Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber como é que a pronúncia do "e" átono, que era pronunciado como "i", passou a ser pronunciado como /ɨ/.

Também gostaria de saber se esse é um fenómeno que ocorre com todos os is átonos, e não somente os que derivam dum "e" átono.

Em galego-português, ou até mesmo no período pré-clássico, o "e" átono era registrado, na escrita, como um "i", devido a harmonização vocálica, processo que ainda acontece no Brasil, como é possível observar em palavras como "pepino" antes também escrita como "pipino", e até mesmo quando eram nasais, como em "mentir" (mintir), "mentira" (mintira), "ensinar" (insinar), que aparecem escritas assim até em Os Lusíadas.

Sempre me pergunto como é que uma mudança tão grande como essa foi "desfeita", e o "e" que tinha passado para um "i" é agora um "ɨ", e no caso das nasais, voltou a ser pronunciado como "e".

Resposta:

Não é seguro aceitar que o e átono era geralmente pronunciado como i no português anterior aos começos do século XVIII.

O que se infere é que à data do começo da colonização deveria existir importante variação no sistema de vogais átonas, oscilando entre a assimilação (processo que se conservou de certo modo no Brasil – daí, os casos de "minino" e "pipino") e o que já seria a neutralização vocálica que é hoje típica do português de Portugal1.

É também importante lembrar que os segmentos [i] e [ɨ] são ambas vogais altas e que, no contexto fonológico do português de Portugal, o [i] pode também encontrar-se em posição átona, eventualmente contrastando com [ɨ], em pares como rimar/remar (r[i]mar/r[ɨ]mar). Esta relação de contraste entre vogais com importantes afinidades não é inédita nas línguas do mundo e pode encontrar paralelo, por exemplo, no russo: entre o i que palataliza consoantes (muitas vezes grafado и, como em радио, «rádio») e o i que não opera esse fenómeno, realizável como [ɨ] (grafado ы como em волы, «bois»)2.

Não se trata, portanto, de uma «mudança tão grande», mas muito provavelmente de uma tendência que acabou por se tornar sistemática apenas no português de Portugal.

 

1 Sobre a pronúncia de -e átono final e e-/-e- pretónicos, ver Paul Teyssier, História da Língua Portuguesa, Edições Sá da Costa, 1982, pp. 57-63.

2 Ver "

Pergunta:

Enquanto estava a colaborar com uma imobiliária, surgiu uma dúvida linguística recorrente: qual é a forma correta?

«O imóvel fica EM Pousa» ou «O imóvel fica NA Pousa»?

Pousa é uma freguesia do concelho de Barcelos.

Existe alguma regra que deva ser aplicada em situações semelhantes?

Obrigado e bom trabalho para a equipa do Ciberdúvidas.

Resposta:

É possível dizer e escrever das duas maneiras, com uma diferença quanto ao nível de língua:

(1) «Vivo na Pousa.» – nível corrente, registo informal ou neutro.

(2) «Um novo posto de saúde abriu em Pousa.» – registo formal

É curioso verificar que na própria página da junta de freguesia de/da Pousa há oscilações.

Não há propriamente uma regra que permita prever infalivelmente o uso do artigo definido. Há, no entanto, critérios históricos: se o topónimo tem origem num nome comum, então costuma usar-se o artigo definido, como acontece com «o Porto» ou «a Póvoa de Varzim» ou, ainda, «a Fuzeta» (com provável origem em foz). Mas há numerosas exceções a este critério, como os Textos Relacionados apontam, por vezes no intuito de dar maior formalidade e prestígio ao uso do topónimo  – cf. «estou na Figueira da Foz» vs. «estou em Figueira de Castelo Rodrigo».

No caso de Pousa, é de esperar que o artigo definido fizesse parte do uso deste topónimo, pois é muito provável que este provenha do nome comum pousa, no sentido de «lugar onde se faz uma parada para descansar, depositando a carga» (Dicionário Houaiss; ver também o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado). Contudo, como foi dito, também se registam usos sem artigo definido, plausivelmente, com a intenção de prestigiar este nome.

Pergunta:

Beijoca: de onde vem a terminação da palavra em si?

Li em alguns dicionários impressos que é beijo + -oca ou derivação regressiva do verbo beijocar...

Mas não é assim que funciona a etimologia em casos desse tipo! Não tenho a completa razão com isso?

Por favor, muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Beijocar é um verbo derivado de beijoca. Por sua vez, beijoca deriva de beijo, pela sufixação de -oca.

