Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

a) «Certifique-se de que os dados do seu passaporte possam ser lidos de forma clara e de que a imagem não contenha partes desfocadas ou afetadas por reflexos»;

ou b) «Certifique-se de que os dados do seu passaporte podem ser lidos de forma clara e de que a imagem não contém partes desfocadas ou afetadas por reflexos»?

Apesar de já ter lido uma resposta sobre este tema [...], confesso que as frases acima me deixam um pouco confuso quanto à possibilidade de utilização do conjuntivo, uma vez que o elemento de «certeza/realidade/facto» não é claro:

1 – A ação que condiciona a boa leitura do documento ainda não foi realizada;

2 – Subentende-se, com facilidade, que o leitor terá de fazer mais do que «certificar-se de que». Nomeadamente, terá de se esforçar por obter uma digitalização correta do passaporte. Ou seja, a expressão «certificar-se de que» comporta um significado mais abrangente do que um simples «verifique se está tudo bem»;

3 – Existe sempre a possibilidade de o leitor não seguir o conselho (por esquecimento, etc.).

Os elementos acima remetem-nos para outra explicação: «o emprego do subjuntivo também indica que uma ação, ainda não realizada, é concebida como subordinada a outra, expressa ou subentendida, de que depende diretamente». Por conseguinte, sinto-me tentado a considerar que a utilização do conjuntivo na frase a) é correta.

Estarei equivocado?

Grato pela atenção.

Resposta:

Com o verbo certificar ambos os modos verbais são possíveis, o que terá consequências no plano dos valores veiculados, que estão relacionados com a crença que se expressa. Acrescente-se, não obstante, que a frase apresentada pelo consulente revela especificidades que parecem introduzir limitações ao uso do modo conjuntivo. 

A seleção do modo verbal a utilizar em orações subordinadas completivas está, normalmente, dependente do valor de crença que se associa à realidade descrita na oração subordinada. Assim, usa-se o modo indicativo quando há uma forte crença na verdade da frase, o que, no caso apresentado, significa que se acredita que a leitura dos dados vai efetivamente ter lugar:

(1) «Certifique-se de que os dados do seu passaporte podem ser lidos de forma clara.»

O grau de crença na verdade da situação descrita na oração subordinada é similar ao grau de crença expresso na frase (2):

(2) «Ele acredita que o João partiu esta garrafa.»

Quando se seleciona o modo conjuntivo, expressa-se um grau de crença menor na verdade da situação escrita na oração subordinada, tanto em (3) como em (4):

(3) «Certifique-se de que os dados do seu passaporte possam ser lidos de forma clara.»

(4) «Ele acredita que o João tenha partido a garrafa.»

Na frase (3), o locutor não sabe se os dados do passaporte serão lidos, enquanto na frase (1), ele acredita que serão efetivamente lidos.

Já a segunda oração completiva coloca outros problemas uma vez que descreve uma realidade factual: «a imagem não contém partes desfocadas ou afetadas por reflexos». Neste caso, não parece ser possível jogar com o grau de crença, pelo que a frase correta será:...

Pergunta:

Eu sempre aprendi que uma locução verbal é formada por um verbo auxiliar (conjugado pelo sujeito) + um verbo principal (sempre na forma nominal):

• As pessoas |devem ser| felizes.

Porém, com a prática de ler vários artigos, percebi a existência de "locuções verbais" com 3 ou 4 verbos.

• As casas devem ser feitas em um ano.

• Você pode querer tentar ser alguém.

As minhas dúvidas são:

1. Esses verbos podem ser chamados de locuções verbais?

2. Se sim, como seria a classificação desses 3/4 verbos em relação a "auxiliar e principal"?

«Você poderia ter cantado mais.»

Obrigado.

Resposta:

É possível assinalar a existência de locuções verbais que incluem mais do que um verbo auxiliar.

