Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Carlos Góis [1881-1934], no seu livro Sintaxe de Regência, estabelece distinção entre os verbos impessoais e os unipessoais. Transcrevo para aqui o que ele refere:

«1- Não se confundam Verbos Impessoais com Verbos Unipessoais. A lamentável confusão (em que não poucas gramáticas têm incorrido) provém de que:

– tanto uns como outros só se conjugam em uma pessoa – A TERCEIRA (DO SINGULAR, OU DO PLURAL), donde ser lícito concluir: 

– os verbos impessoais são sempre unipessoais.

Os unipessoais, porém, não são impessoais, porque o seu sujeito não é "indeterminado" (como sucede aos impessoais): é sempre determinado e expresso na frase, constituído:

a) ora por um infinitivo, ex.: "Convém estudar" – "Releva dizer" – "Sucedeu-lhe sair" – "Aconteceu-me falar";

b) ora por uma oração (cláusula substantiva subjetiva): "Convém que estudes" – "Urge que saias".»

Por último, transcrevo ainda o que ele menciona no item 4:

«4- Há uma tendência moderna (em que é manifesta a nefasta influência da sintaxe francesa) dos gramáticos em equiparar os verbos unipessoais aos impessoais, partindo do princípio de que:

Quer o infinito, quer a oração (únicos sujeitos que pode ter o verbo unipessoal) "não constituem propriamente pessoas gramaticais).

Ora, sendo Pessoas Gramaticais – as diversas maneiras de ser do sujeito, segundo a definição clássica – é certo que os casos de sujeito infinitivo e de sujei...

Resposta:

A questão colocada convoca duas abordagens distintas da classe do verbo: uma, de âmbito sintático-semântico, relacionada com a constituição de uma tipologia verbal definida a partir dos argumentos selecionados por parte do verbo, e uma outra, de âmbito morfológico, relacionada com as características flexionais dos verbos.

Segundo a primeira perspetiva, os verbos são suscetíveis de ser organizados de acordo com as seguintes características:

(i) verbos que não selecionam nenhum argumento;

(ii) verbos que apenas selecionam um argumento, normalmente sujeito;

(iii) verbos que selecionam dois argumentos, um sujeito e um complemento (direto, indireto ou oblíquo);

(iv) verbos que selecionam três argumentos, um sujeito e uma combinação de dois dos vários complementos possíveis do verbo.1

Os verbos impessoais pertencem ao primeiro grupo, porque não selecionam sujeito nem qualquer complemento. Em português, este grupo é formado por um número restrito de elementos, distribuídos pelos verbos meteorológicos (chover, p.e.), de mudança de parte do dia (amanhecer, p.e.), pelo verbo haver com sentido existencial, pelos verbos haver e fazer quando referem duração e pelos verbos bastar, chegar e <...

Pergunta:

Na frase «O João anda à tua procura», tua é pronome possessivo ou pessoal, uma vez que esta a substituir «a ti»?

Obrigado.

Resposta:

Na frase apresentada, a palavra tua pode ser considerado um determinante possessivo, se adotarmos uma visão mais escolar da gramática. Não obstante, se seguirmos uma interpretação menos tradicional poderemos considerá-la um pronome possessivo.

Os vocábulos meu/minha pertencem à série do pronome eu, porque se referem à primeira pessoa do singular, teu/tua pertencem à série do pronome tu, porque se referem à segunda pessoa do singular, e assim sucessivamente.

Não obstante, numa visão tradicional meu/teu (etc.) serão determinantes ou pronomes possessivos em função do seu comportamento na frase:

(1) «Gosto do teu carro, mas prefiro o meu

(2) «Ele andou nos carros dos amigos, mas prefere o teu

(3) «A minha chegada foi muito comentada.»

(4) «O João anda à tua procura.»

Assim, meu e teu são pronomes possessivos nas frases (1) e (2) porque não acompanham um nome no seu sintagma. Já nas frases (3) e (4), minha e tua são determinantes possessivos porque expressam ...

Pergunta:

Há algo que me assombra já faz um bom tempo, o uso da próclise após o que. Vejo em todos os lugares: legendas de filmes, conversas, palestras que sempre usam ênclise após o que. Por exemplo: «temos que fazê-lo»; «temos que matá-lo»; «você tem que editá-lo».

