Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A minha questão é referente à regência e/ou concordância da palavra equipa em número.

Fiz uma publicação de necrologia e a mensagem era «A equipa da empresa Y comunica com pesar e consternação o falecimento da Sra. X, mãe da esposa do nosso colega Z».

Entretanto, o jornal alterou para «A equipa da empresa Y comunica com pesar e consternação o falecimento da Sra. X, mãe da esposa do seu colega Z». Esta alteração suscitou debate e essa dúvida sobre se a primeira mensagem estava incorrecta.

Agradecia vossos preciosos comentários.

Resposta:

A questão colocada envolve, como bem afirma o consulente, um processo de concordância.

Em (1), o núcleo do sujeito da frase é «a equipa», ou seja, um constituinte equivalente à 3.ª pessoa do singular. Por esse motivo as concordâncias com este núcleo devem ocorrer na mesma pessoa e número.

(1) «A equipa da empresa Y comunica com pesar e consternação o falecimento da Sra. X, mãe da esposa do seu colega Z.»

Deste modo, está correto o uso do determinante possessivo seu, uma vez que ele se encontra na 3.ª pessoa do singular.

O uso do possessivo de 1.ª pessoa do plural poderia ocorrer se o núcleo da concordância fosse o pronome nós, como poderia acontecer numa frase como a que se apresenta em (2):

(2) «Nós, membros da equipa da empresa Y, comunicamos com pesar e consternação o falecimento da Sra. X, mãe da esposa do nosso colega Z.»

Finalmente, uma frase como a que se apresenta em (3) poderia dar azo a interpretações dúbias porque o determinante nosso poderia estar a concordar com um antecedente que não está expresso ou que seria reconstituído pelo contexto, que poderia corresponder a algo como o que indica entre parênteses retos:

(3) «[Nós ficámos agradecidos quando] a equipa da empresa Y comunicou com pesar e consternação o falecimento da Sra. X, mãe da esposa do nosso colega Z.»

Certo é que, formalmente, nosso não pode concordar com «a equipa».

No entanto, refira-se que, em contexto menos formais, pode ocorrer uma concordância siléptica, ou seja, uma concor...

Pergunta:

Por favor, dada a frase: «Pesa-me dos dissabores que lhe causei.»

Qual o sujeito do verbo pesa?

Qual a função sintática do termo «dos dissabores»? Qual a função sintática do termo me? Qual o objeto direto do verbo causei?

Se a frase fosse assim : «Pesam-me os dissabores que lhe causei.»

O que mudaria?

Grato.

Resposta:

De acordo com Celso Luft, o verbo pesar com o sentido de «causar mágoa ou pesar» é transitivo indireto:1

(1) «Pesam-me os dissabores que lhe causei.»

Nesta frase, a oração completiva «os dissabores que lhe causei» desempenha, em qualquer dos casos, a função de sujeito, o que justifica a concordância do verbo no plural2. O pronome me desempenha a função de complemento indireto.

No interior da oração subordinada relativa («que lhe causei»), identificamos as seguintes funções sintáticas:

– que: complemento direto

– lhe: complemento indireto

Contudo, relativamente ao verbo pesar, Luft acrescenta que «é usual anteceder essa oração [completiva] da prep. de, indicativa de ‘causa’» (Idem):

 (2) Pesa-me, Senhor, de vos ter ofendido.

O autor em referência não o menciona claramente, mas este complemento preposicionado pode também integrar um grupo nominal, como regista o gramático Francisco Fernandes2:

(3) «Pesou-me muito de minha cega confiança.»

É, portanto, gramatical a frase que inicia a pergunta:

(4) «Pesa-me dos dissabores que lhe causei.»

A análise sintática de (4) pode revelar-se mais complexa do que a de (1) e, portanto, pouco consensual. Com efeito, dir-se-ia que a descrição e classificação propostas por Luft não exclui a possibilidade de o complemento preposicionado, contenha ele uma oração ou um nome, ter a função de sujeito. Por outro lado, em usos como os ilustrados em (2), (3) e (4), Fernandes aceita que pesar seja um verbo impessoal, o que acarreta considerar que, em (4), a expressão «dos dissabores que lhe causei» constitua não o sujeito, mas um complemento preposicionado (em Portugal, um comp...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a forma mais correta, se orçador ou orçamentista, para uma pessoa cujo trabalho é realizar orçamentos.

Obrigada.

Resposta:

As duas expressões são lícitas e podem ser usadas como sinónimas.

