdio especializou-se e tem uso correto como nome «designativo do arroz de produção de inverno» (José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa).

Pergunta:

Qual é a palavra dentro da língua portuguesa que representa o termo inglês eggcorn?

Parece que às vezes eles usam a palavra oronyms no lugar, mas oronyms em português é outra coisa.

Um exemplo deles para explicar esse fenômeno:

ex. 1: It seemed to happen all over sudden. (errado) ex. 2: It seemed to happen all of a sudden. (correto) [= «parece ter acontecido de repente»]

Um da nossa língua:

ex. 1: «Batatinha quando nasce esparrama pelo chão.» (errado) ex. 2: «Batatinha quando nasce espalha a rama pelo chão.» (correto)

Resposta:

Não há termo português que coincida exatamente com o termo inglês eggcorn. No entanto, o termo reanálise parece capaz de o traduzir adequadamente, apesar de, conceptualmente, ter compreensão mais vasta.

Fala-se em fenómeno de eggcorn, quando uma palavra ou expressão resultam da má compreensão de outras, através da substituição da forma original por outra foneticamente semelhante, cujo sentido também é contextualmente coerente1.

A forma do termo inglês é alusiva ao próprio fenómeno, pois provém da história verídica de alguém que pronunciava eggcorn (literalmente «grão de ovo») por deturpação de acorn («bolota»). Ao que parece, a troca passava despercebida, dada a similitude de eggcorn com a palavra correta (acorn) e a possibilidade de comparar uma bolota a um pequeno ovo. O caso foi relatado pelo linguista norte-americano Mark Liberman no seu blogue Language Log, em 23/09/2003, onde outro linguista, Geoff Pullum, sugeriu em comentário que às deturpações deste tipo se aplicasse a forma que levou à sua identificação, ou seja, eggcorn.

O fenómeno é idiossincrático, isto é, trata-se da deturpação cometida por um indivíduo. Este tipo de confusões pode ser frequente com certos títulos e letras de canções que se conhecem só por ouvido. Um exemplo em português poderia ser o caso de um jovem que dizia "Carminha Miranda" para se referir aos Carmina Burana2, conhecida obra medieval recriada pelo compositor alemão Carl Orff

Pergunta:

«"Ai, meu Deus!", pensou ela, já um tanto ansiosa.»

Na frase acima, está correto o uso da vírgula depois de «Ai»? E o ponto de exclamação também é de rigor?

Obrigado.

Resposta:

Em relação ao caso em questão, não há preceito rígido nem sobre a vírgula nem acerca do ponto de exclamação. O uso é sobretudo interpretativo, o que dá margem para alguma variação correta.

Assim, perfilam-se três opções, da indiscutivelmente correta à menos correta ou adequada:

1.ª  Recomenda-se, pelo menos, uma vírgula entre a interjeição e a expressão «meu Deus», que tem o duplo estatuto de interjeição e de vocativo. O facto de ser interpretável como vocativo reforça a necessidade de, pelo menos, ocorrer a vírgula à esquerda, a demarcar «meu Deus»: «Ai, meu Deus!». Neste caso, a marca exclamativa só ocorre no fim da sequência.

2.ª É possível ainda associar o ponto de exclamação seguido de vírgula: «Ai!, meu Deus.» Note-se, porém, que o ponto de exclamação parece enfatizar a expressividade de ai (p. ex., como reação súbita ou dor repentina ou aguda). O ponto de exclamação final é facultativo e até dispensável, visto sugerir ênfase atribuída em separado às duas interjeições, quando geralmente a ênfase está associada a toda exclamação (ainda que a associação da exclamação às duas expressões não seja opção descabida: «Ai!, meu Deus!» ou, ainda, «Ai! Meu Deus!»).

3.ª Não é impossível dispensar vírgula e ponto de exclamação depois de ai: «Ai meu Deus!». É solução discutível, e muito mais discutível será escrever o ponto de exclamação – «Ai! meu Deus.» Estas duas últimas opções afiguram-se como pouco ou nada recomendáveis.

Pergunta:

Desde há muito tempo tenho escutado na fala diferentes pronúncias nas vogais duplas de palavras como compreender ou cooperação, chegando a escutar variantes como "compriender" (i em vez de e) e "cuoperação" (u em vez de o na primeira vogal), mas não estou totalmente certo se estas pronúncias realmente existem ou não. Portanto, gostaria que me esclarecessem se possível qual é a pronúncia correta ou padrão destas palavras em português europeu e se existem outras variantes.

Desde já o meu obrigado e os meus parabéns pelo site e pelo vosso grande trabalho.

Resposta:

As pronúncias descritas pelo consulente existem e não são sentidas como incorretas, pois fazem parte da norma-padrão.

A pronúncia "compriender"1 é, em Portugal, a indiscutivelmente correta da palavra compreender.

Quanto a cooperação, em Portugal, pode soar "cuuperação" – com u repetido, sendo o primeiro uma semivogal –, forma que se simplifica e chega a "cuperação", apenas com um [u] articuladado, que é pronúncia até predominante2. São ambas variantes correntes e corretas.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as palavras finais de apreço.

 

1 Transcrição fonética: [kõpɾjẽˈdeɾ] (Vocabulário Ortográfico do Português). A semivocalização de e antes de qualquer vogal (átona ou tónica), incluindo e, é fenómeno bem conhecido, que se refere na descrição da fonética e fonologia do português contemporâneo. Ler "Ditongos crescentes e glides em português".

2 Transcrição fonética: [kupɨɾɐˈsɐ̃w] (ibidem).