Pelo que aprendi, o que é uma partícula que força o uso da próclise.

Gostaria de saber se nesses casos o que prevalece seria outra regra. E se há outra regra para os variantes: «temos de fazê-lo»; «temos de matá-lo»; «você tem de editá-lo».

Agradeço desde já.

Resposta:

Nos casos apresentados, é aceitável o uso tanto da ênclise do pronome como da próclise, ou seja, o pronome átono pode ser colocado tanto depois do verbo no infinitivo como antes do verbo no infinitivo1.

As construções «ter que / haver que» e «ter de / haver de»2 são equivalentes e têm comportamentos sintáticos similares no que respeita à colocação do pronome átono na oração infinitiva introduzida por que ou pela preposição de. Assim, nestes casos, é possível tanto a próclise (que é habitualmente considerada a opção mais normativa, pois que e de são atratores de próclise):

(1) «Tenho de/que o convidar.»

como a ênclise:

(2) «Tenho de/que convidá-lo

Pergunta:

É correto «Vamos imaginar que queremos achar...», ou «Vamos imaginar que queiramos achar...»?

Grato!

Resposta:

Sem outro contexto que possa concretizar a intenção do falante, estamos em crer que a frase inclui um verbo de ficção1 na oração subordinante, pelo que a opção correta é «Vamos imaginar que queremos achar…»

No caso em análise, estamos perante um complexo verbal formado por verbo auxiliar seguido de verbo principal, «vamos imaginar», que seleciona uma oração subordinada completiva, «que queremos achar».

O complexo verbal em questão tem como verbo nuclear um verbo de ficção, o verbo imaginar. Esta classe integra verbos como fantasiar, fingir, inventar e sonhar, entre outros e caracteriza-se por introduzir uma oração subordinada que expressa uma situação não factual. As situações não factuais são tradicionalmente associadas à seleção do modo conjuntivo, no entanto, no caso dos verbos de ficção, verifica-se que estes selecionam o modo indicativo2. Daí a impossibilidade da frase apresentada em (1) face à aceitabilidade de (2):

(1) «Ele fingiu que fosse ator.»

(2) «Ele fingiu que era ator.»

Pelas razões apresentadas, a frase (3) é aceitável por apresentar indicativo no verbo da subordinada, ao passo que (4) não o é por apresentar conjuntivo na subordinada:

(3) «Vamos imaginar que queremos achar...»

(4) «Vamos imaginar que queiramos achar...»

Todavia, note-se que se o verbo imaginar for utilizado como verbo que exprime a crença, a seleção do modo verbal a usar na oração subordinada já dependerá do grau de crença do falante na situação descrita na oração subordinada. Assim, um grau de crença forte levará à seleção do modo indicativo:

(5) «Ele acredita que o banho lhe faz bem.»

Por outro lado, um...

Pergunta:

Na expressão «classe social», o adjetivo social desempenha a função sintática de modificar restritivo do nome ou complemento do nome? A minha interpretação é que se trata de um complemento do nome que está intimamente ligado ao nome e com a forma de um grupo adjetival (da sociedade).

Resposta:

O adjetivo social desempenha, na expressão em apreço, a função sintática de complemento do nome.

O nome classe é um coletivo, na medida em que significa «conjunto de indivíduos, animais ou objetos com características comuns» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea). Os nomes coletivos são geralmente nomes dependentes1, ou seja, necessitam de um complemento para denotar um conjunto concreto. No caso do constituinte «classe social», o adjetivo social vem permitir ao nome que designe «um conjunto de indivíduos que partilham interesses ou afinidades culturais, económicas…» (Idem).

Refira-se, ainda, que normalmente, o complemento do nome tem a forma de um grupo preposicional introduzido pela preposição de, no entanto, este pode também ter uma natureza adjetival, como acontece, por exemplo, em «agrupamento escolar», «assembleia estudantil» ou «equipa médica» (exemplos retirados de Raposo et al., Gramática do português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 746). É este o caso do adjetivo social ao associar-se ao nome classe.

 

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