Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Agradecia o seguinte esclarecimento e respectiva justificação:

«Vai fazer um ano em julho em que nos mudámos para cá»

ou «Vai fazer um ano em julho que nos mudámos para cá»?

Com em ou sem em?

Muito obrigada.

Resposta:

A frase correta será a que se transcreve em (1):

(1) «Vai fazer um ano em julho que nos mudámos para cá.»

Para compreender por que razão não há lugar ao uso da preposição em, teremos de analisar a sintaxe da frase. Se atentarmos na oração «que nos mudámos para cá», veremos que ela complementa a construção temporal «vai fazer um ano», pelo que o grupo preposicional «em julho» poderá ser deslocado na frase:

(1a) «Em julho, vai fazer um ano que nos mudámos para cá.»

(1b) «Vai fazer, em julho, um ano que nos mudámos para cá.»

(1c) «Vai fazer um ano que nos mudámos para cá, em julho.»

O verbo fazer assume, assim, um valor temporal, sendo complementado por uma oração completiva que representa a situação localizada (neste caso, «que nos mudámos para cá»)1. Esta oração é introduzida pela conjunção que, não havendo lugar à combinação com uma preposição. Pelo exposto, a frase (1) é a frase correta.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1631 – 1634.

Pergunta:

A dúvida coloca-se em relação à frase:

«Os conteúdos são os que saíram no último teste.»

O meu entendimento é o seguinte:

«Os conteúdos são os que saíram no último teste» = «os conteúdos são os [conteúdos] que saíram no último teste» = «os conteúdos são aqueles que saíram no...»

Predicativo do Sujeito – os [conteúdos/aqueles] que saíram no último teste – or. subordinada adj. relativa restritiva

Função sintática do pronome relativo – sujeito («os conteúdos saíram no último teste»)

Função sintática da oração subordinada: modificador do nome restritivo (= «os conteúdos 'saídos' no último teste»; «os conteúdos já avaliados»).

Na gramática de Lindley Cintra e Celso Cunha, lê-se:

«As orações subordinadas adjetivas vêm normalmente introduzidas por um PRONOME RELATIVO, e exercem a função de ADJUNTO NOMINAL, de um substantivo ou pronome antecedente» (os destaques são dos autores).

O exemplo dado para a situação em que o pronome é o antecedente é:

«O/que tu vês/é belo;/mais belo o/que suspeitas;/ e o/que ignoras/muito mais belo ainda» (Raul Brandão).

Vejo este exemplo como equivalente apresentado em cima. Bem sei que esta gramática está desatualizada e eu não tenho trabalhado com a nova terminologia gramatical (Dicionário Terminológico – DT), mas as atualizações não ocorreram na classificação básica da subordinação (adverbiais/adjetivas/substantivas), pois não?

A verdade é que o DT apresenta o «o que» como introdutor da oração subordinada substantiva relativa, embora sem dar exemplos. Poderá ser uma gralha?

Como ensino, sobretudo, Latim, sempre que tenho dúvidas, recorro à gramática latina. Este tipo de construção (pronome antecedente da oração relativa) é muito comum em latim:

Is qui aliēnum appĕtit suum amittit (Fedro): «aquele que cobiça o alheio perde o seu» (Is – prono...

Resposta:

Relativamente à interpretação do constituinte «o que» existem posições gramaticais distintas, que se refletem em diferentes respostas disponíveis no CiberdúvidasAnalisaremos aqui duas dessas visões.

Por um lado, há gramáticos que, numa perspetiva que vem da tradição, consideram que «o que» é, sempre que ocorre, um constituinte formado pelo pronome indefinido o, que funciona como antecedente da oração relativa2, introduzida pelo pronome relativo que. Nesta perspetiva, a oração relativa tem uma natureza adjetiva restritiva e desempenha a função sintática de modificador do nome restritivo. A função sintática de predicativo do sujeito é desempenhada pelo constituinte «os que saíram no último teste»:

(1) «Os conteúdos são [os [que saíram no último teste]modificador do nome restritivo]predicativo do sujeito

Por outro lado, encontramos propostas mais recentes que propõem que «o que» seja considerado como uma locução pronominal relativa formada pelo artigo definido o seguido do relativo que. Nesta construção, o artigo definido é invariável e a locução relativa tem como antecedente toda uma oração, como acontece em (2):

(2) «Ele estudou muito, [o que contribuiu para o seu sucesso]modificador apositivo de frase

Neste caso, a oração relativa tem a função de modificador apositivo de frase, como se representa em (2).

