Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Epiphânio Dias, na sua Sintaxe histórica, pág. 277 [2.ª edição, 1933], considera a conjunção que seguida de não como causal com o valor de e, mas não alcancei o porquê; quer-me parecer que «que não» nos contextos indicados pelo autor equivale a exceto.

Pode classificar-se ainda hoje o que que aparece nesse contexto como causal, como pensa Epiphânio Dias? Pode ver-se nesse que um que relativo substituível por o qual?

Obrigado.

Resposta:

Epiphânio da Silva Dias refere que «parece ter valor causal a conjuncção que (seguida de não) empregada nos contrastes com a significação aparente de e» (Sintaxe histórica portuguesa, p. 277).

Quando o autor menciona a «significação aparente de e», estará a fazer alusão ao facto de a conjunção que funcionar como a conjunção copulativa, o que se verifica até pela possibilidade sintática de aquela substituir que, como se observa na citação d’Os Lusíadas, apresentada como exemplo pelo autor:

(1) «[…] maravilha / Feita de Deus, que não de humanos braços» (VIII, 24)

(2) «[…] maravilha / Feita de Deus, e não de humanos braços»

Como é sabido, a conjunção copulativa e tem a capacidade de veicular diferentes valores de nexo, que vão da adição, à temporalidade ou ao contraste, por exemplo. Parece ser a estes valores que o autor se refere quando afirma que a conjunção que é empregada nos contrastes, realçando, assim, o valor de contraste que se estabelece entre os dois membros conectados pela conjunção. Com efeito, na frase apresentada, estabelece-se um contraste entre «Deus» e «humanos braços».

A este valor contrastivo, Epiphânio Dias acrescenta ainda, adotando uma posição modalizada pelo verbo parecer, um valor causal, o que significaria que no lugar de que poderia surgir, por exemplo, a conjunção porque:

(3) «[…] maravilha / Feita de Deus, porque não de humanos braços»

Esta interpretação, s...

Pergunta:

Numa gramática que consultei, admite-se que para pode ser uma conjunção, classificação que não entendo...

Para não é uma preposição que pode introduzir orações?

Como consigo aferir se para é uma preposição ou uma conjunção?

Agradecido

Resposta:

De acordo com as propostas da gramática tradicional, a palavra para é uma preposição, quando introduz um grupo preposicional (conjunto de palavras sem um verbo nuclear), ou uma conjunção subordinativa final, quando introduz uma oração subordinada final, ou uma conjunção subordinativa completiva, quando introduz uma oração subordinada completiva.

No entanto, estudos gramaticais mais recentes vieram propor uma nova classificação para a palavra para: 

(i) «uma preposição reanalisada como complementador em construções de completação da verbal»1, o que significa que para, quando introduz uma oração subordinada completiva final, assume o papel de uma palavra que introduz a oração que completa o sentido do verbo:

(1) «Ele disse para ir ter com ele.»

(ii) «nas orações finais, estamos na presença de uma preposição a introduzir um constituinte frásico, que ou é iniciado pelo complementador que, sendo a oração finita, ou não comporta tal complementador, surgindo então uma oração infinitiva»1, como acontece em (2):

(2) «Ele correu para chegar mais depressa.»

Não obstante o que ficou dito atrás, em contexto escolar não superior a classificação inicial de para como conjunção que introduz orações subordinadas e de para, preposição que introduz grupos preposicionais, é a que se utiliza.

Disponha sempre!

 

1. Mateus, M.H.M. et al., Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, p. 717.

Pergunta:

Em «Eu sei como resolver o problema», «como resolver o problema» é uma oração subordinada substantiva relativa com função de complemento oblíquo?

Ou estou equivocado?

Agradecido pela ajuda

Resposta:

A oração «como resolver o problema» é uma oração subordinada substantiva completiva. O verbo saber exige, para que a frase seja bem formada, um constituinte que o complemente. Por essa razão, a oração em análise é um complemento do verbo que tem a função de complemento direto, o que se comprova pelo facto de poder ser substituída pelos pronomes -o ou isso:

(1) «Eu sei-o.»

