Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Quando procedia à análise da frase «naqueles dias, o pó espalhou-se pelas ruas», tive dúvidas relativamente à função sintática desempenhada pelo segmento «pelas ruas». Hesitei entre o complemento oblíquo e o modificador, sem conseguir chegar a uma conclusão.

Obrigada pela atenção e parabéns pelo trabalho desenvolvido.

Resposta:

O constituinte «pelas ruas» desempenha a função sintática de complemento oblíquo.

O verbo pronominal com o sentido de «lançar-se em todas as direções» (cf. Dicionário Houaiss) pede um complemento com informações de lugar introduzido pela preposição por (cf. Busse, Dicionário sintáctico dos verbos portugueses. Almedina, pp. 215-216), papel que, na frase em análise, é cumprido pelo constituinte «pelas ruas» com a função de complemento oblíquo, como se disse.

Note-se ainda que num uso familiar com o sentido de «cair», o verbo já não pede este complemento:

(1) «Ia a andar de bicicleta e espalhou-se.»

Sem pronome, o verbo usa-se sobretudo como transitivo direto, pedindo, portanto, um complemento direto:

(2) «Ele espalhou a notícia.»

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas palavras finais que muito nos estimulam.

Pergunta:

Qual a diferença entre o complemento oblíquo a que o verbo ceder obriga e a expressão «prestei atenção à leitura», que já foi avaliada numa prova externa, em que «leitura» surgia como complemento indireto?

Resposta:

Prestar é um verbo transitivo direto e indireto, ou seja, pede como argumentos um complemento direto e um complemento indireto, como fica claro nas construções seguintes:

(1) «Ele presta ajuda a alguém»

(2) «Ele presta homenagem a alguém»

(3) «Ele presta culto aos deuses» (exemplos adaptados de Dicionário Houaiss)

Nestas construções, é possível substituir o complemento indireto pelo pronome clítico lhe, como se observa nas frases:

(1a) «Ele presta-lhe ajuda.»

(2a) «Ele presta-lhe homenagem.»

(3a) «Ele presta-lhes culto.»

Estes casos são semelhantes ao que é apresentado, no qual o constituinte «à leitura» também é substituível por lhe, o que indica tratar-se de um complemento indireto:

(4) «Prestei atenção à leitura. / Prestei-lhe atenção»

Já no caso do verbo ceder, em construções como «ceder ao sentimento» (significando “dar-se por vencido; não resistir” (Dicionário Houaiss)), a substituição do argumento do verbo 

Pergunta:

No poema "D. Dinis" (Mensagem, de Fernando Pessoa), os elementos «fala dos pinhais», «rumor dos pinhais» e «voz da terra» são modificadores do nome restritivo ou complementos do nome?

Obrigada.

Resposta:

Todos os constituintes podem ser considerados complementos do nome.

Nos três casos apresentados, os nomes nucleares do grupo nominal, fala, voz e rumor, assumem-se como nomes dependentes, ou seja, que «denotam tipicamente entidades do mundo que só podem ser apreendidas quando postas em relação com outras entidades» (cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 715). Assim, a fala é de algo ou de alguém e o mesmo se aplica a voz  e a rumor.

A expressão «a fala dos pinhais» corresponde à construção «os pinhais falam», o que nos permite concluir que fala, ao converter-se em nome, levou a que o sujeito do verbo falar («os pinhais») assumisse a forma de complemento do nome.  

As expressões «rumor dos pinhais» e «voz da terra» podem ser interpretadas como construções possessivas equivalentes a «os pinhais têm (produzem) um rumor» ou «a terra tem uma voz», pelo que o grupo preposicional introduzido por de desempenha a função de complemento do nome.

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Pergunta:

Gostaria de saber como classificar a função sintática do segmento «ao sentimento» na expressão «Camilo cedeu ao sentimento». Consideramos que se trata de um complemento oblíquo ou indireto?

Muito obrigada.

Resposta:

O constituinte «ao sentimento» desempenha a função sintática de complemento oblíquo.

Na frase em questão

(1) «Camilo cedeu ao sentimento.»

a dúvida na identificação da função sintática desempenhada pelo constituinte residirá no facto de este ser introduzido pela preposição a, o que é típico do complemento indireto. Não obstante, é importante ter em consideração outros aspetos para proceder a uma correta identificação da função sintática:

(i) há constituintes introduzidos pela preposição a que não desempenham a função sintática de complemento indireto: «Eu vou a casa do Rui.» — neste caso, estamos perante uma preposição regida pelo verbo: ir a;

(ii) a possibilidade de substituição pelo pronome pessoal clítico dativo lhe permite identificar o complemento indireto: «Eu dou uma prenda ao Rui. / Eu dou-lhe uma prenda» vs. «Eu vou a casa do Rui. / *Eu vou-lhe.»

Assim, voltando à frase em apreço, registe-se, por um lado, que nela o verbo ceder tem uma utilização transitiva indireta e está a reger a preposição a (tal como acontece acima com «ir a»), situação em que significa “dar-se por vencido; não resistir” (Dicionário Houaiss). Por outro lado, não parece muito aceitável a substituição do constituinte «ao sentimento» pelo pronome lhe1:

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