Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Podemos utilizar o advérbio talvez com o presente ou com o pretérito imperfeito do conjuntivo, sendo que com este último tempo verbal a ideia de dúvida é mais intensa e pode referir-se a ações presentes, futuras ou passadas.

Neste sentido, está correto dizermos "Não me sinto bem. Talvez deva/devesse ir ao médico agora." (valor de presente), ou "Estou doente. Talvez seja/fosse melhor ficar em casa amanhã" (valor de futuro).

Mas parece-me incorreto dizer "Ainda não sei onde vou de férias. Talvez fosse ao Brasil." ou "Talvez houvesse mais trânsito atualmente". Nestas duas frases, parece-me que apenas podemos utilizar o presente do conjuntivo.

Se assim for, em que circunstâncias temos de usar o presente ou o imperfeito do conjuntivo com o advérbio talvez?

Muito obrigada.

Resposta:

O advérbio talvez antecede o verbo exigindo o uso do modo conjuntivo. Esta construção ativa um valor de possibilidade de ocorrência da situação descrita pelo verbo.

O advérbio talvez pode ocorrer em frases simples com o verbo no conjunto, exprimindo um valor de desejo ou de dúvida1 como em (1):

(1) «Talvez leia este livro.»

A frase simples transcrita em (2) é possível com o verbo no presente do conjuntivo no sentido de expressar uma possibilidade localizada num intervalo de tempo (mais ou menos alargado) coincidente com o momento da enunciação:

(2) «Talvez haja mais trânsito atualmente.»

O recurso ao imperfeito do conjuntivo aponta para a descrição de uma situação ocorrida num tempo passado, como em (3):

(3) «O Rui esperava isto. Talvez a Rita lhe desse um beijo.»

Por essa razão, o recurso ao pretérito imperfeito do conjuntivo na frase (2) poderá ter lugar com um valor de possibilidade relativo a um momento passado:

(4) «Naquele tempo talvez houvesse mais trânsito.»

No caso dos restantes enunciados apresentados, o uso do pretérito perfeito do conjuntivo parece prender-se sobretudo com o facto de se utilizar um verbo auxiliar (dever) ou uma construção equivalente («ser melhor») que veiculam uma ideia de modalidade deôntica. Veja-se que todas as construções apresentadas são possíveis com este verbo / construção:

(5) «Não me sinto bem. Talvez deva/devesse ir ao médico agora.»

(5) «Não me sinto bem. Talvez seja/ fosse melhor ir ao médico agora.»

(6) «Estou doente. Talvez deva/devesse ficar em casa amanhã.»

(7) «Estou doente. Talvez seja/fosse melhor em casa...

Pergunta:

Comecei a escrever uma narrativa, e iniciei o texto com a expressão «Nas proximidades de».

Achei que ficou legal e passava o que queria transmitir, mas usei um corretor de textos online para checar se estava tudo certo, e apareceu que essa expressão era uma expressão prolixa, que era preferível usar a expressão «próximo de».

Isso significa que não posso usar a expressão nas proximidades? Mesmo eu achando que ficaria melhor?

Resposta:

A expressão é possível e não pode ser considerada incorreta.

O substantivo proximidades, quando usado no plural, significa «lugar próximo» (Dicionário Priberam), sendo sinónimo de arredores ou cercanias.

Por esta razão, poderá ser usado numa construção como a que se apresenta em (1):

(1) «A casa fica nas proximidades da aldeia.»

É também possível usá-lo numa construção sem sintagma preposicional:

(2) «A casa fica nas proximidades.»

A diferença entre as frases (1) e (2) reside na explicitação do local que permite localizar a casa. Na frase (2), esta localização terá de ser reconstruída por informações contextuais.

Uma pesquisa no Corpus do português, de Mark Davies, devolve-nos alguns registos de uso da construção em apreço em textos literários, como

(3) «[...] Deucalião foi obrigado a permanecer por algum tempo num boteco das proximidades do ancoradouro.» (Gastão de Holanda, O Burro de Ouro.)

(4) «Nas proximidades do Parque Sólon de Lucena, cercado de palmeiras imperiais e flamboyants, encontrei o Hotel Costa do Sol, como me interessava.»  (José Louzeiro, Devotos do Ódio.)

(5) «Um dia, estando Pancôm...

Pergunta:

Gostaria de esclarecer a seguinte questão: nas frases «Pode dizer-me as horas?» e «Sabes a que horas começa o filme?», estamos perante atos de fala diretos ou indiretos e o porquê?

Nas frases «Tenciono fazer uma viagem a Paris daqui a dois meses» e «Espero que não chegues atrasado» por que razão são classificadas como atos ilocutórios diretivos?

