Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em «Esse fluxo cresceu nos anos seguintes, quando o resto do mundo seguiu a política dos Estados Unidos e também proibiu a comercialização de cocaína», seria correto dizer que resto é pronome indefinido, à semelhança de «todo o mundo»?

Resposta:

Resto é um substantivo/nome comum.

A propósito desta questão é importante recordar que não se deve confundir a classe a que pertence uma palavra com a sua significação (perspetiva semântica).  

Importante é também esclarecer que a expressão «todo o mundo» não é como um todo um pronome indefinido. Poderemos, sim, afirmar que a palavra todos é considerada, nalguns quadros, um pronome indefinido (Bechara considera-a um pronome indefinido adjetivo1 e, de acordo com o Dicionário Terminológico, trata-se de um quantificador universal). Todos é, na expressão em análise, acompanhado do determinante artigo definido o e ambos incidem sobre o substantivo comum mundo.

Atentando na frase apresentada, transcrita em (1), poderemos dizer que a palavra resto é um nome acompanhado de um sintagma preposicional («do mundo»).

(1) «Esse fluxo cresceu nos anos seguintes, quando o resto do mundo seguiu a política dos Estados Unidos e também proibiu a comercialização de cocaína.»

A palavra resto significa «o que fica de um todo ou de uma quantidade, depois de se retirar uma ou várias partes»2, o que aponta para alguma indefinição semântica. No entanto, esta significação não implica a sua inclusão numa classe de indefinidos.

Disponha sempre!

 

1. Bechara, Moderna gramática portuguesa. Ed. Lucerna, p. 276....

Pergunta:

Tendo a frase «Escondi-me como logo me mostrei», como devo classificar a segunda oração?

Muito obrigada.

Resposta:

A segunda oração pode ser considerada uma oração subordinada adverbial comparativa, desde que a sua interpretação envolva uma comparação de graus (por exemplo, o grau de rapidez entre esconder-se e mostrar-se).

Neste âmbito, estabelecer-se-á uma comparação entre duas situações descritas pelos verbos esconder e mostrar e associadas ao locutor da frase (expresso pela 1.ª pessoa do singular). Esta comparação é formalizada por meio da conjunção como.

A relação de comparação construída é elíptica, na medida em que não inclui todos os termos típicos da comparação. No entanto, estes elementos poderão eventualmente ser recuperados por meio do contexto discursivo, situacional ou do conhecimento partilhado entre interlocutores1.

A frase completa poderia expressar uma ideia similar à apresentada em (1):

(1) «Tão depressa me escondi como logo me mostrei.»

O advérbio logo, que surge no interior da oração subordinada, tem a função de modificador do verbo e trata-se de um elemento acessório que contribui para a relação de comparação que, no caso desta frase simulada, assenta no grau de velocidade de realização de uma situação.

Disponha sempre!

 

1. Esta é uma situação que ocorre com alguma frequência nas estruturas comparativas, tal como descreve Marques in Raposo et al., Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2154 e seguintes.

<i>Despiciendo</i>
Um adjetivo usado na negativa

Na expressão «almoços e jantares de valor não despiciendo», qual o significado do adjetivo despiciendo? O assunto dá matéria ao apontamento da professora Carla Marques.

(Incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 3 de dezembro de 2023) 

Pergunta:

O verbo cair é intransitivo. Não obstante, na frase «A árvore caiu sobre mim» o segmento «sobre mim» não é complemento oblíquo?

Obrigada.

Resposta:

O constituinte em questão desempenha a função de complemento oblíquo.

O verbo cair é usado sobretudo como intransitivo (1) e, pontualmente, como copulativo (2)1:

(1) «Ele ia a correr e caiu.»

(2) «O comentário caiu mal.»

Poderá também ser usado como transitivo indireto, situação em que rege preposição e é acompanhado de cum complemento oblíquo, como nas frases seguintes: 

(3) «A pedra caiu do céu.»

(4) «As culpas caíram no João.»

(5) «O Natal cai num domingo.»

(6) «A Rita caiu no chão.»

No caso da frase apresentada, transcrita em (7), o constituinte «sobre mim» dá uma informação sobre lugar e desempenha a função de complemento oblíquo:

(7) «A árvore caiu sobre mim.»

Disponha sempre!

 

1. Para a análise do verbo cair, consultaram-se as seguintes fontes: Casteleiro (dir.), Dicionário gramatical de verbos portugueses. Texto editores, 2007; Luft, Dicionário prático de regência verbal. Ed. Ática, 2008.

 

N.E.: Resposta revista em 06/10/2024.

Pergunta:

Na frase, «Obrigado, que tenha um bom dia», como se justifica o elemento destacado?

Obrigado.

Resposta:

A palavra que, destacada na frase, é usada como elemento introdutório de uma frase optativa:

(1) «Obrigado, que tenha um bom dia.»

Estamos perante uma frase optativa, uma estrutura que habitualmente está ao serviço da expressão de desejos:

(1) «Que chegue depressa!»

(2) «Que não chova no evento!»

As frases optativas caracterizam-se pelo uso do conjuntivo, sem que este esteja subordinado a um termo que funcione como predicador (este poderá simplesmente não estar explicitado). Frequentemente, as frases optativas são introduzidas por que, classificado como conjunção-complementadorna Gramática do Português, mas também podem ser introduzidas pelo advérbio oxalá ou por expressões como «Deus queira que»2.

Estas frases também podem ser elíticas, em situações em que o termo introdutório é omitido:

(3) «Que venham dias melhores!» = «Venham dias melhores!»

Disponha sempre!

  

1. Do ponto de vista da gramática tradicional, este que será considerado expletivo. 

2. Para mais informações, cf. Barbosa, Santos e Veloso in Raposo et al., Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2585.