Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se existe uma diferença marcada entre as palavras escravo/a e escravizado/a e se se deve evitar a utilização da primeira.

Alguns teóricos e autores sobre o assunto (especialmente na academia brasileira) argumentam, atualmente, que se deverá utilizar a expressão escravizado/a em vez de escravo/a para designar alguém privado de liberdade e direitos cívicos e que é propriedade de outrem. Poderiam esclarecer-me se é mesmo assim? Devemos dizer «pessoa escravizada» em vez de escravo/a?

Grata pela vossa atenção.

Resposta:

Existe, com efeito, uma ligeira diferença entre as palavras escravo e escravizado, o que poderá ditar a preferência por uma ou outra forma.

O dicionário Priberam propõe, para a palavra escravo, o seguinte significado: «Indivíduo que foi destituído da sua liberdade e que vive em absoluta sujeição a alguém que o trata como um bem explorável e negociável. = CATIVO». Já a Infopédia refere: «(sobretudo no passado) pessoa privada de liberdade que, por ser legalmente considerada propriedade de outrem, a quem está sujeito, não tem direitos cívicos».

Deste breve levantamento, poderemos concluir que ambas as significações propostas partem da noção de situação resultante de uma ação desenvolvida no sentido de privar alguém da sua liberdade, ou seja, colocam a tónica no resultado da ação.

No que respeita a palavra escravizado, tanto o dicionário Priberam como a Infopédia a descrevem como forma de particípio passado do verbo escravizar, que, por seu turno, significa “reduzir à condição de escravo”. Sendo uma forma participial, escravizado poderá aparecer em formas compostas do verbo (1) ou na qualidade de adjetivo (2):

(1) «Ele foi escravizado à chegada ao Brasil.»

(2) «Ali estavam os homens escravizados.»

É de referir que o termo escravizado denota sobretudo o processo que implica a passagem de uma situação de liberdade para uma situação marcada pela sua ausência, enquanto o termo escravo descreve sobretudo o resultado dessa ação, como vimos acima.

Assim sendo, a opção por um ou outro termo poderá ter implicações de natureza ideológica, sendo que e...

Pergunta:

As locuções «não só...mas também...», «tanto...como...», «seja... seja...» devem-se fazer acompanhar de alguma vírgula?

«O Rui não só era estudioso mas também muito persistente.»

«Conquistou várias vitórias tanto a nível económico como social.»

«O João tanto trabalhava em casa como praticava desporto.»

«É preciso ser persistente seja nos tempos bons seja nos tempos maus.»

Cordialmente.

Resposta:

Antes de mais, é preciso afirmar que os usos de pontuação nos casos assinalados não constituem matéria de consenso entre os gramáticos, pelo que o importante será adotar um critério que seja coerente dentro do mesmo texto.

Assim, as locuções conjuntivas correlativas copulativas «não só… mas também» e «tanto…como», sendo usadas com valor aditivo, não levarão vírgula, uma vez que são equivalentes à conjunção e:

(1) «O Rui não só era estudioso mas também muito persistente.»

(2) «Conquistou várias vitórias tanto a nível económico como social.»

Há, porém, quem proponha o uso de vírgula a separar estes constituintes, sobretudo quando as locuções coordenam orações. Em particular, quando as orações coordenadas são longas, o uso da vírgula poderá também ser aconselhável:

(3) «O Rui não só investigou durante anos(,)1 como também elaborou novas teorias.»

(4) «O João tanto trabalhava em casa(,)1 como praticava desporto.»

Já a construção introduzida por «seja…seja», usada como equivalente à coordenação disjuntiva, normalmente, leva vírgula, embora também esta seja visto como opcional em alguns quadros:

(5) «É preciso ser persistente seja nos tempos bons(,)1 seja nos tempos maus.»

Disponha sempre!

 

1. Colocamos a vírgula entre parênteses como forma de assinalar o seu caráter opcional.

Pergunta:

Na frase "A ação foi admitida pelo juiz, sendo o réu intimado logo após", é possível concluir que o constituinte "sendo o réu intimado logo após" se refere a oração reduzida de gerúndio, no caso, uma oração subordinada adverbial consecutiva em que seu verbo principal "intimar" está flexionado na voz passiva?

Seria uma oração adverbial consecutiva, uma vez que é possível desenvolvê-la da seguinte forma: "A ação foi admitida pelo juiz, de modo que o réu foi intimado logo depois."?

Grato desde já.

Resposta:

As duas frases apresentadas pelo consulente são possíveis. Não cremos, todavia, que sejam equivalentes.

Por um lado, as orações consecutivas expressam uma consequência resultante da situação descrita na oração subordinante. Assim, em (1), o facto de o juiz emitir a ação teve como consequência a intimação do réu:

(1) «A ação foi admitida pelo juiz, de modo que o réu foi intimado logo depois.»

Já em (2), a frase inclui uma oração subordinada adverbial gerundiva («sendo o réu intimado logo após»):

(2) «A ação foi admitida pelo juiz, sendo o réu intimado logo após.»

