Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Enquanto docente, deparo-me frequentemente com a utilização do verbo falar em numerosos contextos que, na minha opinião, não são, na sua grande maioria, os mais corretos.

Assim, surgem frases, como:

a) «Ele falou que ia ao cinema.» (Influência do português do Brasil)

b) «O texto fala da história dos dinossauros.»

c) «Venho falar sobre a minha opinião sobre a televisão.»

Estes são alguns exemplos daquilo que ouço diariamente, em sala de aula, mas também do que leio nos textos escritos pelos alunos. Apesar de tentar explicar aos alunos que utilizamos este verbo, sobretudo, quando nos referimos a conversas («Ele falou com ela», «Ele falou dela», «Ele falou dos seus problemas»...), vejo que nem sempre percebem a diferença e tenho alguma dificuldade em explicá-la de outro modo.

Assim para as frases acima, sugiro que escrevam/digam:

a) «Ele disse/afirmou que ia ao cinema.»

b) «O texto conta/narra a história dos dinossauros.»

c) «Vou apresentar a minha opinião sobre a televisão.»

Gostaria, então, de saber se há alguma resposta mais adequada que eu possa transmitir aos meus alunos para a resolução desta situação, pois as suas dificuldades de expressão, quer oral, quer escrita, têm vindo a agravar-se e, contrariamente ao que muitos afirmam, não por culpa dos confinamentos a que estiveram sujeitos.

Agradeço, desde já, a sua disponibilidade em responder.

Resposta:

Uma dificuldade que os alunos manifestam com alguma frequência está relacionada com a incapacidade/dificuldade de ajustar os seus textos (orais ou escritos) a um registo de língua formal ou mais cuidado. Por essa razão, a escola aborda conteúdos como as variantes diastráticas (grupos sociais) ou as variantes diafásicas (grau de formalidade) e os processos de adequação linguística ao contexto de comunicação.

Os usos do verbo falar apresentados pela consulente são todos legítimos, porque, de facto, este verbo tem uma amplitude grande de significações, como se pode observar por uma síntese do seu verbete retirada do Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa:

«1. articular, um ser humano, sons com a voz, formando palavras. 2. imitar, um animal ou um mecanismo, a linguagem humana, produzindo-a. 3. exprimir-se em determinada língua. 4. comunicar, usando um sistema não linguístico. 5. revelar um segredo; tornar pública, conhecida, determinada informação. 6. dirigir a palavra ou comunicar verbalmente com alguém; estabelecer uma conversa. 7. conversar ou fazer afirmações, comentários, observações, referências, sobre determinado assunto ou determinada pessoa. 8. fazer um discurso sobre um tema, por escrito ou oralmente; fazer a apresentação e análise de um assunto. 9. dizer alguma coisa em nome de alguém; expressar o que alguém pensa ou quer. 10. manifestar determinada intenção. 11. ter como assunto, como tema. 12.referir determinado nome ou expressão a propósito de algo. 13.  dizer que existe, que é real. 14. dirigir uma saudação ou fazer um gesto de cumprimento.»

Não obstante, em contexto didático, o uso excessivo do verbo falar poderá ser sinal de pobreza lexical e poderá ser obviado por meio de exercícios como os seguintes:

«Livros de que gosto»
O pronome relativo com preposição

A propósito da construção incorreta «Os livros que gosto mais», a professora Carla Marques apresenta um apontamento sobre o uso de preposições com orações relativas. 

 

(Incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 10 de dezembro de 2023).

 

 

Pergunta:

O uso de «(os)as mais variados(as)» depois do substantivo é um vício ou só estilo?

Exemplo: em vez de «Entender as mais variadas questões», usar «Entender questões as mais variadas».

Grata.

Resposta:

As duas opções são aceitáveis do ponto de vista gramatical, embora a construção com a anteposição do adjetivo pareça ser a mais corrente.

