Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Muitas dúvidas me coloca a palavra “donde”. Usada como sinónimo de “daí”, “do que se conclui”, deve ou não ter vírgula a seguir? E o verbo, como fica?

Podem esclarecer-me através dos exemplos seguintes, por favor?

1. Os fenómenos deterministas ou causais caraterizam-se pelo facto de os efeitos serem consequências de causas, donde, conhecidas as causas, conhecem-seconhecerem-se também os efeitos.

2. Os fenómenos aleatórios caracterizam-se pela incerteza que envolvem, donde não é / ser possível determinar antecipadamente os resultados das experiências individuais. (Com ou sem vírgula a seguir ao “donde”?)

3. A classificação dos acontecimentos (…) é um tanto subjetiva na medida em que depende da avaliação de cada pessoa, donde esta categorização dos acontecimentos deve / dever ser vista como uma aproximação. (Com ou sem vírgula a seguir ao “donde”?)

4. Temos que 18÷6=3 e 24÷6=4. Donde, os números 3 e 4 são / serem primos entre si. (Com ou sem vírgula a seguir ao “donde”?)

5. Os ângulos A e B não têm apenas um lado em comum, pois o ângulo A está contido no ângulo B, donde não são / serem adjacentes. (Com ou sem vírgula a seguir ao “donde”?)

6. Donde, adicionando as frequências absolutas correspondentes às idades de 13 e 14 anos, tem-se / ter-se: 10 + 5 = 15 alunos.

7. Quando giramos a roleta, o ponteiro pode parar em cada um dos seus números, mas não sabemos antecipadamente qual desses números assinalará. Donde, trata-se/ tratar-se de uma experiência aleatória. (Com ou s...

Resposta:

A forma contraída donde (preposição de e advérbio onde) é usada

(i) sobretudo com valor locativo, como em

(1) «A casa donde veio ficava distante.»

(ii) frequentemente como interrogativo:

(2) «Donde vieste?»

(iii) com um valor equivalente a “daí”:

(3) «Tem tido muitos problemas, donde as reações que se lhe conhecem.» 

Note-se, porém, que uma análise às ocorrências desta forma no Corpus do Português de Mark Davies mostra que os usos de donde com um valor equivalente ao referido em (iii) é pouco frequente.

Este último uso gera principalmente orações resultativas (ou consequenciais), nas quais a causa é dada na oração principal e o resultado na oração subordinada.

Este conector pode ligar duas orações (4) ou uma oração a um sintagma nominal (5):

(4) «Ele não falava com ninguém, donde muitos não saberem sequer o seu nome.»

(5) «Ele era muito bem-disposto, donde a sua popularidade.»

No que respeita à pontuação, visto que estamos perante uma situação de orações periféricas, ou seja, que mantêm um grau de integração mais fraca na frase é aconselhado o uso da vírgula em início de oração: «As orações subordinadas periféricas distinguem-se das orações integradas por se destacarem do resto da frase através de uma pausa ou quebra entoacional, assinalada ti...

Pergunta:

Mais uma vez recorro [ao Ciberdúvidas] para saber se esta frase está certa ou errada:

«Todos ficarão alertas, embora haja menos greves.»

Grato.

Resposta:

Se alerta estiver a ser utilizado como um adjetivo, a frase é possível, embora do ponto de vista normativo alguns gramáticos não a considerem aceitável.

A palavra alerta pode ser usada como adjetivo qualificativo com o sentido de «que está vigilante, atento» (Dicionário Houaiss). Neste caso, a palavra flexiona em número e pode

(i) incidir sobre um nome: «pessoas alertas»;

(ii) surgir em posição predicativa: «Eles ficaram alertas».

A palavra alerta pode também ser usada como advérbio com o sentido de «com vigilância, atentamente», como em (1) ou (2):

(1) «Eles mantêm-se alerta.»

(2) «Fiquem alerta a comportamento estranhos.»

Neste uso, a palavra é invariável.

Deste modo, a correção da frase apresentada depende da classe de palavras que estiver a ser mobilizada.

Recorde-se, todavia, que alguns gramáticos condenam o uso de alerta como adjetivo. É o caso de Evanildo Bechara, que afirma: «Notemos, por fim, que alerta é rigorosamente um advérbio e, assim, não aparece flexionado: Estamos todos alerta. Há uma tendência para se usar desta palavra como adjetivo, mas a língua padrão recomenda se evite tal prática.» (in Moderna Gramática Portuguesa. Nova Fronteira, p. 449)

Deve, ainda, acrescentar-se que, na va...

<i>Maléfica: Mestre do Mal</i>
A assunção de um mundo feminino sem maldade ou um erro gramatical?

No título Maléfica: Mestre do Malnovo filme da Disney, a opção pela forma mestre oferece sérias dúvidas. Tratar-se-á de um erro ou podemos imaginar intenções "maléficas"? 

Pergunta:

Desde já agradeço a atenção e louvo o excelente trabalho prestado.

Na frase «Ele esforça-se para obter resultados», devemos classificar a oração subordinada como adverbial final ou podemos considerá-la uma substantiva completiva, uma vez que parece ser argumento do verbo esforçar-se.

Muito obrigada

Resposta:

A oração em questão é uma subordinada substantiva completiva.

Para identificarmos uma oração em casos similares ao apresentado, teremos de determinar se estamos perante:

(i) um verbo que rege uma preposição, formando com ela um predicador complexo1:

                (1) «Eu gosto de estudar sozinha.»

(ii) um verbo acompanhado por uma oração subordinada, introduzida por uma dada conjunção:

                 (2) «Ele estudou muito para passar de ano.»

No caso em apreço, o verbo esforçar(-se) tem um uso transitivo indireto, podendo reger as preposições para ou por2. Deste modo, a frase apresentada é formada por uma oração subordinante, «Ele esforça-se», e por uma oração subordinada completiva (não finita), «para obter resultados».

 

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas palavras iniciais, que muito nos estimulam.

 

1. Nesta situação, o predicador complexo é um constituinte formado pelo verbo e pela preposição que este rege (cf. Barbosa in Raposo 

Pergunta:

Na frase «Elas prestam atenção a tudo», o constituinte «a tudo» é um complemento oblíquo, um complemento indireto ou um complemento do nome?

Resposta:

O constituinte «a tudo» desempenha a função sintática de complemento indireto.

A frase apresentada tem a particularidade de incluir um predicador complexo, constituído por um verbo leve1 (ou de suporte) e um constituinte nominal, «atenção». Esta expressão caracteriza-se inclusive por um certo grau de cristalização.

Embora prestar funcione como verbo leve, não deixa de manter as propriedades de seleção argumental características do verbo pleno2, pelo que, na frase (1), o constituinte «a tudo» tem a função de complemento indireto, tal como o terá o constituinte «ao João e ao António» na frase (2) ou «ao programa de televisão», na frase (3):

(1) «Elas prestam atenção a tudo.»

(2) «Elas prestam atenção ao João e ao António.»

(3) «Elas prestam atenção ao programa de televisão.»

Os constituintes «ao João e ao António» e «ao programa de televisão» podem ser substituídos pelo pronome lhe(s):

(2a) «Elas prestam-lhes atenção.»

(3a) «Elas prestam-lhe atenção.»

Na frase (1), a substituição do pronome tudo pelo pronome lhe produz um resultado estranho, que se deve à semântica de tudo e ao facto de estarmos a substituir um pronome por outro. Não obstante, o princípio sintático que nos diz que num mesmo espaço sintático o constituinte desempenha sempre a mesma função sintática aponta para o facto de «a tudo» ter a função de complemento indireto.

Disponha sempre!

 

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