A identificação da locução «o que» pode fazer-se por meio de alguns testes, como3:

(i) o não pode ser substituído por um pronome:

      (2a) «*Ele estudou muito, este que contribuiu para o seu sucesso.»

Pergunta:

«Eles ficaram na padaria porque chovia», ou «Eles ficaram na padaria porque choveu»?

Qual das duas orações está de acordo com a gramática normativa?

Talvez ambas?

Resposta:

Ambas as frases estão corretas, embora tenham sentidos diferentes devido ao valor aspetual gramatical associado aos tempos verbais selecionados.

Na frase transcrita em (1), o verbo chover, flexionado no pretérito imperfeito do indicativo, traduz um valor aspetual gramatical imperfetivo, ou seja, descreve-se uma situação que é apresenta no seu decurso, sem considerar os limites inicial ou final:

(1) «Eles ficaram na padaria porque chovia.»

Neste caso, a chuva poderá ter começado antes da ação da oração subordinante («Eles ficaram na padaria») e prolongar-se-á para lá desta situação. Podemos inferir que a chuva é o motivo para eles permanecerem na padaria.

Na frase (2), o verbo chover encontra-se flexionado no pretérito perfeito do indicativo e traduz um valor aspetual gramatical perfetivo, ou seja, de situação concluída:

(2) «Eles ficaram na padaria porque choveu.»

A frase pode, assim, indicar que a chuva terá terminado antes de eles ficarem na padaria, mas alguma consequência da chuva os impediu de sair da padaria.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na sequência «e crianças-rapazes pedindo», a ação é apresentada com valor aspetual imperfetivo ou iterativo?

Grata.

Resposta:

A falta de contexto não nos permite analisar de forma precisa o valor aspetual da oração apresentada.

Recordemos que o valor aspetual resulta muitas vezes da interação entre o verbo, o tempo em que se encontra flexionado e outros elementos presentes na frase ou no próprio contexto.

Assim, relativamente ao segmento frásico apresentado, apenas poderemos dizer que, por ter como núcleo um verbo flexionado no gerúndio, exprime, por defeito, um valor aspetual gramatical imperfetivo porque o gerúndio associa-se à ideia de situação inacabada.

Este valor gramatical poderá combinar-se com um valor habitual em situações como:

(1) «E, habitualmente, víamos os rapazes pedindo.»

Já em frases como (2), o imperfetivo surge combinado com o valor iterativo:

(2) «Durante o mês que lá estive, vi os rapazes pedindo na esquina.»

Para mais informações, sugere-se a consulta dos textos relacionados.

Disponha sempre!

Pergunta:

Encontramos a resposta a esta questão («Trocar ou destrocar?») aqui no Ciberdúvidas, que não deixa qualquer dúvida.

No entanto, há o caso de pedirmos a alguém para trocar moedas pequenas, trocos, por uma nota. Os trocos deixam de o ser.

Neste caso é aceitável, ou melhor, é correto usar a expressão «Destroca-me estas moedas?»?

E já agora (se possível questionar num mesmo post), a repetição daqueles pontos de interrogação acima é aceitável?

Resposta:

O verbo trocar tem o sentido de «desfazer uma troca» (Dicionário Priberam), pelo que o seu uso é correto numa frase como a que se apresenta em (1):

(1) «Tinha trocado os sapatos que recebeu no Natal, mas, como também não gostou destes, foi destrocá-los.»

Só num contexto informal ou familiar é possível usar o verbo destrocar como sinónimo de trocar e, portanto, com o valor de «fazer a troca» (Dicionário Priberam).

Pelo que ficou exposto, no contexto referido pelo consulente, deve usar-se o verbo trocar:

(2) «Troca-me estes trocos por uma nota.»

Para evitar a cacofonia que se cria entre trocar e trocos, é possível recorrer, por exemplo, ao nome moedas.

Quanto à utilização da pontuação, é possível o uso de dois pontos de interrogação seguidos porque eles estão associados a segmentos textuais distintos: um marca o valor interrogativo da pergunta «Destroca-me estas moedas?», sendo seguido de aspas; outro marca o valor interrogativo da frase onde se encaixa o segmento anterior, o que permite interpretar a frase na sua globalidade como uma questão.

Disponha sempre!