Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Candidatos por eleger: 3» e «Candidatos para eleger: 3» têm o mesmo significado?

Ou seja, «Candidatos que serão/hão de ser (ou: devem/podem ser) eleitos: 3»?

Parece-me que as preposições por e para dentro de uma estrutura de SUBSTANTIVO + (POR/PARA) + INFINITIVO assume uma forma passiva do verbo, podendo ser antecedida ou não de um verbo modal.

Como não tenho certeza disso, trago tal raciocínio a vocês, pedindo-lhes o seu esclarecimento. Há um trecho duma música do Pe. Zezinho com semelhante estrutura:

1. «… Tarefa escolar para cumprir…» = … Tarefa escolar que deve ser cumprida…

Até mesmo Napoleão Mendes (que para mim não foi muito claro) traz alguns exemplos no seu dicionário:

2. «Casos para/por esclarecer» = Casos que serão/hão de ser esclarecidos

3. «Livros para/por consultar» = Livros que podem ser consultados.

Antecipadamente muito obrigado.

Resposta:

Neste caso, a opção por uma das preposições implica diferenças no sentido da construção.

Assim, na estrutura transcrita em (1), a preposição para expressa um valor de finalidade a atingir:

(1) «Candidatos para eleger»

A expressão em (1) será equivalente a

(2) «Candidatos que estão disponíveis para ser eleitos»

(3) «Candidatos que poderão vir a ser eleitos»

Já na estrutura transcrita em (2), a preposição por expressa o valor de «que ainda necessita ser feito»:

(4) «Candidatos por eleger»

Em (4) referem-se os candidatos que ainda não estão eleitos e que, eventualmente, alguém ainda irá eleger.

Os mesmos valores acima descritos estão associados às expressões aqui transcritas em (5) e (6):

(5) «Casos para esclarecer» («Casos que serão/hão de ser esclarecidos»)

(6) «Casos por esclarecer» («Casos que falta esclarecer»)

(7) «Livros para consultar» («Livros que podem ou devem ser consultados»)

(8) «Livros por consultar» («Livros que ainda não foram consultados/ que falta consultar»)

Disponha sempre!

Pergunta:

Como se deve dizer: «Roma e Pavia não se fez num dia» ou «Roma e Pavia não se fizeram num dia»?

Resposta:

A opção correta será a que se assinala em (1):

(1) «Roma e Pavia não se fizeram num dia.»

Em caso de sujeito composto, a concordância faz-se habitualmente na 3.ª pessoa do plural. O sujeito é, neste caso, composto porque é formado por dois sintagmas nominais («Roma», «Pavia») que se encontram coordenados pela conjunção copulativa e.

Note-se, todavia, que nos casos em que o sujeito é composto, mas engloba dois sintagmas que apontam para um mesmo referente, o verbo surge no singular, como em (2):

(2) «O meu vizinho e meu amigo mora no segundo andar.» (vizinho e amigo referem a mesma pessoa)

Note-se, no entanto, que esta possibilidade não se aplica à frase (1) porque os sintagmas que integram o sujeito referem duas realidades distintas: as cidades de Roma e de Pavia.1

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, Cf. Cadernos de Língua Portuguesa. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, p. 22-25.

 

N. E. (16/12/2023) – Em (1), mantendo a ordem de constituintes apresentada, não é possível o se impessoal (sujeito pronominal indeterminado) e a concordância do verbo no singular: *«Roma e Pavia não se fez num dia». Se houver pausa (p. ex. marcada por uma vírgula), entre o sintagma nominal (neste caso, «Roma e Pavia») e a restante frase, a construçã...

Pergunta:

A expressão «lides domésticas» pode ser utilizada enquanto sinónimo de «lida doméstica» ou trata-se de um erro de impropriedade lexical?

Resposta:

As duas expressões podem ser usadas como sinónimas.

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, a palavra lide pode ser usada com as seguintes significações: «luta, combate; questão entre duas ou mais pessoas, submetida à apreciação e decisão de um juiz, de um tribunal; atividade que se destaca pela defesa empenhada de determinados princípios políticos ou de certos interesses partidários; tauromaquia, toureio; qualquer trabalho que exija esforço, que cause fadiga, canseira». É no âmbito desta última significação que a expressão «lide doméstica» se enquadra.

A palavra lida, por seu turno, pode ser usada no sentido de «qualquer trabalho que exija esforço, que cause fadiga; ato ou efeito de lidar». Por esta razão, é também possível usá-la na expressão «lida doméstica».

As palavras lida e lide têm origens diferentes: lide vem do latim lis, litis, ao passo que lida é uma palavra formada por derivação não afixal com base no verbo lidar1. Não obstante, assumiram sentidos semelhantes, que, em sincronia, podem ser usados de forma indistinta.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Nas frases «Desmorona-se o sistema» e «Para lá de nós, estende-se o mistério da vida», qual a função sintática dos elementos «o sistema» e «o mistério da vida»?

