Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se é correto o uso do artigo após os verbos referidos.

Por exemplo: «adoro desportos» ou «adoro os desportos»? «Gosto de filmes de terror» ou «gosto dos filmes de terror»? «Odeio pessoas arrogantes» ou «odeio as pessoas arrogantes»?

Já vi das duas formas e não sei qual seria o correto, ou se há contextos em que usamos o artigo e outros em que não. Nesse caso, gostaria de conhecê-los.

Muito obrigada pela ajuda.

Resposta:

Ambas as possibilidades são corretas, mas poderão implicar algumas diferenças de sentido. Neste contexto, não poderemos, todavia, falar de regras gramaticais. Estamos sobretudo no plano das intenções comunicativas, que poderão também estar muito dependentes do contexto.

A opção pelo não uso do artigo definido contribui para que a situação descrita seja perspetivada como uma realidade genérica:

(1) «Adoro desportos.»

(2) «Gosto de filmes de terror.»

(3) «Odeio pessoas arrogantes.»

Em cada uma das frases anteriores, os sintagmas nominais, por não serem determinados por um artigo, descrevem situações tomadas como realidades genéricas, sendo afirmações válidas em qualquer situação ou temporalidade e que poderão constituir referências abstratas aplicadas a realidades de diferentes contextos. Nestas frases, as situações descritas como «desportos», «filmes de terror» ou «pessoas arrogantes» não são apresentadas como entidades individuais, antes designam um conjunto de entidades da mesma espécie.

Se, no contexto conversacional, o referente «desportos», «filmes de terror» ou «pessoas arrogantes» for já conhecido os interlocutores, o recurso ao artigo definido já poderá ter lugar naturalmente, uma vez que poderão representar referentes mais concretos e conhecidos dos envolvidos na situação de comunicação. Neste sentido, é possível afirmar que o uso do artigo definido contribui para a referência a situações que são tomadas com um valor mais específico, apontando para a referência a realidade tomadas como concretas e designando entidades que se distinguem de outras ou que contrastam com elas, como se ilustra por meio da expansão das frases abaixo:

(4) «Adoro os desportos e as atividades intelectuais.»

(5) «Gosto dos filmes de terror, mas odeio as c...

Pergunta:

Gostaria de saber quantas orações há na frase: «Estou com medo de entrar no avião.»

Entendo que é apenas uma oração, mas há dois verbos, sem que seja uma locução verbal.

Poderia me explicar melhor?

Grata.

Resposta:

Na frase em questão estão presentes duas orações, que se dividem conforme se indica abaixo:

(1) «Estou com[ medo termo subordinante [de entrar no avião] oração subordinada substantiva completiva infinitiva].»

A oração subordinada integra o sintagma nominal «medo de entrar no avião» e é um complemento do nome medo.

Há muitos nomes que se combinam com orações infinitivas (e também finitas), ligando-se a estas por meio de uma preposição:

(2) «Ele tinha interesse em terminar o trabalho.»

(3) «Ele tinha medo de ficar atrasado.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria de solicitar um esclarecimento relativamente à função sintática desempenhada pela expressão «com os colegas» nas frases seguintes:

«A Maria estudou com os colegas.»

«A Maria estudou a matéria com os colegas.»

Resposta:

O constituinte «com os colegas» desempenha a função sintática de modificador do grupo verbal.

O verbo estudar pode ser usado como transitivo direto, construindo-se com complemento direto, como se observa em (1):

(1) «Ele estuda matemática.»

Este verbo admite também usos intransitivos, construindo-se, neste caso, sem nenhum complemento, o que acontece em (2):

(2) «Ele passou de ano porque estudou.»

Por fim, pode ser usado como transitivo indireto com o valor de «fazer estudos; ser estudante; frequentar aulas». Neste caso, constrói-se com um constituinte com a função de complemento oblíquo:

(3) «Ele estuda em Coimbra.»

