Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ao consultar a ficha técnica de um programa da RTP 2 (Hamlet, peça de Shakespeare) constatei a referência ao termos dramaturgia e encenação («Dramaturgia: Miguel Graça; Encenação: Carlos Avilez»).

Tendo em conta que o dramaturgo da peça é Shakespeare – e tendo eu visto em vários dicionários que a palavra dramaturgia remete para a arte de escrever peças de teatro –, qual é o sentido de dramaturgia no contexto acima referido?

Aguardando a V. prezada resposta.

Resposta:

O trabalho de adaptar um texto original é também trabalho de dramaturgia, como sugere uma das aceções do termo dramaturgia no dicionário da Infopédia: «arte de escrever textos de ficção, guiões de filmes, histórias para televisão, etc.»

Outras fontes, de caráter mais especializado, confirmam que se usa o termo dramaturgia em referência à «[d]isciplina que reflecte sobre as regras de composição obra dramática ou, atualmente, conjunto de processos de análise aplicados ao texto teatral e à sua passagem à cena e ao público (…)» (Antonino Solmer, Manual de Teatro. Lisboa, Temas e Debates, 2003, p. 48).1

 

1 Agradeço a António Vitorino Rocha a indicação desta referência.

Pergunta:

Escreve-se numa resposta anterior à mesma questão que «Considerar a palavra Homem para representar toda a humanidade é já controverso».

Pondo de lado a questão mais ideológica e cingindo-nos à linguagem falada já desde o «homo» latino, gostaria de saber, por favor, se a palavra deve ser grafada com inicial maiúscula ou minúscula.

Obrigado.

Resposta:

Na aceção de «humanidade» ou «conjunto de todos os seres humanos», não é obrigatório grafar homem com maiúscula inicial.

A consulta de fontes normativas anteriores à aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 e elaboradas em Portugal são omissas quanto ao uso de maiúscula inicial em homem (ver Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940 e, de Rebelo Gonçalves, o Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de 1947, e o Vocabulário da Língua Portuguesa, de 1966).

Mais recentemente, também não se acha menção especial a este caso. Note-se, porém, que o Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira, de 2001) assinala que, na aceção de «a espécie humana; a humanidade», a palavra se escreve frequentemente com maiúscula.

Trata-se, portanto de uma facultatividade, ocorrendo a maiúscula para dar relevo especial à noção ou conceito associado à palavra, convergindo, aliás, com uma possibilidade que tinha preceito para as palavras que designem «altos conceitos políticos, nacionais ou religiosos» (Base XLII, Acordo Ortográfico de 1945).

Se o vocábulo homem for usado para referir um «alto conceito» filosófico, ético e político, então, não será descabido escrevê-lo com maiúscula inicial, uso que encontra numerosas atestações, tem tradição e está correto.

Pergunta:

Não encontro o significado de excramelgado.

Nos dicionários em linha InfopédiaPriberam, assim como no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, no Grande Dicionário de Cândido Figueiredo, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e no Novo Aurélio Século XXI, não consta o termo em questão, e inacreditavelmente digitei a palavra excramelgado no Google, e a resposta foi termo desconhecido.

A seguir segue passo abonatório contendo a palavra em causa, na obra de José Dias Sancho, Deus Pan:

«Lavrador farto (só pra lavoira três parelhas), o excramelgado ajuntara uns vinténs com a corcha do Alentejo e, metendo em conta umas courelas que a mulher herdou para as bandas da Barracha, bem se podia garantir que era a sua uma das casas, mais aquelas da freguesia. O Manuel Tomé! Valha-o Deus… Não conheci eu outra...

Resposta:

Também não foi aqui possível encontrar registo da palavra em questão. Sendo assim, agradece-se ao consulente a abonação que entendeu partilhar com o Ciberdúvidas e com quantos o acompanham.