Nesta frase, a oração gerundiva não expressa uma consequência resultante da situação expressa na subordinante. Com efeito, o seu valor dominante é o de temporalidade / posterioridade.

Recorde-se que a oração gerundiva pode expressar diferentes valores, como sintetiza Lobo: «as orações gerundivas podem expressar valores temporais (de anterioridade, simultaneidade, posterioridade), causais, concessivos, condicionais e de modo»1.

Disponha sempre!

 

1. Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 204

Pergunta:

A propósito da consulta sobre o tema acima, feita por Maria Fernández, em 01/02/2022, não consegui estabelecer diferença, quanto à factualidade, entre as orações «Ainda que tenha imenso trabalho» e «Mesmo que tenha imenso trabalho».

A meu ver, podem ambas ser tomadas como hipotéticas (talvez pelo valor ambíguo citado pela consultora Carla Marques), o que já não ocorre quando se emprega a conjunção embora: «Embora tenha imenso trabalho, João vai passear (irá à praia).»

O uso dessa conjunção confere um caráter de fato real indubitável à mensagem (ele tem, de fato, um imenso trabalho a fazer). Que não o impedirá de se divertir... Esperto, esse João!

Resposta:

Com efeito, como afirma, de forma muito pertinente, o consulente, as frases aqui transcritas em (1) e (2) podem ser ambas interpretadas como tendo um valor hipotético1:

(1) «Ainda que tenha imenso trabalho, o João irá à praia.»

(2) «Mesmo que tenha imenso trabalho, o João irá à praia.»

Habitualmente, a locução conjuncional «mesmo que» é usada apenas com concessivas de valor hipotético ou contrafactual. Já a locução «ainda que» pode combinar-se com os diferentes valores, factual, hipotético ou contrafactual, como se observa pela diferença entra as frases (3) a (5):

(3) «Ainda que tenha tido imenso trabalho, o João foi à praia.»

(4) «Ainda que tenha imenso trabalho, o João irá à praia.»

(5) «Ainda que tivesse tido imenso trabalho, o João teria ido à praia.»

Assim, em (3), a concessiva é factual na medida em que se descreve a situação de «ter trabalho» como tendo tido efetivamente lugar. Já em (5), a situação é descrita como não tendo tido lugar. Em (4), o valor da oração é ambíguo, pois o locutor pode pretender afirmar que efetivamente se verificou o facto de ter existido imenso trabalho, mas, por outro lado, poderia apenas estar a colocar a hipótese de ter existido imenso trabalho. Apenas o contexto poderá esclarecer o valor que se pretende veicular.

Isto significa que a locução «ainda que» pode ser associada a orações que tenham qualquer um dos três valores apontados. Já a conjunção embora usa-se comummente com os valores factual e hipotético.

Disponha sempre!

 

1. Este foi um aspeto que não se aprofundou na resposta à questão mencionada na pergunta, atendendo a que se tratava de uma resposta a uma...

Pergunta:

Estive lendo estes dois artigos em O Globo e na agência de notícias Alma Preta.

Em ambos, foi levantada a questão de o sentido original de algumas palavras não ser mais respeitado. Daí, a dúvida: devemos levar isso a sério realmente, se a maior parte das palavras troca de sentido com o passar dos tempos?

É porque, em um artigo, dizem que foram deturpados os sentidos originais das palavras aniversário e obra-prima. Já no outro, dizem que foi deturpado o sentido original da palavra índio! Mas não é bem comum que palavras passem por mudanças um tanto quanto radicais e extremas, sejam para o bem, sejam para o mal? Vejam o caso da palavra desaforo, por exemplo, na página Origem da Palavra!

Pois muito bem, que palpites vocês próprios têm disso tudo aí de verdade?

Por favor, muitíssimo obrigado e um grande abraço!

P.S.: por falar em aniversário, percebi que vocês fizeram 25 anos de existência enquanto site. E eu também faço anos no dia 29 de janeiro. Bem legal poder fazer anos! Não é verdade isso?

Resposta:

Na verdade, os estudos de história da língua mostram que a evolução das palavras através dos tempos é marcada por uma transformação mais ou menos acentuada dos seus sentidos. Se há palavras que conservam alguns dos traços de significação originais, que possuíam em latim ou noutras línguas, outras sofreram profundas evoluções no que aos seus sentidos diz respeito. Exemplificando este fenómeno, Mário Eduardo Viaro, professor da Universidade de São Paulo, aponta vários casos de evolução dos significados1:

(1) cara é usado no português do Brasil com o significado de «pessoa»

(2) pessoa encontra a sua origem em persona, que significava «máscara»

(3) testa significava originariamente «vaso, telha, caco»

A língua é uma entidade dinâmica que está em constante evolução e transformação e esse é um dos traços que a caracterizam mais profundamente. Basta olhar um pouco para trás no tempo e perceber como ela era atualizada de forma diferente daquilo que acontece atualmente.

Em nome do Ciberdúvidas, agradecemos e retribuímos a nota de parabéns que nos deixa.

Disponha sempre!

 

1. Mário E. Viaro, "História das palavras: etimologia" [disponível aqui].