Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tenho uma dúvida entre o uso de aqui, cá, lá e acolá.

Quando é que se usa cada um deles?

Muito obrigada.

Resposta:

As palavras em questão são advérbios de espaço, que têm a capacidade de apontar para o espaço físico, a partir do contexto situacional, ou de retomar o valor de um antecedente que surja no texto, indicando proximidade ou afastamento do locutor. São, por isso, palavras deíticas ou anafóricas, segundo o caso. 

Estes advérbios pertencem a duas séries: a série aqui-aí-ali e a série cá-lá. Estas ativam valores que, de uma forma geral, são equivalentes. Assim, aqui e referem o espaço em que se encontra o locutor (eu) ou um espaço perto dele, ao passo que ali e referem um espaço distante do locutor. Ali, em particular, pode referir ainda um espaço distante do eu e do tu, enquanto não tem esta especificidade.

Dada esta proximidade de sentidos, os pares aqui/cá e ali/lá são muitas vezes usados como sinónimos. Não obstante, nalguns contextos e para alguns falantes, estes advérbios podem ser usados com especificidades que os diferenciam de forma ténue e subjetiva. Como explica Raposo, «a série aqui-aí-ali associa-se por vezes a um espaço mais restrito, mais fechado, e que envolve os interlocutores de maneira mais íntima, por oposição à série cá-lá, que remete para um espaço mais alargado, mais aberto e que envolve os interlocutores de forma mais objetiva e menos íntima.»1 A diferença aqui referida pode ficar clara nos usos presentes em (1) e (2):

(1) «Vivo aqui há um ano.»

(2) «Vivo cá há um ano.»

Como explica ainda Raposo, a diferença entre estas frases residirá, para muitos falantes, na associação de aqui a um espaço mais restrito, como uma rua ou um dado prédio, enquanto será associad...

Pergunta:

«Ele foi o menino que os pais não cuidavam dele.»

O enunciado está correto?

Obrigado.

Resposta:

A frase não está correta. A incorreção está relacionada com o uso simultâneo do pronome relativo que e da contração da preposição de com o pronome ele (dele).

A frase proposta resulta da junção de duas frases:

(1) «Ele foi o menino.»

(2) «Os pais não cuidavam do menino.»

Quando se pretende juntar as duas frases, há que eliminar a repetição do sintagma «o menino», o que se pode fazer por meio de um pronome relativo. Note-se, ainda, que o pronome relativo desempenha, na oração que introduz, a função sintática que desempenharia o sintagma que ele vem substituir.

Ora, na frase (2), o constituinte «do menino» desempenha a função sintática de complemento oblíquo do verbo cuidar, função que o pronome relativo também terá de desempenhar na sua oração.

Na frase apresentada pelo consulente, na oração subordinada relativa, a função sintática de complemento oblíquo é desempenhada por dele. Em simultâneo, o pronome relativo que tenta ocupar essa mesma função. Por essa razão, a frase é incorreta.

A solução será eliminar da frase o sintagma preposicional dele, e sinalizar o preenchimento da função de complemento oblíquo pelo relativo, o que poderá acontecer por meio da utilização de «do qual» ou «de quem» como se exemplifica nas frases seguintes:

(3) «Ele foi o menino do qual os pais não cuidavam.»

(4) «Ele foi o menino de quem os pais não cuidavam.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Nas frases:

«Ela se arroga essa liberdade.» – o vocábulo se é objeto indireto.

«Eles se gostam.» – o vocábulo se é complemento relativo.

Qual a diferença entre objeto indireto para complemento relativo?

Obrigado.

Resposta:

A função sintática desempenhada pelo pronome se depende da estrutura argumental do verbo com o qual ele ocorre. Deste modo, se pode desempenhar diferentes funções sintáticas, tal como se ilustra nas frases seguintes:

(1) «O João se feriu no braço. / O João feriu-se no braço.» (complemento direto = ferir alguém)

(2) «O João se ofereceu um livro. / O João ofereceu-se (a si) um livro.» (complemento indireto = oferecer algo a alguém)

(3) «Eles se gostam.»1 (complemento relativo = gostar de algo ou alguém)

Nas frases apresentadas pelo consulente, o pronome se desempenha diferen...

O prefixo <i>in-</i>
As formas variáveis do prefixo

Terá o prefixo in- mais do que uma forma? Esta é a questão que a professora Carla Marques trata no seu apontamento, partindo das palavras irracional e indispensável

Apontamento incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 1 de outubro de 2023.

Pergunta:

Encontrei a seguinte frase:

«Este ano iremos poder contar com a presença de profissionais (…).»

Questiono-me se esta conjugação verbal está correta.

Verbo ir no futuro + infinitivo + infinitivo ?

Penso que ficaria melhor «poderemos contar» ou contaremos, mas queria uma justificação.

Obrigada.

Resposta:

O constituinte «iremos poder contar» é um complexo verbal constituído por dois verbos auxiliares (ir e poder) e por um verbo principal (contar). Trata-se, assim, de uma locução verbal com mais do que um auxiliar, o que em português pode ter lugar. 

Os auxiliares presentes no complexo estão ao serviço da expressão de valores diferentes. Assim, o auxiliar ir expressa uma ideia de futuridade, como acontece na frase (1):

(1) «Vamos ficar na escola todo o dia.»

(2) «A Joana irá entregar o trabalho.»

Em frases simples, o auxiliar ir usa-se normalmente no presente do indicativo. A opção pelo futuro é menos frequente e traduz um valor de futuridade equivalente.

O verbo poder, na qualidade de auxiliar, pode exprimir uma autorização (modalidade deôntica):

(3)