Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No Brasil é muito comum dizer «igual eu» no sentido de «como eu» ou «como a mim». E também é muito comum o uso da figura de estilo elipse. Como exemplo, o emprego destes hábitos em uma frase seria:

«O João fala errado igual eu falo.» → «O João fala errado igual eu.»

Gostaria de saber se na variante do português de Portugal é incorreto este uso e, se sim, qual a forma correta de serem ditas frases como estas?

– O João fala errado igual eu. (O João fala errado igual eu falo.)

 – Ele pensa igual eu. (Ele pensa como eu.)

Obrigado.

Resposta:

Trata-se de um uso do Brasil que não parece ocorrer em Portugal – pelo menos, entre os falantes da variedade europeia.

Com efeito, atesta-se o uso conformativo de igual, equivalente a como e seguido de substantivo: «Ele come igual porco», «Maria sempre me tratou igual filho» (Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, 2004). Igual pode também introduzir orações: «Andava de lá para cá, igual estivesse numa jaula» (Dicionário Houaiss)1.

Estas fontes não apresentam abonações de igual seguido de pronomes, mas o Corpus do Português evidencia que o uso conjuncional se associa a pronomes na forma de sujeito, no que parece configurar construções em que se omite o verbo (elipse):

(1) «Nesse sentido, o automatizado é a melhor coisa para quem pensa igual eu [penso].»

Não obstante, em Portugal, prefere-se a construção com como:

(1) O João fala mal como eu. (em Portugal, não é habitual «falar errado»)

(2) Ele pensa como eu.

Acrescente-se que dicionários elaborados em Portugal (Academia das Ciências de LisboaInfopédia e Priberam) não registam igual com valor conformativo.

 

1 No

Pergunta:

Tenho visto algumas vezes escrito:

«Ele tem vinte e tal, cento e tal, setenta e tal anos, a fé tem setenta e tal repartições, etc.»

Às vezes: «tenho vinte e algumas mangas»

A minha questão é:

1. Será que está certo dizer-se: «setenta e tal anos», ou «setenta e alguns anos»?

2. Qual é a designação de um número desconhecido entre 3 e 10 ou 3 e 9? Por exemplo tenho 70 e um acréscimo de canetas, porém, não sei se é 73, ou 77, ou 75, ou 79. Será que também diria por exemplo, «tenho setenta e tal»? Em árabe diz-se biḍʿ (todo o número compreendido entre 3 e 10).

Obrigado.

Resposta:

O uso de «e tal» com numerais quantificadores só ocorre no discurso mais informal, justamente pela falta de exatidão1. Por outras palavras, está correto dizer «setenta e tal anos», mas esta é uma maneira de dizer que não deve ocorrer num texto formal.

É também correto dizer «tenho 70 e tal canetas», mas, como foi dito, só no registo informal.

Quando se diz «... e tal» não é possível definir a quantificação exata, mas geralmente esta pode corresponder a um valor igual ou superior a 5.

Quando a quantificação não vai além de poucas unidades (até 3, por exemplo, mas pode variar, pois a referência em mente é muito imprecisa), diz-se «70 e poucos» quando se fala em idade: «tem setenta e poucos anos» será interpretável sempre em função do contexto, podendo referir-se a idades entre os 71 e os 73/74 anos (eventualmente 75 anos).

Falando de idade, é ainda possível empregar expressões como «vinte e alguns anos»2:

(1) «Acho-me há vinte e alguns anos ligado à mulher que não devia ser minha» (Camilo Castelo Branco, A Queda dum Anjo, in Corpus do Português).

Note-se, porém, fora do contexto em que o tema da idade é relevante, parece estranho (pelo menos, para quem aqui escreve) referir a construção a coisas: ?«tenho vinte e algumas mangas»; ?«arrumei vinte e alguns casacos».

