Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tendo a frase «Escondi-me como logo me mostrei», como devo classificar a segunda oração?

Muito obrigada.

Resposta:

A segunda oração pode ser considerada uma oração subordinada adverbial comparativa, desde que a sua interpretação envolva uma comparação de graus (por exemplo, o grau de rapidez entre esconder-se e mostrar-se).

Neste âmbito, estabelecer-se-á uma comparação entre duas situações descritas pelos verbos esconder e mostrar e associadas ao locutor da frase (expresso pela 1.ª pessoa do singular). Esta comparação é formalizada por meio da conjunção como.

A relação de comparação construída é elíptica, na medida em que não inclui todos os termos típicos da comparação. No entanto, estes elementos poderão eventualmente ser recuperados por meio do contexto discursivo, situacional ou do conhecimento partilhado entre interlocutores1.

A frase completa poderia expressar uma ideia similar à apresentada em (1):

(1) «Tão depressa me escondi como logo me mostrei.»

O advérbio logo, que surge no interior da oração subordinada, tem a função de modificador do verbo e trata-se de um elemento acessório que contribui para a relação de comparação que, no caso desta frase simulada, assenta no grau de velocidade de realização de uma situação.

Disponha sempre!

 

1. Esta é uma situação que ocorre com alguma frequência nas estruturas comparativas, tal como descreve Marques in Raposo et al., Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2154 e seguintes.

<i>Despiciendo</i>
Um adjetivo usado na negativa

Na expressão «almoços e jantares de valor não despiciendo», qual o significado do adjetivo despiciendo? O assunto dá matéria ao apontamento da professora Carla Marques.

(Incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 3 de dezembro de 2023) 

Pergunta:

O verbo cair é intransitivo. Não obstante, na frase «A árvore caiu sobre mim» o segmento «sobre mim» não é complemento oblíquo?

Obrigada.

Resposta:

O constituinte em questão desempenha a função de complemento oblíquo.

O verbo cair é usado sobretudo como intransitivo (1) e, pontualmente, como copulativo (2)1:

(1) «Ele ia a correr e caiu.»

(2) «O comentário caiu mal.»

Poderá também ser usado como transitivo indireto, situação em que rege preposição e é acompanhado de cum complemento oblíquo, como nas frases seguintes: 

(3) «A pedra caiu do céu.»

(4) «As culpas caíram no João.»

(5) «O Natal cai num domingo.»

(6) «A Rita caiu no chão.»

No caso da frase apresentada, transcrita em (7), o constituinte «sobre mim» dá uma informação sobre lugar e desempenha a função de complemento oblíquo:

(7) «A árvore caiu sobre mim.»

Disponha sempre!

 

1. Para a análise do verbo cair, consultaram-se as seguintes fontes: Casteleiro (dir.), Dicionário gramatical de verbos portugueses. Texto editores, 2007; Luft, Dicionário prático de regência verbal. Ed. Ática, 2008.

 

N.E.: Resposta revista em 06/10/2024.

Pergunta:

Na frase, «Obrigado, que tenha um bom dia», como se justifica o elemento destacado?

Obrigado.

Resposta:

A palavra que, destacada na frase, é usada como elemento introdutório de uma frase optativa:

(1) «Obrigado, que tenha um bom dia.»

Estamos perante uma frase optativa, uma estrutura que habitualmente está ao serviço da expressão de desejos:

(1) «Que chegue depressa!»

(2) «Que não chova no evento!»

As frases optativas caracterizam-se pelo uso do conjuntivo, sem que este esteja subordinado a um termo que funcione como predicador (este poderá simplesmente não estar explicitado). Frequentemente, as frases optativas são introduzidas por que, classificado como conjunção-complementadorna Gramática do Português, mas também podem ser introduzidas pelo advérbio oxalá ou por expressões como «Deus queira que»2.

Estas frases também podem ser elíticas, em situações em que o termo introdutório é omitido:

(3) «Que venham dias melhores!» = «Venham dias melhores!»

Disponha sempre!

  

1. Do ponto de vista da gramática tradicional, este que será considerado expletivo. 

2. Para mais informações, cf. Barbosa, Santos e Veloso in Raposo et al., Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2585.

Pergunta:

Gostaria de saber se é correto o uso do artigo após os verbos referidos.

Por exemplo: «adoro desportos» ou «adoro os desportos»? «Gosto de filmes de terror» ou «gosto dos filmes de terror»? «Odeio pessoas arrogantes» ou «odeio as pessoas arrogantes»?

Já vi das duas formas e não sei qual seria o correto, ou se há contextos em que usamos o artigo e outros em que não. Nesse caso, gostaria de conhecê-los.

Muito obrigada pela ajuda.

Resposta:

Ambas as possibilidades são corretas, mas poderão implicar algumas diferenças de sentido. Neste contexto, não poderemos, todavia, falar de regras gramaticais. Estamos sobretudo no plano das intenções comunicativas, que poderão também estar muito dependentes do contexto.

A opção pelo não uso do artigo definido contribui para que a situação descrita seja perspetivada como uma realidade genérica:

(1) «Adoro desportos.»

(2) «Gosto de filmes de terror.»

(3) «Odeio pessoas arrogantes.»

Em cada uma das frases anteriores, os sintagmas nominais, por não serem determinados por um artigo, descrevem situações tomadas como realidades genéricas, sendo afirmações válidas em qualquer situação ou temporalidade e que poderão constituir referências abstratas aplicadas a realidades de diferentes contextos. Nestas frases, as situações descritas como «desportos», «filmes de terror» ou «pessoas arrogantes» não são apresentadas como entidades individuais, antes designam um conjunto de entidades da mesma espécie.

Se, no contexto conversacional, o referente «desportos», «filmes de terror» ou «pessoas arrogantes» for já conhecido os interlocutores, o recurso ao artigo definido já poderá ter lugar naturalmente, uma vez que poderão representar referentes mais concretos e conhecidos dos envolvidos na situação de comunicação. Neste sentido, é possível afirmar que o uso do artigo definido contribui para a referência a situações que são tomadas com um valor mais específico, apontando para a referência a realidade tomadas como concretas e designando entidades que se distinguem de outras ou que contrastam com elas, como se ilustra por meio da expansão das frases abaixo:

(4) «Adoro os desportos e as atividades intelectuais.»

(5) «Gosto dos filmes de terror, mas odeio as c...