Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Para além da minha profissão na área tributária, sou escritora e poeta. A língua portuguesa é, para mim, essencial no meu dia a dia e costumo dizer que tive o privilégio de ter bons professores de português ao longo da minha vida estudantil. A minha tendência natural foi seguir Humanidades, desejando formar-me em História, contudo acabei em Direito. Recentemente, para além do prazer, por necessidade, comecei a fazer revisão de textos (técnicos, históricos, infantojuvenis, poéticos/poesia…).

Naturalmente, que no decorrer desta nova atividade, tenho-me deparado com todo o tipo de formação e conhecimento das pessoas que se cruzam comigo. Na sequência da revisão a um prefácio elaborado num livro de poesia por uma professora de português, e em virtude de não ser do meu conhecimento a utilização de, no final de uma frase, reticências seguidas de um ponto de exclamação, questiono se tal é correto aplicar-se.

Segue um exemplo: «[…] A determinada parte do texto, verifica-se uma dor plangente, e a necessidade de uma fuga que se crê premente, porquanto, só os braços da sua mãe, lhe dão o conforto que o mundo roubou sem porquê…! […]»

Grata, desde já, pela atenção que possam dispensar.

Resposta:

A combinação das reticências com o ponto de exclamação está prevista nas gramáticas, mas não pela ordem apresentada.

As reticências são usadas para assinalar uma suspensão na frase. Neste âmbito é possível a sua combinação, por um lado, com a vírgula ou ponto e vírgula, mantendo as reticências um valor melódico, indicando, por exemplo, uma pausa expressiva (muito comum no discurso dramático). A vírgula (ou ponto e vírgula) coloca-se depois das reticências, permitindo a continuação da frase:

(1) «Passai, ó vagas…, mas passai de manso!» (Castro Alves, Obra completa1)

Por outro lado, as reticências podem combinar-se com sinais melódicos (ponto de interrogação e ponto de exclamação, ou até os dois sinais em conjunto). Como explicam Cunha e Cintra, «[n]este caso, as reticências prolongam a duração de certas inflexões interrogativa e exclamativa e acrescentam-lhes certos matizes particulares»2. Neste caso, as reticências colocam-se depois do ponto de interrogação ou ponto de exclamação. Veja-se o exemplo:

(2) «Margarida – (a gritar) Jesus! Virgem Mãe!...

        Custódia – Que foi?... Que foi isto?!...»3 (Bernardo Santareno, O crime da aldeia velha)

Assim sendo, na frase apresentada a ordem dos sinais de pontuação deveria ser invertida:

(3) «A determinada parte do texto, verifica-se uma dor plangente, e a necessidade de uma fuga que se crê premente, porquanto, só os braços da sua mãe, lhe dão o conforto que o mundo roubou sem porquê!…»

Pergunta:

No verso «que não se muda já como soía», do soneto "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" qual é a classe e subclasse da palavra que? É uma conjunção explicativa ou causal? Parece-me explicativa ( não estaremos perante uma relação de coordenação?).

Agradecia que me ajudassem a explicitar esta dúvida.

Resposta:

O verso em causa não permite uma interpretação inequívoca, pelo que aqui poderemos apenas avançar hipóteses de interpretação que levantarão possibilidades de classificação da palavra que, neste contexto do verso final do soneto «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», de Luís de Camões. 

Assim, poderemos, por um lado, considerar que estamos perante uma oração coordenada explicativa, o que levaria a classificar que como uma conjunção coordenativa explicativa:

(1) «outra mudança faz de mor espanto, / que (=pois) não se muda já como soía»

Por outro lado, poderemos considerar que estamos perante um caso de hipérbato, que levou à deslocação da oração relativa «que não se muda já como soía». Nesse caso, a ordem natural seria:

(2) «outra mudança que não se muda já como soía faz de mor espanto»

Neste caso, que seria um pronome relativo, que retoma o antecedente mudança.

Outras hipóteses de interpretação do último verso deste soneto poderiam ainda ser levantadas, pelo que as possibilidades de análise ficam em aberto relativamente a esta questão.