Segundo Cunha e Cintra, «Os conjuntos formados de um verbo auxiliar com um verbo principal chamam-se locuções verbais. Nas locuções verbais conjuga-se apenas o auxiliar, pois o verbo principal vem sempre numa das formas nominais: no particípio, no gerúndio, ou no infinitivo pessoal.» (Nova Gramática do Português Contemporâneo. Edições Sá da Costa, p. 393)

Assim, de acordo com o que ficou exposto, as locuções verbais caracterizam-se por constituírem um grupo verbal que funciona como se se tratasse de um só verbo. Por essa razão, em (1) não estamos perante uma locução verbal:

(1) «A Rita decidiu ler durante a tarde.»

Neste caso particular, decidir e ler são dois verbos plenos, pelo que não formam uma locução verbal, que se caracteriza por funcionar como um só verbo. Na frase (1), ler é complemento direto do verbo nuclear da frase decidiu, que, por seu turno, não tem estatuto de verbo auxiliar.

Refira-se, todavia, que é possível identificar situações em que a locução verbal inclui mais do que um verbo auxiliar. É o que se verifica em (2):

(2) «O João deixou de ir participar no programa.»

Na frase (2), o verbo participar corresponde ao verbo central, enquanto deixar e ir

A calamidade e o estado de calamidade
Significados em tempos de covid-19

«Para os portugueses, esta situação de calamidade (declarada pelo Governo a partir das 0h00 do dia 15 de outubro de 2020) é um retorno a uma situação conhecida. Não obstante, desta feita, trata-se de um regresso a uma situação, mas não a repetição de uma situação», escreve a professora Carla Marques, num contexto em que explora ainda a pertinência do termo calamidade nos tempos que vivemos.

Pergunta:

Quero saber se se pode dizer arbitrariamente «quanto mais, melhor», e «quão mais, melhor», sendo que quão é usado antes de adjetivos e advérbios.

Podemos pensar em mais como um advérbio?

Esta pergunta vale tanto para quanto e quão como para tanto e tão.

Obrigado desde já pela vossa atenção.

Resposta:

A frase «Quão mais, melhor» é incorreta, não podendo funcionar como alternativa a «Quanto mais, melhor». 

Os operadores quanto e quão podem ser usados em construções comparativas, surgindo no segundo termo de comparação. O advérbio quão é, todavia, sentido como mais literário e é usado sobretudo nas situações em que se comparam graus de propriedades distintas da mesma entidade:

(1) «Ele estuda tanto quanto pode.»

(2) «Ele é tão estudioso quão inteligente.»

Na estrutura apresentada pelo consulente, estamos perante um caso de oração proporcional1, que, segundo Bechara, é uma construção que pode ser introduzida pelos seguintes operadores: «à medida que, à proporção que, ao passo que, tanto mais... quanto mais, tanto mais... quanto menos, tanto menos... quanto mais» (Moderna Gramática Portuguesa. Nova Fronteira, p. 412). A listagem apresentada não contempla, portanto, a construção «quão mais». Acresce-se, ainda, que uma pesquisa no Corpus de Português, de Mark Davies não devolveu exemplos de usos de quão em construções proporcionais. Assim, a situação aponta para a impossibilidade da construção «*quão mais», que não poderá, portanto, substituir «quanto mais».

Refira-se também que o exemplo apresentado pelo consulente será elítico na medida em que esta construção indica tipicamente uma correlação entre duas escalas, que neste caso ficam su...

Pergunta:

Em "Não abrirei mão de meus sonhos", qual é a predicação verbal. Seria "abrir" um VTDI (verbo transitivo direto e indireto), com OD (objeto direto) «mão» e OI (objeto indireto) «de meus sonhos»?

Obrigado.

Resposta:

A expressão «abrir mão» com o sentido de ‘renunciar; desistir de algo’ é uma expressão idiomática formada por uma locução fixa, o que significa que o nome mão não poderá ser substituído por outro item lexical.

Podemos considerar que o verbo abrir é acompanhado por um complemento direto (mão) e por um complemento oblíquo / complemento relativo («de meus sonhos»).

Embora selecione complementos, o verbo abrir, neste caso particular, não revela todas as potencialidades de verbo pleno, pelo que não poderemos afirmar que é um verbo transitivo direto e indireto típico. Está, antes, mais próximo da natureza de um verbo leve, pois seleciona um constituinte nominal para com ele formar uma estrutura complexa que designa uma realidade que poderia ser verbalizada por um verbo simples.

Disponha sempre!