Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual é a forma correcta1?

«Como te der jeito» ou «como te dê jeito»?

Obrigado.

 

[1. O consulente escreve correcta, seguindo a ortografia em vigor até 2009 em Portugal. No quadro do Acordo Ortográfico de 1990, escreve-se correta.]

 

Resposta:

A frase apresentada pode ser interpretada como elíptica, na medida em que está omissa uma oração subordinante ou como uma expressão fixa, usada, por exemplo, numa interação verbal.

No caso de integrar uma estrutura elíptica, a oração subordinante pode determinar a natureza da oração apresentada pelo consulente.

Vamos imaginar que a frase completa teria a forma apresentada em (1):

(1) «Faz como te der jeito.»

Neste caso, a oração «como te der jeito» é uma oração subordinada relativa, na qual o pronome como é equivalente a «(d)o modo que»1.

Relativamente ao tempo/modo que poderá ser usado na oração subordinada, podemos afirmar que este mantém uma relação de dependência com o tempo verbal do verbo da oração subordinante. Assim, com o verbo da subordinante em diferentes tempos do modo indicativo, é possível apresentar o verbo da subordinada flexionado nos mesmos tempos do indicativo de forma a expressar uma realidade:

(2) «Fazes como te dá jeito.»

(3) «Fazias como te dava jeito.»

(4) «Fizeste como te deu jeito.»

Com o modo conjuntivo a expressar uma possibilidade, o futuro do conjuntivo aponta para um intervalo de tempo futuro em relação ao momento de enunciação. Neste caso, e atendendo a que o verbo fazer também contribui para a configuração de uma ação a ocorrer após o momento de enunciação, a opção mais natural parecer ser o futuro do conjuntivo, tanto com o verbo da oração subordinante no indicativo como no imperativo:

(5) «Faz como te der jeito.»

Não obstante, uma expressão como (6), que inclui o verbo no presente do conjuntivo, também será aceitável para alguns falantes:

(6) «?Faça como lhe dê...

Pergunta:

Durante uma pesquisa acerca da subclasse dos advérbios, encontrei a seguinte explicação, dada no dia 1 de fevereiro de 2019, sobre os advérbios efetivamente, realmente e decerto: 'A subclasse dos advérbios efetivamente, realmente e decerto'. 

Considero que estes advérbios são de frase: 'Os advérbios de frase e os conectivos'.

Uma vez que as respostas foram dadas em anos diferentes (2010 e 2019), gostaria de saber se houve alterações, se alguma das explicações apresentadas não está correta, ou, estando as duas corretas, como poderemos distinguir as subclasses.

Desde já agradeço a atenção.

Resposta:

A classe dos advérbios é uma das áreas que têm dividido os gramáticos. Por essa razão, existem propostas de classificação do advérbio de âmbito bem diverso e que adotam critérios distintos.

A gramática tradicional propõe uma classificação das subclasses do advérbio considerando a sua significação, ou seja, estamos perante subclasses semânticas que se constroem a partir do significado das palavras. Nesta ótica, palavras como realmente, efetivamente ou decerto poderão ser consideradas advérbios de afirmação, uma vez que contribuem para marcar o valor afirmativo de um enunciado ou são utilizadas em respostas a questões totais.

Existem, contudo, propostas de constituição de subclasses do advérbio a partir de critérios sintáticos. Estes critérios permitem, por exemplo, definir a subclasse dos advérbios de predicado como aqueles que incidem sobre o predicado (sendo afetados pela negação e pela interrogação) e a subclasse dos advérbios de frase, que incidem sobre a frase na sua globalidade, modificando-a (não sendo afetados pela negação ou pela interrogação). Estas duas subclasses sintáticas incluem advérbios com diferentes valores semânticos, como se vê pela classificação dos advérbios nas frases (1) a (5):

(1) «O João comeu muito.» (muito: advérbio de predicado; advérbio de quantidade)

(2) «O João chegou agora.» (agora: advérbio de predicado; advérbio de tempo)

(3) «O João escreveu calmamente.» (calmamente: advérbio de predicado; advérbio de modo)

(4) «Efetivamente, o João escreveu.» (efetivamente: advérbio de frase; advérbio de afirmação)

(5) «Possivelmente, o João terá escrito esta carta.» (possivelmente: advérbio de frase; advérbio de dúvida)

Pergunta:

Na frase «Este livro pertence à estante vermelha», a expressão "à estante vermelha" desempenha a função sintática de complemento oblíquo? Ou complemento indireto? Vi um colega de trabalho considerar a última hipótese e fiquei na dúvida...