A dúvida coloca-se por se tratarem de verbos acompanhados do pronome se que, em muitos casos, configuram sujeitos nulos indeterminados – «alguém desmorona o sistema» (como em «vende-se casas» = alguém as vende).

Na segunda frase, a expressão «o mistério da vida», quando colocada na passiva, passa a sujeito («O mistério da vida estende-se»), o que me coloca em dúvida em relação à sua função na ativa.

Resposta:

As frases apresentadas pela consulente terão de ser analisadas separadamente porque correspondem a diferentes realidades sintáticas com a presença de se.

A frase transcrita em (1) permite várias interpretações:

(1) «Desmorona-se o sistema.»

(i) Se é um pronome reflexo, o que significa que retoma o sujeito («o sistema»), indicando que o agente e o paciente da situação descrita pelos verbos são os mesmos. No âmbito desta interpretação, o pronome se é compatível com a expressão «a si próprio» e desempenha a função de complemento direto:

       (2) «O sistema desmorona-se a si próprio.»

(ii) Se tem função apassivadora, sendo a frase uma passiva reflexa equivalente a:

       (3) «O sistema é desmoronado (por alguém).»

      Nesta interpretação, o constituinte «o sistema» desempenha a função de sujeito.

(iii) Se integra uma oração de se impessoal, desempenhando a função de sujeito, ao passo que «o sistema» tem a função de complemento direto. Neste caso, a frase é equivalente a:

     (4) «Alguém desmorona o sistema.»

Caso o constituinte «o sistema» se encontrasse no plural, seria mais fácil optar pela interpretação (ii) ou (iii), devido à concordância verbal, como se observa nas frases adaptadas:

(5) «Desmoronaram-se os sistemas.» («os sistemas» é sujeito)

(6) «Desmorona-se os sistemas.» («os sistemas» ...

Pergunta:

Enquanto docente, deparo-me frequentemente com a utilização do verbo falar em numerosos contextos que, na minha opinião, não são, na sua grande maioria, os mais corretos.

Assim, surgem frases, como:

a) «Ele falou que ia ao cinema.» (Influência do português do Brasil)

b) «O texto fala da história dos dinossauros.»

c) «Venho falar sobre a minha opinião sobre a televisão.»

Estes são alguns exemplos daquilo que ouço diariamente, em sala de aula, mas também do que leio nos textos escritos pelos alunos. Apesar de tentar explicar aos alunos que utilizamos este verbo, sobretudo, quando nos referimos a conversas («Ele falou com ela», «Ele falou dela», «Ele falou dos seus problemas»...), vejo que nem sempre percebem a diferença e tenho alguma dificuldade em explicá-la de outro modo.

Assim para as frases acima, sugiro que escrevam/digam:

a) «Ele disse/afirmou que ia ao cinema.»

b) «O texto conta/narra a história dos dinossauros.»

c) «Vou apresentar a minha opinião sobre a televisão.»

Gostaria, então, de saber se há alguma resposta mais adequada que eu possa transmitir aos meus alunos para a resolução desta situação, pois as suas dificuldades de expressão, quer oral, quer escrita, têm vindo a agravar-se e, contrariamente ao que muitos afirmam, não por culpa dos confinamentos a que estiveram sujeitos.

Agradeço, desde já, a sua disponibilidade em responder.

Resposta:

Uma dificuldade que os alunos manifestam com alguma frequência está relacionada com a incapacidade/dificuldade de ajustar os seus textos (orais ou escritos) a um registo de língua formal ou mais cuidado. Por essa razão, a escola aborda conteúdos como as variantes diastráticas (grupos sociais) ou as variantes diafásicas (grau de formalidade) e os processos de adequação linguística ao contexto de comunicação.

Os usos do verbo falar apresentados pela consulente são todos legítimos, porque, de facto, este verbo tem uma amplitude grande de significações, como se pode observar por uma síntese do seu verbete retirada do Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa:

«1. articular, um ser humano, sons com a voz, formando palavras. 2. imitar, um animal ou um mecanismo, a linguagem humana, produzindo-a. 3. exprimir-se em determinada língua. 4. comunicar, usando um sistema não linguístico. 5. revelar um segredo; tornar pública, conhecida, determinada informação. 6. dirigir a palavra ou comunicar verbalmente com alguém; estabelecer uma conversa. 7. conversar ou fazer afirmações, comentários, observações, referências, sobre determinado assunto ou determinada pessoa. 8. fazer um discurso sobre um tema, por escrito ou oralmente; fazer a apresentação e análise de um assunto. 9. dizer alguma coisa em nome de alguém; expressar o que alguém pensa ou quer. 10. manifestar determinada intenção. 11. ter como assunto, como tema. 12.referir determinado nome ou expressão a propósito de algo. 13.  dizer que existe, que é real. 14. dirigir uma saudação ou fazer um gesto de cumprimento.»

Não obstante, em contexto didático, o uso excessivo do verbo falar poderá ser sinal de pobreza lexical e poderá ser obviado por meio de exercícios como os seguintes: