Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É muito comum encontrarmos palavras estranhas nas músicas, especialmente influenciadas pelo regionalismo, mas também por explicações simples e muitas vezes cômicas.

Gostaria de conhecer a explicação para a palavra "hotomote" na música A tua sina de Clementina de Jesus (1901-1987):

«Lá no morro de São Carlos
"existe" dois hotomotes
de perto conhece os fracos
de longe conhece os fortes.»

Obrigado.

Resposta:

Pode tratar-se de uma deturpação de holofote, como sugere a transcrição deste samba numa página da Internet intitulada Letras de Samba Rock, com a data de 28 de junho de 2012 (consultada em 17/02/2022), que se reproduz integralmente a seguir:

Mulher é tua sina
É de viver no meio vagabundo
Não sei pra que você nasceu assim
A tua vida é a desgraça do mundo
Mulher é tua sina
É de viver no meio vagabundo
Não sei pra que você nasceu assim
A tua vida é a desgraça do mundo
Lá no morro de São Carlos
Existem dois holofotes
De perto conhece os fracos
De longe conhece os fortes
E quando tudo acabar
É de longe percebida
Os malandros já conhecem
Tua fama de atrevida
Mulher, mulher.
Mulher é tua sina
É de viver no meio vagabundo
Não sei pra você nasceu assim
A tua vida é a desgraça do mundo.

 

Outra possibilidade é a de que seja uma deturpação de autómato. Mas a referência geográfica que é feita na letra – ao Morro de S. Carlos – pode tornar mais plausível holofote como alusão a alguma forma de iluminação pública.

Fica o registo áudio do samba em apreço, que fazia parte do álbum Gente da Antiga (1968) e foi interpretado por Clementina de Jesus (1901-1987), acompanhada por João da Baiana<...

Pergunta:

Se chamamos «plural majestático» ao que usamos quando nos dirigimos, por exemplo, a um rei, como podemos chamar ao plural que se usa, frequentemente, em comunicação científica?

Muito obrigada.

P.S.: Aproveito para agradecer este 25 anos de Ciberdúvidas. Recorro muitas vezes à vossa plataforma! Obrigada!

Resposta:

Pormenorizando o que se diz aqui  e aqui, torna-se necessário precisar que o nós em questão é classificável como «plural de modéstia», como propõem, por exemplo, Celso Cunha e Lindley Cintra na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Edições João Sá da Costa, 1984, p. 285):

«Para evitar o tom imperativo ou muito pessoal de suas opiniões, costumam os escritores e os oradores tratar-se por nós em lugar da forma eu. Com isso procuram dar a impressão de que as ideias que expõem são compartilhadas pelos seus leitores e ouvintes, pois que se expressam como porta-vozes do pensamento colectivo. A este emprego da 1.ª pessoa do plural pela correspondente do singular chamamos PLURAL DE MODÉSTIA

Os mesmos autores apresentam logo depois dois exemplos de textos das áreas das Humanidades:

(1) «Algumas [cantigas], mas poucas, foram por nós colhidas da boca do Povo.» (Jaime Cortesão, Cancioneiro Popular, 1914, p. 12)

(2) «As ocupações oficiais em que nos achamos desde 1861 a 1867, quer nas repúblicas de Venezuela, Equador, Peru e Chile, quer nas próprias Antilhas, não nos deram muita ocasião de pensar em semelhante edição, para a qual até aí nos faltavam auxílios.» (F. Adolfo Varnhagen, Cancioneirinho de Trovas Antigas Colligidas de um Grande Cancioneiro da Bibliotheca do Vaticano, 1870, p. 9)

É uso possível numa comunicação científica, como Maria Fernanda Bacelar do Nascimento na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020...

Pergunta:

Tenho lido (e também li numa das respostas do Ciberdúvidas, sobre o verbo atestar) a formulação «até acima».

Pergunta: não deveria ser «até cima»?

Por exemplo: «Ligou os joelhos até acima», vs. «cima».

Obrigado.

Resposta:

São duas possibilidades corretas.

Considerando que se diz e escreve corretamente «até abaixo», associando, portanto, a preposição até com o advérbio abaixo, não se vê razão para considerar incorreta a sequência «até acima», também formada pela mesma preposição e pelo advérbio acima.

Contudo, é também verdade que, a partir de locuções como «de cima» e «por cima», parece legítimo isolar cima e formar «até cima». Esta possibilidade, porém, não encontra paralelo a partir de «de baixo» (com movimento, como em «o barulho vem de baixo», por oposição a debaixo, meramente locativo, como acontece em «está debaixo») e «por baixo», porque destas locuções não se deduz "até baixo".