 

1 No Dicionário Houaiss, regista-se «e tal» como subentrada a tal e assinala-se a expressão como um uso de Portugal: «2 Regionalismo: Portugal. usado para designar um número indeterminado que excede um número redondo; poucos, tantos. Ex.: viveram juntos duas décadas e tal.»

2

Pergunta:

Vi um vosso comentário sobre «alguns provérbios alusivos à água», quando procurava a explicação para um sobre o mesmo tema que não constava daquela lista.

É ele o seguinte: «Na água turva é que se apanha o "bargue”».

Por mais voltas que desse não encontrei a palavra "bargue".

Antecipadamente muito obrigado pela ajuda.

Resposta:

Deve ser erro ou (havendo uso consistente) uma variante de bagre (cf. Infopédia), palavra que denomina várias espécies de peixes, ao que parece, todos pertencentes à ordem dos siluriformes, os quais se caracterizam pelos barbilhos que têm à volta dos maxilares.

No provérbio, a referência a «água turva» parece ser uma alusão ao hábito de estes animais se encontrarem no fundo dos rios, onde a visibilidade pode ser menor. O sentido é claramente metafórico – as situações difíceis podem ser boas oportunidades – e pode também entender-se como uma crítica e um aviso: os oportunistas aproveitam-se sempre da confusão.

Não foi possível confirmar com precisão a origem africana deste provérbio ou desta máxima.

Pergunta:

Minha dúvida é deveras simples: qual é o sentido da preposição em em textos religiosos, por exemplo, «Por Cristo, com Cristo e em Cristo», «escravo de Jesus em Maria»?

Tratar-se-ia de um sinônimo mais cerimonioso de «por meio de», «mediante», «com o auxílio de», etc.?

Agradeço-vos desde já.

Resposta:

São expressões que, numa primeira leitura, podem ser entendidas como tendo implícitas as ideias de «viver conforme Cristo ou Maria» ou «viver na fé em Cristo/Maria», e, portanto, são construções que se aproximam das expressões sugeridas pelo consulente.

Contudo, a expressão «em Cristo» – e, à sua semelhança «em Maria» – encerra também um pensamento teológico profundo, como se aponta, por exemplo, na Enciclopédia Britânica1, onde se assinala a importância que tem a conceção de «corpo de Cristo» de São Paulo, conforme a consubstanciam as Epístolas:

«São Paulo considerava os seus conversos não apenas como indivíduos libertos do pecado, mas também como membros orgânicos do corpo coletivo de Cristo. [...] O corpo de Cristo também é importante nas considerações de São Paulo sobre comportamento. O que é parte do corpo de Cristo, por exemplo, não deve unir-se a uma prostituta (1 Coríntios 6:15). Os que participam da Ceia do Senhor, visto participarem do corpo e sangue de Cristo, não podem participar da comida e bebida na mesa de um ídolo (1 Coríntios 10:14-22). Os membros do corpo de Cristo evitam os atos carnais e recebem o amor como seu maior dom espiritual (1 Coríntios 13). Os que estão em Cristo serão transformados num corpo espiritual como o de Cristo, quando Ele retornar, mas já estão a ser “transformados” e “renovados” (2 Coríntios 3:18; 4:16) [...]. São Paulo pensava que ser membro do corpo de Cristo realmente mudava as pessoas, para viverem de acordo [com a fé], e achava que os seus conversos estavam mortos para o pecado e vivos para Deus e que a conduta fluía naturalmente das pessoas, variando conforme quem realmente elas eram. Quem está sob o pecado naturalmente comete pecados – “os que estão na carne não podem agradar a Deus” (Romanos 8:8) – mas...

Pergunta:

Gostava de saber qual é a diferença entre um cervo e um veado.

Consultei dois dicionários, o Priberam e a Infopédia e as definições dadas são as mesmas.

Contudo, parece-me que existe alguma diferença.

Resposta:

São sinónimos, porque ambos denotam o Cervus elaphus, muito embora cervo possa abranger também o sentido de gamo (Dama dama).

Quando se fala da carne para consumo, diz-se «carne de veado».