O sufixo -oca «ocorre como diminutivo (às vezes, como aumentativo não raro com valor afetivo, às vezes com valor pejorativo), quase sempre no feminino» e «quando não, como feminino de -oco /ô/» (Dicionário Houaiss). Exemplos: perna > pernoca; banho > banhoca; dorminhoco/dorminhoca. O sufixo -oco, com -oca, remonta ao sufixo -occus, do latim hispânico.

Note-se que há palavras com a terminação -oca com outra origem, no elemento de origem tupi -poca, – associado ao significado de «barulhento, ruidoso, estridente» e que se regista «do sXVI em diante: anhumapoca, anhupoca, araçaripocaarapoca [...]» (ibidem). O Dicionário Houaiss acrescenta ainda que -oca desenvolve «modernamente, no Brasil, certa conotação diminutivo-depreciativa ou afim, normalmente no feminino, mas ocasionalmente comum de dois gêneros»; exemplos: beiçoca, beijoca, belezoca, boboca, ...

Pergunta:

Qual a maneira correta de escrever o nome desse município baiano, "Xique-xique" ou "Xique-Xique"?

Resposta:

Deve escrever-se Xique-Xique, conforme o registo do Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras.

A forma Xique-Xique, nome de uma cidade do estado da Bahia, é igualmente a que consta do portal da prefeitura desta cidade e das páginas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (em 2018).

O Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, consigna a forma "Xiquexique" – que não parece ter uso –, relacionando-a com o nome comum xiquexique, de origem obscura, talvez tapuia, e que tem vários significados, mas que ocorre como «designação comum a vários subarbustos ou ervas lenhosas do gênero Crotalaria, da família das leguminosas, subfamília papilionoídea, que ocorrem, em sua maioria, no Brasil e são frequentemente uasadas como adubo verde» (Dicionário Houaiss). Observe-se, porém, que esta etimologia requererá uma pesquisa mais aturada, de modo a compreender como uma planta, neste caso, um arbusto, pôde motivar o nome de um núcleo de povoamento.

Pergunta:

Já ouvi vários professores de Português para estrangeiros explicarem que o R carregado é gutural e comparam-no com o castelhano dizendo que este não o é. Inclusive tenho visto videos no YouTube a exemplificarem como se deve pronunciar o tal erre gutural.

Também uma minha professora de inglês que dava aulas de português para estrangeiros me explicou que muitos dos seus alunos não conseguiam fazer o tal erre (gutural). Ou seja, ela ensinava esse erre como o R português de referência.

Para mim esse erre é um regionalismo que tem crescido em Lisboa e nos meios de comunicação social. Para mim o R é alveolar. Estou errada?

Obrigada

Resposta:

O erre em causa é historicamente uma consoante vibrante múltipla apical (também se diz alveolar), mas hoje é cada vez mais frequente pronunciá-lo como erre "gutural", isto é, como vibrante múltipla uvular ou velar.

Trata-se de duas formas de pronunciar o chamado "r forte", que estão corretas. O "r forte" – o que ocorre em rato e carro, portanto como consoante que começa sílaba (ataque silábico) – é historicamente uma vibrante múltipla apical (isto é, o ápice da língua vibra contra os alvéolos dentais). Isto mesmo é confirmado por Paul Teyssier, na sua História da Língua Portuguesa (Edições Sá da Costa, 1982; mantém-se a ortografia do original):

«O português sempre possuiu, como o espanhol, uma oposição fonológica entre um /r/ brando (uma vibração) e um /r̄/ forte (várias vibrações em posição intervocálica; ex.: caro e carro. Nas outras posições existe na língua apenas um fonema, relaizado como [t] (ex.: três, parte) ou como [r] (ex.: ramo, melro, genro, Israel). Até uma data recente o ponto de articulação era, nos dois casos, apical: aponta da língua batia uma vez para [r] e várias para [r̄]. É a pronúncia actual do espanhol. No decorrer do século XIX, porém, surge uma articulação uvular do [r̄] forte, bastante semelhante à do francês, embora mais apoiada. Alguns falantes chegam a realizar esta consoante como constritiva velar surda, muito próxima do jota espanho. O [r] simples, ou brando, mantém a sua articulação apical. Em 1883, Gonçaves Viana assinala em Lisboa a nova articulação do [r̄]; considera-a, no entanto, variante individual. Em 1903, o mesmo foneticista observa que ela "se espalha progressivamente pelas cidades", mas ...