É vocábulo que não tem registo nem em dicionários gerais nem em obras mais especializadas1. No entanto, parece ser uma formação expressiva a partir de excomungado e palavras como escramelar («arranhar» – cf. Revista Lusitana, vol. XVII, p. 154) e outras começadas por escr- e estr-.

Pergunta:

Gostaria de saber se para além das vibrantes simples – vibrante simples alveolar e vibrante simples retroflexa –, existem outros róticos em posição final de palavra no português de Portugal.

É que posso ouvir um r estranho nalguns portugueses que parece aspirado, por exemplo, nas palavras melhor, mulher, ou assibilado, por exemplo, na palavra sempre, quando o e átono final não é pronunciado.

Caso existam, também gostaria de saber, por favor, que símbolos do Alfabeto Fonético Internacional representam estes róticos.

Faço a pergunta, porque a ocorrência destes sons no português de Portugal não está descrita na bibliografia de consulta essencial para o estudo das diferentes variedades da língua portuguesa que existem em Portugal.

Fico à espera da sua resposta, que antecipadamente agradeço.

Resposta:

Sobre a consoante vibrante simples – ou seja, um rótico, termo usado nos estudos especializados para referir as consoantes vibrantes1 – do português de Portugal, sabe-se, de facto, que há variação na sua pronúncia. Contudo, parecem escassas as descrições que apontem para a articulação aspirada ou assibilada dessa vibrante – sem isto querer dizer que não existam.

Geralmente, trata-se de uma consoante que pode ocorrer em quatro posições:

– entre vogais: nora;

– depois de consoante oclusiva ou fricativa (labiodental)2 e antes de vogal: cruel, gruta, dentro, medronho, sempre, abrir, fresco, livre;

– entre vogal e outra consoante: corta;

– ou, ainda, a fechar palavra – mar.

Em Portugal, esta consoante tem correspondido geralmente a uma vibrante alveolar simples (símbolo fonético [ɾ]), igual ou muito semelhante à que se ouve em espanhol, quando o r é intervocálico (para, ahora). Mas regionalmente – e, com maior frequência, entre falantes mais jovens –, esta consoante é produzida como vibrante simples retroflexa (símbolo fonético [ɽ]), a qual soa próxima do r

Pergunta:

Podemos considerar a forma fadigado já como um arcaísmo, dada a prevalência do uso de fatigado?

Aliás, qual dos termos é mais antigo: fadiga ou fatiga?

Obrigado.

Resposta:

As formas fadigado e fadigar serão arcaísmos, tendo em conta que têm pouco ou nenhum uso, suplantados que parecem ter sido no uso atual por fatigado e fatigados. Mas não são casos lineares. Por outras palavras são arcaísmos que exigem certo matiz na sua interpretação histórica.

Fadigar está atestado desde o século XV e parece ser a forma romance previsível pela sonorização do t latino intervocálico (fatigare).1 Contudo, fatigar tem atestações do século XIII, o que pode ser surpreendente, porque, se for palavra patrimonial, isto é, se for palavra principalmente transmitida por via popular, já deveria exibir uma dental vozeada – [d].

Parece, portanto, que, por uma razão, que, para já, não se consegue apurar desde a Idade Média, o verbo e o nome respetivo têm duas variantes, uma mais inovadora (fadiga, fadigar, românicas) e outra mais conservadora (fatiga, fatigar, ainda latinas). É possível (não se encontraram fontes que o confirmassem) que nestes itens tenha havido intervenção erudita, por exemplo, por via do latim eclesiástico.

Fadiga é, portanto, o nome que representa essa forma medieval inovadora (em relação ao latim). Contudo, quando se trata do verbo, usa-se hoje fatigar, cujo particípio passado é fatigado, que ocorre como adjetivo («gente fatigada»). Trata-se, portanto, de formas divergentes que se fixaram no uso lexical, muito embora fossem concorrentes em fases mais antigas da língua.

 

1 Ver Dicionário Houaiss. Na passagem do lat...