Por último, por que razão a frase «Acho mal que tenhas respondido dessa forma» configura um ato ilocutório expressivo e não assertivo?

Muito obrigada pela atenção dispensada.

Resposta:

As frases apresentadas em (1) e (2) correspondem a atos ilocutórios indiretos na medida em que as frases interrogativas apresentadas procuram levar o interlocutor a realizar uma ação. Por essa razão, a reação esperada não será uma resposta como «Sim, posso», mas sim, em ambos os casos, a indicação das horas:

(1) «Pode dizer-me as horas?»

(2) «Sabes a que horas começa o filme?»

Se o locutor pretendesse realizar um ato ilocutório direto, as frases poderiam ter as formas que se apresentam em (3) e (4):

(3) «Diz-me as horas.»

(4) «Diz-me as horas a que começa o filme.»

Os atos ilocutórios indiretos permitem atenuar a ordem dada, sendo uma manifestação de cortesia linguística.

O mesmo se aplica à frase (5), que corresponde a uma forma indireta de dar a ordem expressa em (6):

(5) «Espero que não chegues atrasado.»

(6) «Chega a horas!»

Nestes casos, o locutor realiza diretamente um ato locutório assertivo, mas a sua intenção não é a de associar um valor de verdade ao que diz. A sua intenção é a de realizar, de forma indireta, um ato ilocutório diretivo.

Na frase (7), o locutor compromete-se com a realização de algo no futuro, pelo que a frase configura um ato ilocutório compromissivo:

(7) «Tenciono fazer uma viagem a Paris daqui a dois meses.»

Por fim, a frase (8) configura um ato ilocutório expressivo porque por meio dela o locutor expressa o seu estado de espírito relativamen...

Pergunta:

«Ele é o viajante que se orienta pelas estrelas.»

Nessa frase há a voz passiva sintética?

A expressão «pelas estrelas» é o agente da passiva em uma voz passiva sintética?

Na passiva sintética é correto usar o sujeito paciente antes do verbo como na frase acima (o viajante que se orienta) e nestas frases?

«Apartamentos se alugam.»

«Um erro se cometeu.»

«Casas se vendem.»

«Uma recompensa se ofereceu.»

Resposta:

Na frase em questão não estamos perante um caso de passiva sintética por várias razões que apresentaremos de seguida.

Para simplificar a análise extraímos da oração relativa «que se orienta pelas estrelas» uma frase simples que é equivalente:

(1) «O viajante orienta-se pelas estrelas.»

Tomando como base as características da passiva sintética (veja-se, por exemplo, esta resposta de Edite Prada), percebemos que a passiva sintética apresenta o verbo no mesmo tempo-modo da frase ativa, residindo a diferença entre esta forma e a ativa no facto de o complemento direto da frase ativa passar a sujeito na passiva sintética, sendo o sujeito da ativa omitido. Para além disso, na passiva sintética, o sujeito coloca-se após o verbo, como acontece na passagem de (2) a (3)

(1) «[O João]sujeito publicou [um belo romance]complemento direto.» (frase ativa)

(2) «Publicou-se [um belo romance]sujeito.» (passiva sintética)

Ora, no caso da frase apresentada, o sujeito não está após o verbo (no caso da oração subordinada relativa isso seria naturalmente impossível) e não corresponde ao complemento direto de uma frase na passiva, pelo que a frase (1) não é equivalente à frase (4):

(4) «Alguém orientou o viajante pelas estrelas.»

Para além do que ficou dito, é importante acrescentar que neste caso -se não é uma partícula apassivante, sendo antes um pronome int...

Pergunta:

No jornal Público de 19/01/2023 escreve-se em título «Amílcar Cabral em 50 objetos, um para cada ano da sua morte».

Pergunto se esta construção sintática está correta, concretamente, se não deve ser «após a» em vez de «da».

Resposta:

A construção está correta, embora o uso da locução «após a» também seja aceitável.

Em português, é possível usar um quantificador ou um substantivo com valor de quantificação seguido do sintagma preposicional «da morte» para indicar o tempo passado desde o momento da morte de alguém:

(1) «Fez 50 anos da sua morte.»

(2) «Celebramos o centenário da sua morte.»

(3) «Cumpre-se o trigésimo aniversário da sua morte.»

Nestas construções, a preposição de assinala o ponto inicial do intervalo temporal que está a ser tido em consideração.

Se considerarmos a construção em apreço, veremos que é possível uma formulação como a que se apresenta em (4):

(4) «Passaram 50 anos da sua morte.»

Nesta linha, é também possível uma construção que estabeleça um processo de quantificação com um valor partitivo como «um para cada ano da sua morte», que é equivalente a «um para celebrar cada ano que passou desde o momento em que morreu.».

Disponha sempre.