(2) «Eu sei isso.»

Disponha sempre!

Pergunta:

«As lições morais que encerram os relatos sobre animais é uma das principais características que distinguem os bestiários dos tratados de história natural anteriores.»

Na frase acima está correta a concordância do verbo ser?

Obrigado.

Resposta:

A frase apresentada envolve diversos problemas, que passaremos a tratar de forma faseada.

Em primeiro lugar, coloca-se a questão de classificar o tipo de oração copulativa. As características apresentadas levam-nos a classificá-la como uma oração copulativa identificadora, ou seja, uma oração cujo «constituinte predicativo […] não classifica propriamente o indivíduo referido pelo sujeito como pertencendo a uma classe geral, mas identifica-o como sendo o portador de tal ou tal propriedade» (Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1319). Parte-se, deste modo, do princípio que a frase apresentada tem como objetivo identificar as características de uma determinada realidade. 

Em segundo lugar, as orações copulativas identificadoras podem surgir na ordem canónica (SUJEITO + SER + PREDICATIVO do SUJEITO) ou na ordem inversa (PREDICATIVO do SUJEITO + SER + SUJEITO). Nestas orações, tipicamente, o verbo ser concorda em pessoa e número com o sujeito, ainda que ele se encontre em posição pós-verbal, como acontece em (1):

(1) «Os donos da empresa somos nós.»

Ora, considerando que a frase apresentada é uma copulativa identificadora, coloca-se a questão da identificação do sujeito. Para identificar o sujeito deste tipo de frases, podemos recorrer a dois testes: a clivagem e o redobro do sujeito1. Passamos a aplicá-los usando uma simplificação da frase apresentada, com o objetivo de facilitar a análise:

(1) «A lição de moral é uma das características dos bestiários.»

(i) teste da clivagem: coloca o foco num elemento da frase; nas frases na ordem inversa não é possível colocar o foco no constituint...

Pergunta:

O complemento do advérbio existe como função sintática? Sei que o advérbio e os elementos a ele ligados desempenham muitas vezes a função de modificador, mas desempenham também a de complemento do advérbio?

Coloco esta questão, porque esta função sintática não surge no Dicionário Terminológico, surgindo apenas listados o complemento do nome e do adjetivo. Além disso, também não surge nas aprendizagens essenciais para o secundário nem surgiu nas metas curriculares.

Muito grata pela resposta.

Resposta:

Existe, de facto, a função sintática complemento do advérbio.

 Tipicamente, o advérbio não se combina com um complemento. No entanto, existem advérbios que geram função ao selecionar um complemento. É o que acontece em (1):

(1) [Independentemente da tua opinião], não vou ler este livro.

Nesta frase, o sintagma adverbial «independentemente da tua opinião» tem como núcleo o advérbio independentemente, que seleciona o constituinte «da tua opinião», que tem a função sintática de complemento do advérbio.

Há algumas classes de advérbios que selecionam complemento. Destacamos aqui três1:

(i) alguns advérbios em -mente (como em «contrariamente à tua opinião»);

(ii) advérbios como fora, dentro, perto;

(iii) advérbios avaliativos que selecionam um complemento oracional (como em «felizmente que ela já chegou.»).

O Dicionário Terminológico é um documento de trabalho ajustado ao estudo da gramática em contexto não universitário, pelo que não contempla todas as realidades gramaticais. O mesmo se verifica com os documentos programáticos oficiais, que selecionam conteúdos que se consideram ajustados às capacidades dos alunos e aos objetivos de um programa generalista de português. Por esta razão, muitos conteúdos gramaticais não são abordados até ao 12.º ano, ficando relegados para estudos especializados ou de âmbito universitário. 

Disponha sempre!

 

1. Para uma abordagem mais aprofundada, consulte-se Raposo et al.,