Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
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… mas sem tirania

A propósito dos resultados eleições legislativas em Portugal, que deram maioria absoluta ao Partido Socialista, a professora Carla Marques reflete sobre os significados da palavra maioria

Pergunta:

Que sentido tem a expressão «elegância florentina», usada na crónica de Clara Ferreira Alves na Revista do semanário Expresso [de 22/01/2022]?

Resposta:

O adjetivo florentino forma-se a partir de Florença, cidade localizada na região da Toscana, em Itália, que foi durante muito tempo capital da moda e é conhecida por ser o berço do Renascimento italiano. A cidade acolhe obras de artistas do Renascimento, como Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, GiottoSandro Botticelli, Rafael, Donatello, entre outros. Por estas razões, o adjetivo florentino convoca as ideias de requinte, harmonia de formas ou perfeição.

Assim, quando Clara Ferreira Alves, na sua crónica intitulada «O líder que não se demite» (revista do Expresso), profere a afirmação que transcrevemos em (1), pretende afirmar que Mitterrand conseguiu sobreviver a vários escândalos de forma elegante, requintada e até com toques de perfeição. De tal forma que a sua imagem permaneceu intocada e apreciada pelos franceses:

(1) «Mitterrand usou o truque para sobreviver a vários escândalos,...

Pergunta:

Qual das frases está correta? Ou estarão as duas?

«Todos os que estavam com ela sorriam e a acarinhavam.»

«Todos os que estavam com ela sorriam e acarinhavam-na.»

Resposta:

As duas formas são aceitáveis.

De uma forma geral, as orações coordenadas copulativas introduzidas pela conjunção e e as orações coordenadas adversativas introduzidas pela conjunção mas, assumem as regras de colocação dos pronomes clíticos que se aplicam às frases simples ou às orações subordinantes. Isto significa que os pronomes nelas incluídos são colocados em posição enclítica, isto é, depois do verbo, se não existir no interior da oração nenhum elemento que atraia o pronome para posição proclítica, isto é, para antes do verbo. Em (1), a posição é enclítica porque nenhum elemento atrai o pronome e em (2) é proclítica porque o pronome ninguém atrai o pronome:

(1) «O João deu-lhe um livro e pediu-lhe ajuda.»

(2) «O João pediu ajuda e ninguém lha deu.»

Não obstante, como afirma Martins, «[n]as estruturas coordenadas copulativas, a presença de elementos indutores de próclise num dos termos da estrutura coordenada pode condicionar, ou não, a colocação dos pronomes clíticos nos termos subsequentes da mesma estrutura»1. A autora apresenta exemplos como:

(3) «as trevas davam lugar a uma espécie de paz branca, a uma espécie de ausência, pensou ainda E amanhã?, e nada lhe doía já, o ofendia, o incomodava, o perturbava» (CPRC, L. Antunes, Fado)

Desta forma, podemos considerar ambas as frases apresentadas corretas, tanto com próclise do pronome da oração coordenada (4), como com ênclise (5):

(4) «Todos os que estavam com ela sorriam e a acarinhavam.»

Pergunta:

Ao ler a frase "Proteja-se a si e aos outros" fiquei com uma dúvida. Qual a razão para usar "a si" e "aos outros"?

Na frase "Proteja-se a si e aos outros" usamos "a si" porque o pronome pessoal reflexo "si" vem acompanhado da preposição "a". Logo, dizemos "Proteja-se a si" tal como dizemos "Convido-o a si". Mas qual é a lógica da segunda parte, "proteja aos outros"? Qual é o papel da preposição "a" contraída com "os outros" neste exemplo, sabendo que "proteger" não é regido pela preposição "a"?

Compreendo que digamos "Vi-o a si ontem", para reforçar o interlocutor, mas não percebo o sentido na frase que agora aparece em muitos cartazes. É que julgo que a frase "Proteja aos outros" não faz sentido.

Parece-me mais correto dizer: "Proteja-se e proteja os outros" ou talvez "Proteja-se a si e proteja os outros". Julgo que é a mesma em "Encontrei-te a ti e aos outros", pelo que deduzo que "a mim/ti/si e aos outros" seja uma fórmula que não depende do verbo que a antecede.

Obrigado pelo esclarecimento!

Resposta:

Na frase apresentada, a estrutura dos constituintes «a si» e «aos outros» justifica-se por se tratar de um caso de redobro do pronome.

O redobro do pronome é uma construção gramatical que permite reforçar um constituinte expresso sob a forma de um pronome clítico, como forma de o realçar ou focalizar. Por exemplo, na frase (1), o pronome os é reforçado pelo constituinte «a eles»:

(1) «O Rui chamou-os a eles.»

Note-se que o pronome os desempenha a função de complemento direto e o sintagma «a eles» desempenha exatamente a mesma função. Isto significa que a preposição a que introduz o constituinte não é sinal de complemento indireto, pois estamos perante a estrutura típica dos constituintes de redobro do pronome que corresponde a um pronome forte1, com acento tónico, precedido da preposição a.

Note-se que o redobro do pronome acaba por ser útil quando se pretende apresentar constituintes coordenados, porque os pronomes clíticos não têm a capacidade de se coordenarem entre si, como fica claro pela agramaticalidade da frase (2):

(2) «*O Rui chamou-os e as.»

Neste caso, será o redobro do pronome que permitirá a estrutura coordenada:

(3) «O Rui chamou-os a eles e a elas.»

No caso apresentado pelo consulente, aqui transcrito em (4), identificamos uma situação idêntica:

(4) «Proteja-se a si e aos outros.»

O pronome se desempenha a função de complemento direto, se...

Pergunta:

Se o verbo intransitivo fala só por si, porque na frase «A Alda caminhou muito» dizem que é verbo intransitivo, mas tem um complemento – muito?

Agradeço a vossa explicação.

Resposta:

Quando se diz que um verbo é intransitivo, afirma-se que, pela sua natureza, ele não seleciona qualquer tipo de complemento. É o que acontece, por exemplo, na frase (1):

(1) «A árvore caiu.»

Nesta frase, o verbo cair não pede complemento. Por esta razão, classifica-se como sendo um verbo intransitivo.

Já na frase (2), o verbo comprar é transitivo porque pede um complemento direto:

(2) «A Rita compra um livro.»

Os verbos intransitivos não selecionam um complemento porque não precisam de um constituinte que lhes complemente a significação. Eles bastam-se a si próprios para descrever uma determinada situação. O verbo comprar, por seu turno, já necessitará um constituinte que forneça informação sobre o que se comprou, o que significa que se trata de um verbo transitivo.

Não obstante, os verbos intransitivos podem combinar-se com constituintes que forneçam informações sobre variadas circunstâncias da situação que o verbo descreve. Assim, o verbo cair da frase (1) pode combinar-se com um constituinte que informe sobre o momento em que aconteceu a situação (3) ou com outro constituinte que apresente informações sobre o modo como a situação se desenrolou (4):

(3) «A árvore caiu ontem.»

(4) «A árvore caiu violentamente.»

Os constituintes ontem e violentamente não são complementos do verbo cair. São antes modificadores, o que signific...