Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber para que topónimos ucranianos devemos ainda usar formas históricas ou aportuguesamentos.

Nas notícias temos visto recorrentemente falar-se de Kharkiv e Lviv, por exemplo. Contudo, vêem-se esporadicamente também os exónimos Carcóvia e Leópolis. Serão estes ainda válidos e recomendáveis? Que outras formas portugueses existem?

Wikipédia e outros lugares da Internet registam por exemplo as cidades de:

Sebastopol (Sevastopol) – ou será Sebastópolis?

Quérson (Kherson)

Vinítsia (Vinnytsia)

Zaporíjia (Zaporizhzhia)

Odessa (Odesa)

Jitomir (Zhytomyr)

Estas três últimas talvez simples transcrições, bem como as regiões da Volínia (Volyn'), Kirovogrado (Kirovohrad) – ou deveria ser "Quirovogrado"? –, Transcarpátia (Zakarpattia) – ou "Transcarpácia"? –, Galícia (Halychyna), Podólia (Podil...

Resposta:

Entre os nomes geográficos ucranianos que são mencionados na questão, identificam-se duas situações:

– Nomes que têm forma portuguesa, com ou sem tradição ou uso – são, portanto, exónimos1, isto é, nomes formados numa língua que não naquelas que se usam nos territórios onde os topónimos ocorrem: Carcóvia, Leópolis, Quieve, Galícia.

– Nomes transcritos ou transliterados conforme normas internacionais ou normas emitidas por autoridades locais e reconhecidas internacionalmente – são endónimos, ou seja, nomes locais que são romanizados: Kharkiv/Kharkov, Kyiv/Kiev, Lviv/Lvov.

Sobre os nomes em questão, importa salientar que não há ainda para o português critérios próprios padronizados para a transliteração de nomes do russo ou do ucraniano. Sendo assim, recorre-se às formas romanizadas conforme normas internacionais, as quais acusarão eventualmente a interferência de soluções provenientes de línguas hegemónicas (inglês, francês, espanhol).

Sobre as formas adotadas nos artigos da Wikipédia, deve notar-se que, por válidos que sejam, não têm o reconhecimento formal e generalizado que seria necessário. Deste modo, sem prejuízo das formas portuguesas propostas numa lista de exónimos relativos à Ucrânia (aqui), podem também empregar-se as transliterações internacionais, o que significa que neste ponto há que tomar decisões e optar pela forma do topónimo de uma das línguas dos Estados em conflito – ucraniano ou russo –, muito embora a Ucrânia tenha importante população russófona.

Assim, pela mesma ordem por que são mencionados os topónimos na pergunta, apresentam-se listados os endónimos ucranianos romanizados pelo sistema e quadro de transliteração aprovados pelo gabinete de ministros...

Pergunta:

Estou a traduzir um livro do árabe para o português e pretendo fazer um quadro que possa aportuguesar ou facilitar o alfabeto árabe transliterando.

Só que estou em dúvida sobre se coloco como tema «sistema de transcrição» ou «transliteração fonética» ou «transcrição fonética»?

Enfim, qual é o termo profissional usado nisso? E qual é a diferença entre transcrição e transliteração?

Resposta:

A transcrição constitui uma representação de sons e, portanto, recorre geralmente aos símbolos do Alfabeto Fonético Internacional (AFI ou International Phonetic Alphabet – IPA).

A transliteração faz uma correspondência entre os elencos de carateres de dois sistemas de escrita (alfabetos ou similares) diferentes.

Por exemplo, pegando na palavra portuguesa arrais, com origem no árabe رئيس, através da associação do artigo الرئيس, é possível obter:

a) uma transcrição: arra'is;

b) uma transliteração: al ra'is

Em a), trata-se de uma transcrição, porque se procura reproduzir a realização fonética de palavras, neste caso uma sequência formada pelo artigo al associado à palavra ra'is. Entre estas opera-se a assimilação da consoante /l/ à consoante vibrante /r/, uma das chamadas consoantes solares1 do árabe que desencadeiam esse fenómeno.

Em b), apresenta-se uma transliteração, fazendo-se a correspondência dos carateres árabes com os caracteres latinos, sem atender ao fenómeno da assimilação. Por outras palavras, a letra lāmل  – é transposta no alfabeto latino como a letra l, sem atender ao referido fenómeno fonético.

Em português ou numa das suas variedades, não existe ainda um sistema de transliteração estável e generalizado. Quanto às transcrições, atualmente, tende-se a utilizar os símbolos do AFI.

 

1 Consoante solar: «diz-se de qualquer das consoantes da língua árabe que, ao figurarem no início de uma palavra, determinam a assimilação do l do artigo definido (al/ el) antecedente (p.ex., a consoante [n], como em nahru 'rio', annahru 'o rio')» (Dicionário Houais...

Pergunta:

A seguinte situação é-me um bocado confusa, pois lamentavelmente tenho dificuldade em parar de pensar de acordo com a gramática de um dos meus idiomas maternos, o espanhol.

No espanhol, é possível construir a frase imperativa «apriétense las manos!» ou «dense las manos!», pois no espanhol, estamos a mandar fazer essa ação reciprocamente.