A consulta de um corpus histórico (Corpus do Português, de Mark Davies) permite concluir que «até cima» tem ocorrências mais antigas – do século XVI em adiante – do que «até acima» – apenas atestado a partir do século XIX.

Mesmo assim, dificilmente se conclui daqui que «até cima» é hoje mais correto que «até acima», primeiro pela razão atrás exposta e, depois, porque a associação de até a acima tem história de uso, mesmo no âmbito literário.

Pergunta:

Na designação de instituições com o nome de um patrono, aceitam-se como corretas, por exemplo, «Hospital de Egas Moniz», em vez de «Hospital Egas Moniz»?

Resposta:

A inclusão da preposição de é opcional, quando o nome classificador da instituição ou serviço (e das respetivas instalações – geralmente um edifício) é identificado por um nome próprio de pessoa. Diz-se e escreve-se corretamente «Hospital Egas Moniz», mas também é legítima a denominação «Hospital de Egas Moniz», que é, aliás, a forma por que este equipamento se apresenta em páginas oficiais da Internet.

A questão da presença ou omissão da preposição em nomes de arruamentos e instalações a que se associam nomes próprios suscitou alguma discussão em Portugal, entre os gramáticos de tradição prescritiva, sobretudo durante a primeira metade do século XX. É o caso de Vasco Botelho de Amaral (1912-1980), que, focando os nomes de ruas, dedicou ao tema dois artigos importantes no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958). Com bons argumentos e apoiado noutros autores da gramática prescritiva, Botelho de Amaral aceitava como corretas ambas as construções – com e sem preposição –, observando [ibidem, s.v. "De (sua omissão)"; mantém-se a ortografia do original]:

«Tem-se discutido muito sobre como será melhor escrever: Rua Luís de Camões, ou Rua de Luís de Camões. A prática da supressão do conectivo de está muito divulgada, sobretudo quando o substantivo determinante é nome de rua, praça, largo, avenida, livraria, escola, colégio, liceu, teatro, hotel, pensão, café, etc. [...]

O autor apoia-se no funcionamento do latim, língua em se associava ao classificador (rio, cidade, terra) o nome próprio como aposto, ocorrendo os dois termos no mesmo caso gramatical: dizia-se, portanto, urbs ...

Pergunta:

Referente aos antropônimos germânicos terminados em -ulfo, há alguma prescrição para que sejam registrados sem acento? Ou será que deveríamos utilizar? Me intriga, pois já me ocorreu de notar casos de uso e desuso do acento, muitas vezes no mesmo nome.

Lembro-me imediatamente de Ataúlfo, o segundo rei visigótico conhecido, cujo nome é relativamente bem documentado com acento, embora haja oscilação (vide verbete Decadência e Queda do Império Romano no Ocidente, na Infopédia, que oscila entre ambos no mesmo texto).

Há, claro, os casos de adaptação com -o-, como Rodolfo, mas é uma incógnita para mim acerca dos muitos -ulfos conhecidos, sobretudo dos fins da Antiguidade e Idade Média.

A título de comparação, alguns destes germânicos citados em grego são acentuados (cf. Αριούφος; Ἰνδούλφος; Αταούλφος).

Agradeço de antemão.

Resposta:

A prescrição existente é a que decorre da ortografia e encontra-se formulada no n.º 2 da Base X do Acordo Ortográfico:

«As vogais tónicas/tônicas grafadas i e u das palavras oxítonas e paroxítonas não levam acento agudo quando, antecedidas de vogal com que não formam ditongo, constituem sílaba com a consoante seguinte, como é o caso de nh, l, m, n, r e z: bainha, moinho, rainha; adail, paul, Raul; Aboim, Coimbra, ruim; ainda, constituinte, oriundo, ruins, triunfo; atrair, demiurgo, influir, influirmos; juiz, raiz, etc.»

Sendo assim, e atendendo aos casos de Coimbra e influirmos, em que as sequências -oim- e -uir- não têm acento gráfico e se pronunciam com hiato vocálico (-o-im-, -u-ir-), presume-se que Ataulfo também não tem de exibir acento, nem mesmo para evitar a leitura de au como ditongo. O mesmo acontece com outros antropónimos e topónimos com a mesma origem: Adaulfo, Atanaulfo, Farailde, Failde (cf. Revista Lusitana). Detetam-se de facto registos com acento, mas tudo indica que são ou erros ou gralhas.

Quanto às formas gregas referidas pelo consulente, não são elas relevantes para este caso, porque as regras ortográficas são bastante diferentes.

Sobre a análise etimológica de Ataulfo – que tem Adolfo como cognato (do alemão, pelo francês) e variantes na origem de topónimos como