Disponha sempre!

Pergunta:

Numa ficha de 11.º ano vi o seguinte:

«Na frase "O silêncio assume a mesma importância QUE pode ter a música" (linha 27) o constituinte sublinhado é ( o constituinte sublinhado é QUE) (A) uma conjunção. (B) um determinante. (C) um pronome. (D) uma preposição.»

Na correção afirmam que o constituinte «que» é um determinante... Confesso que não entendo.

Gostaria, por obséquio, que me ajudassem a entender. Sei que pode assumir a classe de nome, preposição, pronome, partícula de realce, mas de determinante não consigo ver.

Muito obrigada!

Resposta:

Na frase em questão, o constituinte «que pode ter a música» é uma oração subordinada relativa, pelo que a palavra que é aqui um pronome relativo que assume como antecedente o nome importância

Deste modo, a opção correta será a (C), pronome, pelo que a proposta apresentada será, com certeza, uma gralha.

Disponha sempre!

Pergunta:

O pronome pessoal se pode ter vários valores. Relativamente ao valor reflexo, sabemos que a ação cai sobre quem a praticou, por isso, verbos como vestiu-se, lava-se, deitar-se, etc., são fáceis de identificar. Sei também que a expressão «a si mesmo/próprio» é uma boa maneira de identificação.

A minha questão é sobre o que se passa em outros verbos, por exemplo, cruzar-se, intromete-se ou apercebeu-se.

A frase «Ele intromete-se (a si próprio) na vidas das outras pessoas» não me parece descabida de todo, no entanto, num livro de exercícios de gramática que estou a usar indicam que este se não tem valor reflexo, assim como nos outros verbos que mencionei.

Há alguma outra maneira de identificar mais facilmente o valor do pronome pessoal se?

Resposta:

A classificação da função e dos valores do pronome se é uma questão que envolve complexidade por existirem propostas de análise distintas e nem sempre compatíveis.

Não obstante, poderemos referir, como se explicou nesta resposta, que o pronome se pode ser usado

(i) como pronome reflexo: tendo um valor reflexo ou recíproco, em situações que admitem a paráfrase com a construção «a si próprio» ou «um ao outro», respetivamente;

(ii) em passivas reflexas, com verbo transitivo na 3.ª pessoa;

(iii) como pronome impessoal;

(iv) como pronome inerente (que não tem função na frase).

No entanto, como se adverte na Gramática do Português, «Existem numerosos verbos intransitivos em português que não se deixam analisar facilmente como participando em qualquer destes tipos de frase1 e que ocorrem (na maioria dos casos obrigatoriamente, por vezes opcionalmente) com se. Nesse caso, diz-se que têm conjugação reflexa»1. Este é o caso que corresponde ao pronome inerente.

Entre os verbos que se caracterizam pela dificuldade de análise, encontram-se os de movimento e/ou postura corporal, como ajoelhar-se, curvar-se, dirigir-se, reclinar-se, entre outros3. Ora, o verbo cruzar-se poderá ser incluído neste grupo, o que leva a considerar que tem um pronome inerente.

Acrescenta-se, ainda, na mesma gramática que verbos de natureza psicológ...

Pergunta:

«Pequeno pormenor» não é um pleonasmo?

Resposta:

Com efeito, a expressão é pleonástica. 

O pleonasmo consiste na repetição de uma ideia na mesma frase. Este recurso pode ser usado com intenções estilísticas. Nesse caso, permitirá o realce de uma dada ideia. É o que acontece, por exemplo, no verso d’Os Lusíadas:

(1) «Vi claramente visto, o lume vivo» (Canto V, 18)

No caso da expressão «pequeno pormenor», sem outro contexto que venha alterar o que aqui se afirma, estamos perante um pleonasmo dado que pormenor habitualmente é usado com um sentido que inclui a ideia de pequenez, o que torna redundante o recurso ao adjetivo pequeno.

Disponha sempre!