De acordo com o que ficou dito, nas frases indicadas pelo consulente, aqui transcritas em (4) e (5), o constituinte com o valor de companhia («com os colegas») não é, portanto, um argumento do verbo. Não sendo pedido pelo verbo, este constituinte tem a função de modificar o valor do verbo, desempenhando a função de modificador do grupo verbal:

(4) «A Maria estudou com os colegas.»

(5) «A Maria estudou a matéria com os colegas.»

Nas frases (4), o verbo estudar é intransitivo e na (5), transitivo direto.

Para distinguir a função de complemento oblíquo da de modificador do grupo verbal, pode também fazer-se uso de testes de identificação sintática (ver esta resposta). Apliquemo-los às frases (4) e (5):

(4) «O que é que ele fez com os colegas?»

      «Estudou.»

(5) «...

Pergunta:

A frase «[Ele é] tão livre quanto renuncia ao que o tenta amiúde» está correta?

Numa construção mais simples: «o sujeito é livre na medida em que renuncia àquilo que o tenta frequentemente».

Resposta:

A frase provoca alguma estranheza na medida em que pretende expressar uma relação consequencial ou causal, mas os conectores utilizados marcam uma relação comparativa de igualdade. Por exemplo, na frase (1) é possível estabelecer esse valor comparativo entre os dois termos:

(1) «O João é tão trabalhador quanto a Rita esperava.»

Na frase, afirma-se que o João é trabalhador num grau que equivale às expectativas da Rita.

Na frase apresentada este raciocínio não é evidente. Poderemos, não obstante, construir uma comparação de grau que aponta para a proporcionalidade como a que se expressa em (2) ou em (3):

(2) «Ele é tão mais livre quanto mais renuncia ao que o tenta amiúde.»

(3) «Ele vive tão livremente quanto (mais) renuncia ao que o tenta amiúde.»

Será possível também reformular a frase no sentido de comparar duas qualidades (expressas por meio de um adjetivo), como em (4):

(4) «Ele é tão livre quanto abnegado, renunciando ao que o tenta amiúde.»

Por outro lado, a ideia apresentada pelo consulente poderá ser expressa por uma relação consequencial:

(3) «Ele renuncia de tal modo ao que o tenta amiúde que é livre.»

Também é possível expressar uma relação causal entre os termos:

(4) «Ele é muito livre porque renuncia ao que o tenta amiúde.»

Poderemos igualmente adotar a frase sugerida pelo consulente:

(5) «Ele é livre na medida em que renúncia àquilo que o tenta amiúde.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Nas frases :

1. «Tudo quanto houve passou.»

2. «Tudo quanto é passa.»

Em 1, o termo «Tudo quanto houve» é oração subordinada substantiva subjetiva? Ou o termo «quanto houve» é oração subordinada adjetiva?

Em 2, o termo «tudo quanto é» oração subordinada substantiva subjetiva? Ou o termo «quanto é» é oração subordinada adjetiva?

Agradeço.

Resposta:

Nos casos em apreço estamos perante orações subordinadas adjetivas relativas introduzidas por quanto. Quanto é considerado um pronome relativo por Bechara1 ou por Cunha e Cintra2 3.

Este relativo tem a particularidade de ter como antecedente um pronome indefinido, que pode assumir as seguintes formas: todo(s), toda(s) ou tudo.

Neste quadro, a oração introduzida por quanto, tendo antecedente expresso, será uma oração subordinada adjetiva relativa. Deste modo, a análise das frases apresentadas pode fazer-se da seguinte forma:

(1) «Tudo quanto houve passou.»

        Tudo passou – oração subordinante

        quanto houve – oração subordinada adjetiva relativa restritiva

(2) «Tudo quanto é passa.»

         Tudo passa – oração subordinante

         Quanto é – oração subordinada adjetiva relativa restritiva

Nos dois casos, a oração relativa integra a função sintática de sujeito, pois os sujeitos das frases são, respetivamente, «Tudo quanto houve» e «Tudo quanto é». Todavia, não estamos perante orações substantivas porque, em ambos os casos, a oração relativa tem um antecedente: o pronome indefinido tudo.

Disponha sempre!

 

1. Bechara,