Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Apesar de serem expressões parecidas, geram-me dúvida.

Se pretendermos enfocar o último lugar de uma fila, qual seria o apropriado?

«No final da fila, com muito nervosismo, Mariana aprontava-se para receber o diploma.»

Ou:

«No fim da fila, com muito nervosismo, Mariana aprontava-se para receber o diploma.»

Obrigada.

Resposta:

De uma forma geral, as expressões são sinónimas, podendo ambas ser usadas em diferentes contextos.

A expressão «no fim», de acordo com o registo dicionarístico, tem um escopo alargado e pode ter uma significação mais fina, podendo indicar o momento de cessação de uma atividade que decorreu num determinado intervalo temporal:

(1) «No fim da festa»

Também pode designar a conclusão de alguma coisa (2) ou o final de um fenómeno / acontecimento / evento (3):

(2) «No fim da canção»

(3) «No fim do congresso»

Pode ainda referir a extremidade de algo que se observa na sua extensão:

(4) «No fim da fila»

O nome final é apresentado como sinónimo de fim e tem como significação «o que termina ou conclui qualquer coisa; parte terminal» (Dicionário da Língua Portuguesa. Academia das Ciências de Lisboa). Esta significação permite-lhe surgir em todos os contextos apresentados anteriormente.

No entanto, pelo menos no português europeu, parece existir uma preferência pelo recurso à expressão «no fim», o que é sinalizado numa pesquisa ao Corpus do Português, de Mike Davies, onde identificamos 1672 usos de «no fim de» face a 975 de «no final de». Este facto indicaria que os usos poderiam optar preferencialmente pela construção «no fim da fila», sem que a outra possibilidade fosse desprezada. 

Caberá, assim, à prezada consulente optar pela forma que for da sua preferência.

Disponha sempre!

Pergunta:

 Há uma discordância entre a minha classificação e de outra professora, em que ela aceita que a seguinte frase, de uma crónica de Maria Judite de Carvalho, contém uma enumeração:

«Tudo aquilo é bonito, bem arranjado, atraente, higiénico, impessoal.»

Na minha perspetiva, trata-se de uma adjetivação (qualificativa) sucessiva.

Existe fronteira de classes gramaticais na enumeração? Toda a lista de classes pode ser abrangida na enumeração, como os adjetivos?!

Podem elucidar-nos?!

Obrigado pelo vosso sempre excelente trabalho.

Resposta:

Antes de mais, há que referir que, no âmbito dos estudos literários, a adjetivação e a enumeração não se encontram no mesmo plano. Com efeito, a enumeração é uma figura de dicção descrita pelos estudos retóricos como uma forma de organização do discurso que elenca os elementos que compõem um conjunto1 ou, como descreve Ceia, uma figura que assenta na «[a]dição ou inventário de coisas relacionadas entre si, cuja ligação se faz quer por polissíndeto quer por assíndeto2 Já a adjetivação é um recurso linguístico que pode ser usado para traduzir algum tipo de expressividade, mas não constitui um recurso retórico em si mesmo. Isto significa que a adjetivação pode ser mobilizada para a construção de diversos recursos retóricos, entre os quais se encontra a enumeração.  

Assim, se na frase de Maria Judite de Carvalho pretendermos identificar as figuras de estilo utilizadas, podemos identificar uma enumeração, que se processa pelo recurso à múltipla adjetivação:

(1) «Tudo aquilo é bonito, bem arranjado, atraente, higiénico, impessoal.» (Este Tempo. Caminho, 1991)

A enumeração permite descrever as características da loja e dos seus produtos, as quais são elencadas por meio de um conjunto de adjetivos, organizados de forma assindética.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Marchese e Forradellas, 

Pergunta:

Porque se pode dizer «eu aborreço-me» e não se diz "eu apetece-me"?

Quais são as características especificas de verbos similares ao verbo apetecer e qual a sua categoria dentro dos verbos?