Uma consulta a alguns dicionários de língua portuguesa1 mostrou que todos incluem o substantivo orçador com o significado de «pessoa que faz orçamentos». Este pode também ser usado como adjetivo.

O nome orçamentista surge registado com o mesmo significado de orçador, mas não está atestado no Dicionário da língua portuguesa contemporânea.

Não obstante, uma pesquisa feita no motor de procura Google mostra que o substantivo orçamentista parece ter mais vitalidade do que orçador.

Assim sendo, caberá ao consulente selecionar a palavra que pretende usar e manter uma escolha coerente.

Disponha sempre!

 

1. Foram consultados os seguintes dicionários: Dicionário da língua portuguesa contemporânea; Dicionário Houaiss da língua portuguesa; Dicionário Priberam e Dicionário da língua portuguesa.

Pergunta:

No texto de 1 Coríntios 13, verso 1, está escrito:

«Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse caridade, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.»

Analisando exclusivamente o texto bíblico acima, ele informa que existem duas formas de a pessoa falar várias línguas: o indivíduo pode aprender idiomas estudando ou pode ser poliglota por inspiração do Espírito Santo, daí as expressões "dos homens/dos anjos". A conduta é a mesma: falar idiomas, mas a fonte de aprendizado é diversa; no primeiro caso o conhecimento é adquirido pelo estudo, no outro ela fala línguas influenciada espiritualmente pelo Espírito de Deus.

Então pergunto: qual a figura de linguagem que foi utilizada pelo autor?

Obs: desculpem a forma que vou falar a seguir, mas é importante destacar que meu interesse é puramente gramatical, sem viés religioso nenhum. O problema é que quando a gente pergunta a religiosos ou eles não sabem, ou respondem ideologicamente.

Mais uma vez desculpem minha forma de expor o tema.

Obrigado!

Resposta:

À partida, e considerando apenas a frase apresentada, poderemos considerar que estamos perante uma antítese, figura que associa dois termos que contrastam entre si. Se considerarmos que as expressões «línguas dos homens» e «línguas dos anjos» designam duas realidades que são contrastivas / opostas, é possível assinalar a presença deste recurso. 

A considerarmos que estas línguas referidas poderiam ser designadas por um nome próprio (que desconheço), seria possível considerar as expressões «línguas dos homens» e «línguas dos anjos» como um tipo de antonomásia, uma vez que se substituiria o nome próprio por um nome comum com um propósito descritivo e explicativo. Neste quadro, seria possível também considerar que se trataria de uma perífrase, uma vez que se refere uma realidade com recurso a uma expressão mais longa que substitui uma mais curta.

 

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «Até o chefe da seção notou minha inquietude», qual a classe gramatical do vocábulo até?

Qual a função sintática do vocábulo até?

O vocábulo até se refere ao «chefe da seção» ou à oração inteira?

Se o termo até for deslocado na frase assim:

«O chefe da seção notou até minha inquietude.»

muda a função sintática?

Grato.

Resposta:

Na frase em questão a palavra até é um advérbio de inclusão1, que incide sobre o sintagma nominal «chefe de secção» denotando a sua inclusão num dado conjunto.

O advérbio até combina-se com o sintagma nominal «o chefe de secção», formando um novo sintagma nominal. Deste modo, concluímos que até funciona no plano interior ao sintagma nominal, incidindo sobre o nome e modificando o seu sentido. Nesse âmbito, podemos considerar que o advérbio desempenha a função de adjunto do nome (modificador do nome, de acordo com o Dicionário Terminológico).

É importante advertir, porém, que a consideração de que o advérbio pode incidir sobre um nome não é típica nas descrições gramaticais, pelo que não é frequente encontrar a descrição da função sintática desempenhada nestes casos, pois estamos perante situações marginais do funcionamento do advérbio.

No caso da segunda frase apresentada pelo consulente, a deslocação do advérbio para junto do sintagma nominal «minha inquietude» leva a que este passe a incidir sobre este constituinte, formando um novo sintagma nominal, no qual exerce também a função de modificador do nome.

Disponha sempre!

 

1. Note-se que há autores como que dão um tratamento particular a advérbios desta natureza. É o caso de  Bechara, que refere o seguinte relativamente a alguns advérbios: «A Nomenclatura Gramatical Brasileira põe os denotadores de inclusão, exclusão, situação, retificação, designação, realce, etc. à parte, sem a rigor incluí-los entre os advérbios, mas constituindo uma classe ou grupo heterogêneo chamado denotadores». (