Continuamos a contar com o vosso excelente trabalho!

Resposta:

A expressão em análise tem a função de complemento indireto.

O verbo pertencer é transitivo indireto, pedindo um argumento com a função de complemento indireto.

São vários os indicadores que contribuem para a confirmação desta função sintática:

(i) o constituinte pode ser substituído pelo pronome átono lhe:

(1) «Este livro pertence-lhe.»

(ii) o constituinte tem o valor semântico de possuidor. Embora o constituinte com função de complemento indireto tenha mais frequentemente o valor de destinatário (como em (2)), há também situações em que ele indica o possuidor de algo expresso no sujeito:

(2) «Ele escreveu uma carta à Rita.» («à Rita» é destinatário da ação de escrever a carta)

(3) «Este livro pertence à estante vermelha.» («a estante vermelha» possui o livro)

(iii) o constituinte permite o redobro do clítico

(4) «Ele escreveu-lhe uma carta a ela.» (o pronome lhe é reiterado pela construção «a ela»; note-se que o complemento indireto não admite a construção apenas com preposição seguida da forma tónica do pronome: «*Ele escreveu uma carta a ela.»

Assim sendo, embora o constituinte «à estante vermelha» apareça, na frase, associado a uma personificação, que permite a um objeto ser possuidor de algo, tal não interfere na função sintática desempenhada.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as palavras de estimulo que nos endereça!

 

*assinala a agramaticalidade da frase.

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Refletindo sobre os usos da  linguagem para expressão da discriminação ou do ódio, Carla Marques aborda a questão do uso da linguagem nos estádios de futebol e as expressões de conotação racial usadas em diferentes contextos. 

Pergunta:

Gostava de saber que situações nos obrigam, necessariamente, ao uso do pronome relativo o qual (e suas flexões).

Já sei que quando temos uma preposição dissilábica antes do antecedente (como por exemplo durante, sobre, etc.) somos obrigados a usar o qual, mas excluindo estas situações, que outras há em que não possamos usar que e somos forçados a usar o qual?

Obrigada.

Resposta:

A locução o qual integra o conjunto de palavras/locuções relativas que têm a função de introduzir uma oração subordinada relativa.

Em termos gerais, a locução só é usada quando a oração relativa tem antecedente (1), não sendo possível a sua integração em orações relativas sem antecedente (2) ou orações relativas de frase (3):

(1) «O livro, o qual me foi oferecido por amigos, era muito interessante.»

(2) «*O qual foi oferecido por amigos era muito interessante.»

(3) «*Ele provocou esta situação, o qual me aborreceu imenso.»

Podemos identificar ainda contextos de uso nos quais a locução o qual é aconselhável, possível ou interdita1:

(i) tem uso obrigatório (ou preferencial) quando introduzida por preposição de duas ou mais sílabas ou por locução prepositiva, com antecedente [-humano]:

(4) «O livro sobre o qual escreveste já ganhou um prémio.»

(5) «O livro acerca do qual fiz um trabalho é um dos meus favoritos.»

(ii) quando o antecedente é [+humano], a locução o qual só é obrigatória com a preposição sem:

(6) «Este é o aluno sem o qual / ?sem quem a aula não seria igual.»

(7) «O colega com quem/o qual trabalhei ajudou-me imenso.»

(iii) introduzido por qualquer preposição, o qual surge livremente em orações com função de modificador restritivo de nome ou de modificador apositivo de nome:

(8) «Os alunos aos quais atribuí esta função não falharam....