Resposta:

As diferenças verificadas entre os verbos apetecer e aborrecer estão relacionadas com o seu comportamento sintático-semântico. Assim, o verbo apetecer é um verbo que, frequentemente, é usado como impessoal, sendo flexionado apenas na 3.ª pessoa do singular. Para além disso, este verbo poderá combinar-se com um constituinte com valor de experienciador, indicando a pessoa que é afetada pelo aparecimento do apetite por algo ou pelo aparecimento do interesse por algo. Todavia, esse constituinte não poderá desempenhar a função sintática de sujeito, tendo de surgir como complemento indireto1. Por esta razão, a frase (1) é inaceitável, ao passo que a (2) já está bem formada: 

(1) «*Ele apetece um figo.»

(2) «Apetece-lhe um figo.»

Estas limitações não se aplicam ao verbo aborrecer, que admite que o sujeito corresponda ao experienciador:

(3) «Ele aborrece-se contigo.»

Disponha sempre!

 

*assinala frase inaceitável do ponto de vista gramatical.

 

1. Refira-se, porém, que se pode considerar que o verbo apetecer, em determinadas circunstâncias, se constrói com sujeito. Veja-se esta resposta de Carlos Rocha. 

Pergunta:

Tenho uma dúvida entre o uso de aqui, cá, lá e acolá.

Quando é que se usa cada um deles?

Muito obrigada.

Resposta:

As palavras em questão são advérbios de espaço, que têm a capacidade de apontar para o espaço físico, a partir do contexto situacional, ou de retomar o valor de um antecedente que surja no texto, indicando proximidade ou afastamento do locutor. São, por isso, palavras deíticas ou anafóricas, segundo o caso. 

Estes advérbios pertencem a duas séries: a série aqui-aí-ali e a série cá-lá. Estas ativam valores que, de uma forma geral, são equivalentes. Assim, aqui e referem o espaço em que se encontra o locutor (eu) ou um espaço perto dele, ao passo que ali e referem um espaço distante do locutor. Ali, em particular, pode referir ainda um espaço distante do eu e do tu, enquanto não tem esta especificidade.

Dada esta proximidade de sentidos, os pares aqui/cá e ali/lá são muitas vezes usados como sinónimos. Não obstante, nalguns contextos e para alguns falantes, estes advérbios podem ser usados com especificidades que os diferenciam de forma ténue e subjetiva. Como explica Raposo, «a série aqui-aí-ali associa-se por vezes a um espaço mais restrito, mais fechado, e que envolve os interlocutores de maneira mais íntima, por oposição à série cá-lá, que remete para um espaço mais alargado, mais aberto e que envolve os interlocutores de forma mais objetiva e menos íntima.»1 A diferença aqui referida pode ficar clara nos usos presentes em (1) e (2):

(1) «Vivo aqui há um ano.»

(2) «Vivo cá há um ano.»

Como explica ainda Raposo, a diferença entre estas frases residirá, para muitos falantes, na associação de aqui a um espaço mais restrito, como uma rua ou um dado prédio, enquanto será associad...

Pergunta:

«Ele foi o menino que os pais não cuidavam dele.»

O enunciado está correto?

Obrigado.

Resposta:

A frase não está correta. A incorreção está relacionada com o uso simultâneo do pronome relativo que e da contração da preposição de com o pronome ele (dele).

A frase proposta resulta da junção de duas frases:

(1) «Ele foi o menino.»

(2) «Os pais não cuidavam do menino.»

Quando se pretende juntar as duas frases, há que eliminar a repetição do sintagma «o menino», o que se pode fazer por meio de um pronome relativo. Note-se, ainda, que o pronome relativo desempenha, na oração que introduz, a função sintática que desempenharia o sintagma que ele vem substituir.

Ora, na frase (2), o constituinte «do menino» desempenha a função sintática de complemento oblíquo do verbo cuidar, função que o pronome relativo também terá de desempenhar na sua oração.

Na frase apresentada pelo consulente, na oração subordinada relativa, a função sintática de complemento oblíquo é desempenhada por dele. Em simultâneo, o pronome relativo que tenta ocupar essa mesma função. Por essa razão, a frase é incorreta.

A solução será eliminar da frase o sintagma preposicional dele, e sinalizar o preenchimento da função de complemento oblíquo pelo relativo, o que poderá acontecer por meio da utilização de «do qual» ou «de quem» como se exemplifica nas frases seguintes:

(3) «Ele foi o menino do qual os pais não cuidavam.»

(4) «Ele foi o menino de quem os pais não cuidavam.»

Disponha sempre!