Variado é um adjetivo que significa «que se apresenta em formas múltiplas, diversas, diferentes», «que apresenta diversidade de tipos dentro de uma mesma classe ou espécie»1, entre outras possibilidades. Pode ser colocado em posição pré-nominal ou pós-nominal, ativando significações ligeiramente distintas, como se observa nas frases abaixo:

(1) «Apresentou livros variados.» (de temas diferentes, por exemplo)

(2) «Apresentou variados livros.» (um conjunto alargado de livros)

O adjetivo variado pode ser usado em diferentes graus, sendo um deles o grau superlativo relativo:

(4) «Foram apresentados os mais variados livros.»

Neste grau pode também surgir em posição predicativa:

(5) «Estes livros são os menos variados (da minha biblioteca).»

No grau superlativo relativo de superioridade, o adjetivo pode surgir antes ou depois do nome:

(6) «Ele levantou as questões mais variadas (de todas).»

(7) «Ele levantou as mais variadas questões.»

Quanto à sua estrutura, o sintagma adjetival com gradação no superlativo relativo pode ser composto por «advérbio + adjetivo (+ de + nome/pronome)» ou por «artigo definido + advérbio + adjetivo (+ de + nome/pronome)», pelo que será possível o uso de sintagma adjetival posposto antecedido de artigo definido como em (8):

(8) «Ele levantou questões as mais variadas.»

Pela mesma razão, é tam...

Pergunta:

Em «Esse fluxo cresceu nos anos seguintes, quando o resto do mundo seguiu a política dos Estados Unidos e também proibiu a comercialização de cocaína», seria correto dizer que resto é pronome indefinido, à semelhança de «todo o mundo»?

Resposta:

Resto é um substantivo/nome comum.

A propósito desta questão é importante recordar que não se deve confundir a classe a que pertence uma palavra com a sua significação (perspetiva semântica).  

Importante é também esclarecer que a expressão «todo o mundo» não é como um todo um pronome indefinido. Poderemos, sim, afirmar que a palavra todos é considerada, nalguns quadros, um pronome indefinido (Bechara considera-a um pronome indefinido adjetivo1 e, de acordo com o Dicionário Terminológico, trata-se de um quantificador universal). Todos é, na expressão em análise, acompanhado do determinante artigo definido o e ambos incidem sobre o substantivo comum mundo.

Atentando na frase apresentada, transcrita em (1), poderemos dizer que a palavra resto é um nome acompanhado de um sintagma preposicional («do mundo»).

(1) «Esse fluxo cresceu nos anos seguintes, quando o resto do mundo seguiu a política dos Estados Unidos e também proibiu a comercialização de cocaína.»

A palavra resto significa «o que fica de um todo ou de uma quantidade, depois de se retirar uma ou várias partes»2, o que aponta para alguma indefinição semântica. No entanto, esta significação não implica a sua inclusão numa classe de indefinidos.

Disponha sempre!

 

1. Bechara, Moderna gramática portuguesa. Ed. Lucerna, p. 276....

Pergunta:

Tendo a frase «Escondi-me como logo me mostrei», como devo classificar a segunda oração?

Muito obrigada.

Resposta:

A segunda oração pode ser considerada uma oração subordinada adverbial comparativa, desde que a sua interpretação envolva uma comparação de graus (por exemplo, o grau de rapidez entre esconder-se e mostrar-se).

Neste âmbito, estabelecer-se-á uma comparação entre duas situações descritas pelos verbos esconder e mostrar e associadas ao locutor da frase (expresso pela 1.ª pessoa do singular). Esta comparação é formalizada por meio da conjunção como.

A relação de comparação construída é elíptica, na medida em que não inclui todos os termos típicos da comparação. No entanto, estes elementos poderão eventualmente ser recuperados por meio do contexto discursivo, situacional ou do conhecimento partilhado entre interlocutores1.

A frase completa poderia expressar uma ideia similar à apresentada em (1):

(1) «Tão depressa me escondi como logo me mostrei.»

O advérbio logo, que surge no interior da oração subordinada, tem a função de modificador do verbo e trata-se de um elemento acessório que contribui para a relação de comparação que, no caso desta frase simulada, assenta no grau de velocidade de realização de uma situação.

Disponha sempre!

 

1. Esta é uma situação que ocorre com alguma frequência nas estruturas comparativas, tal como descreve Marques in Raposo et al., Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2154 e seguintes.