Em português, não entendo porque só há de ser «apertem as mãos» e «deem as mãos» (versus estas supostas frases erradas segundo os nativos de português: “apertem-se as mãos” e “dêem-se as mãos.) Agradeço antecipadamente a vossa resposta.

Resposta:

É uma característica do português, que não admite o pronome reflexo, mesmo que recíproco e com função de indireto, quando o verbo já seleciona um objeto direto.

Para exprimir a ideia de reciprocidade, que pode estar implícita numa frase como «apertem as mãos», é necessário acrescentar «uns aos outros» (também possível «uns dos outros»):

(1) «apertem/deem as mãos uns aos outros» (ou «apertem/deem as mãos uns dos outros»)

Note-se que a referida possibilidade do castelhano se reflete em casos de não reciprocidade: «me comí una manzana». Em português, na tradução correspondente, não há tal estrutura: «comi uma maçã» ou «comi uma maçã toda/inteira».

Pergunta:

O que significa «consoantes geminadas» ou «duplas»? Será que pode dar-se como exemplo o nome arábe Muhammad, porque na língua árabe temos algo que se chama xaddah, que representa duas consoantes através de um símbolo?

É que não sei se no português digo "geminado" ou se temos uma outra designação.

Obrigado.

Resposta:

Pode dizer-se «consoante dobrada», «consoante dupla» ou «consoante geminada» (cf. Dicionário Houaiss). Importa é que num mesmo documento se use sempre o mesmo termo.

No português não existem consoantes duplas como unidades distintivas (fonológicas). No entanto, elas podem produzir-se foneticamente no português de Portugal por queda do e átono, embora tais pares possam ser pronunciados como consoantes simples. Por exemplo (na pronúncia mais rápida): Campo Pequeno = "camppqueno", "campqueno"; Faculdade de Direito = "faculdaddireito".

 

 

Pergunta:

Pediria uma orientação quanto ao hífen em três termos da rubrica de música: «forma sonata», «forma rondó» e «forma rondó sonata» (ou "forma-sonata", "forma-rondó" e "forma rondó-sonata"?).

Nos dicionários, encontro sonata e rondó como substantivos, jamais adjetivos. Em dicionário nenhum encontro "rondó-sonata", uma forma musical híbrida conhecida pelos melômanos e musicólogos.

Entretanto, no Houaiss eletrônico (v. 1.0, 2001), no verbete sonata, no comentário acerca da locução «sonata forma», lê-se «forma composicional clássica bitemática […]; forma sonata» (sem hífen). No mesmo dicionário, verbete forma, acepção «25: disposição dos elementos de uma peça musical […] modelo de composição», aparecem como exemplos «forma sonata» e «forma lied» (sem hífen).

No Novo Dicionário Eletrônico Aurélio (v. 5.0. 2004), verbete rondó, a acepção 4 prevê uso no sentido de «forma musical». Assim, rondó em si já significa «forma rondó», porém isso não afasta a prerrogativa de se lhe associar a palavra forma. Afinal, há ambiguidades, basta pensar em um movimento de concerto estruturado em rondó (aqui forma musical, não gênero do repertório).

Sinto-me inclinado a grafar "forma-sonata", "forma-rondó" e "forma rondó-sonata" porque em todos os casos ao menos dois substantivos se juntam para formar um novo significado, independente. Parece-me inafastável a independência visto haver sinfonias e aberturas operísticas feitas em forma-sonata (uma estrutura teórica, um esqueleto de construção). Ao mesmo tempo, há sonatas de todo alheias à forma-sonata. Desse modo, escapa-me o raciocínio a afastar o hífen, a não ser que caiba (ou s...

Resposta:

Pouco há acrescentar ao diagnóstico competente apresentado na questão.

O tipo de oscilações que ocorrem nos casos de «forma sonata» e «forma rondó» parece ocorrer também, por exemplo, nas  formas homólogas do italiano (salvaguardada a devida distância, porque esta língua tem uma ortografia bastante diferente da do português). Com efeito, a Enciclopédia Treccani aceita, para o italiano, duas grafias para «forma sonata» – com e sem hífen. Sendo assim:

a) se em «forma sonata» e «forma rondó» as palavras sonata e rondó forem analisadas como apositivas, dispensa-se o hífen;

b) no entanto, não é impossível a hifenização de modo a assinalar que se trata de um composto em que sonata e rondó perderam a função apositiva e, em associação com forma, constituem já unidades com sentido próprio.

Quanto a rondó-sonata, o hífen justifica-se porque se trata da associação de dois substantivos que se coordenam para formarem uma unidade lexical (composto) e gráfica que denota um género híbrido ou uma peça que concilia as duas formas.

Note-se, ainda, que o Dicionário Houaiss regista também como subentrada a sonata a expressão «sonata forma», também sem hífen, tal como acontece à forma «forma sonata» (subentrada a forma, no referido dicionário). Além disso, tendo em conta as observações do consulente, a sequência «forma rondó-sonata» configurará apenas um caso de aposição (para especificação) de rondó-sonata a forma. Daqui se infere que não se justifica um hífen extra e que, não podendo legitimar-se «forma-rondó-sonata», se deve aceitar «forma rondó-sonata».