Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual é a diferença entre: «Comprei livros» «Comprei uns livros» «Comprei alguns livros»?

Se bem que a diferença me parece clara a um nível intuitivo, sinto dificuldades em precisá-la.

Resposta:

De uma forma geral, todas as frases apresentadas têm uma referência indefinida, pelo que, em muitas situações, são usadas pelos falantes de forma algo arbitrária, sem que haja uma especialização dos diferentes usos.

Não obstante, é possível, em determinados contextos, assinalar sentidos distintos que se constroem pela ação do contexto e até pela entoação.

Uma forma de identificar algumas diferenças de sentido assenta no contraste de frases. Assim, em alguns contextos, entre (1) e (2), pode existir uma diferença entre um sentido genérico (conseguido pela ausência de determinação do nome e pelo uso do plural), em (1), e um sentido que coloca a tónica na indefinição, em (2)1:

(1) «Comprei livros.»

(2) «Comprei uns livros.»

Por outro lado, a diferença entre uns e alguns pode não ter expressividade, uma vez que, ao incidirem sobre o nome, ambos contribuem para um valor indefinido e não específico, que indica que não se refere nenhum livro em particular e o interlocutor também não tem conhecimentos para o identificar. 

Não obstante, em alguns contextos, pode existir uma distinção entre os usos de uns e alguns, como se observa em (3) e (4): 

(3) «Comprei uns livros, os últimos de Eça de Queirós.»

(4) «?Comprei alguns livros, os últimos de Eça de Queirós.»

A aceitabilidade da frase (3) e a estranheza da frase (4) estão relacionadas com o facto de uns poder contribuir para um valor específico, que se determina pela possibilidade de introdução de um modificador apositivo na frase, ao contrário de alguns

Pergunta:

Na frase «O sujeito lírico dirige-se à natureza.», quais as funções sintáticas de:

a) «lírico»? (modificador do nome restritivo ou complemento do nome?)

b) «à natureza»? (complemento indireto ou complemento oblíquo?)

Obrigada.

Resposta:

Na frase apresentada, o adjetivo lírico tem a função de modificador do nome restritivo e o constituinte «à natureza», a função de complemento oblíquo.

O nome sujeito é um nome autónomo, ou seja, não seleciona um complemento, pelo que o adjetivo incide sobre ele associando-lhe propriedades adicionais, não necessárias, e restringindo o seu sentido1, funcionando, deste modo, como um modificador do nome.

Já o verbo dirigir-se é um verbo pronominal que rege a preposição a2, com o sentido de “ter como destinatário” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea). Neste caso, coloca-se a questão de identificar a função sintática desempenhada pelo constituinte introduzido pela preposição a: complemento indireto ou complemento oblíquo?

Como já referimos aqui, o complemento indireto, em geral, iden...

Pergunta:

Na seguinte frase retirada de um texto «O ambiente deprime, porque está o que está em jogo é demasiado alto para perdermos a batalha de transição», gostaria de saber se o vocábulo para introduz uma oração subordinada adverbial final.

Obrigada.

Resposta:

No caso em apreço, para é uma preposição que introduz uma oração cuja natureza é próxima das orações consecutivas.

As orações subordinadas consecutivas introduzidas por itens como tanto/tamanho, tão/tal ou de tal forma que (por exemplo) são sintaticamente próximas das construções introduzidas por suficiente, suficientemente, demasiado (entre outros) porque predicam sobre um grau ao qual se associa uma consequência:

(1) «Está tanto frio que vou para casa.»

(2) «Está demasiado frio para sair.»

Estas construções são também próximas, porque os operadores referidos formam um constituinte com a oração que selecionam: os operadores tão, tanto… selecionam uma oração introduzida por que; operadores como demasiado selecionam uma oração introduzida pela preposição para (com o verbo no infinitivo). Estas construções, normalmente, distinguem-se entre si, porque as primeiras apresentam situações verdadeiras, enquanto as segundas não as dão como verdadeiras1.

Uma vez que não estamos perante uma oração subordinada consecutiva, sendo esta uma construção de expressão do grau, não é aconselhável o estudo destas realidades sintáticas num contexto de ensino não superior, pelas dificuldades que oferecem.

 

Disponha sempre!

 

A língua <u>de</u> que gostamos
O caso de relativos com preposições

A construção de frases com orações relativas que não são introduzidas pelas preposições regidas pelo verbo é um erro muito frequente. Carla Marques recorda as regras a seguir nestes casos para construir frases corretas. A bem da "casa" da língua!

Pergunta:

Gostaria de saber qual a função sintática desempenhada pelo pronome relativo que no verso «Gato que brincas na rua». Penso que tu será o sujeito nulo subentendido de «brincas».

Obrigada.

Resposta:

O pronome relativo que desempenha a função sintática de sujeito.

O verso em questão integra um poema de Fernando Pessoa, cuja primeira estrofe corresponde a uma frase:

«Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.»

Analisando a frase, percebemos que os versos «Gato que brincas na rua / Como se fosse na cama» desempenham a função sintática de vocativo. Trata-se de um vocativo mais complexo do que é habitual. Para compreendermos o seu funcionamento, é importante recordar que

(i) o vocativo se relaciona com a segunda pessoa, pois cumpre uma função apelativa que visa chamar alguém ou colocá-lo em evidência:

            (1) «Manuel, (tu) vens comigo?»

(ii) o vocativo pode admitir expansões que podem corresponder a orações relativas. Bechara apresenta como exemplo desta possibilidade a frase:

            (2) «Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Senhor Deus, que após a noite
Mandas a luz do arrebol,
Que vestes a esfarrapada
Com o manto rico do sol”. [CAv.1, 88]» (Moderna gramática portuguesa. Nova Fronteira, p. 380).