Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Estando a lecionar a alunos do 12.º ano o poema "Aniversário" de Álvaro de Campos, decidi elaborar uma ficha de trabalho para treinar o aspeto verbal e surgiram-me algumas dúvidas.

No excerto «O que eu fui de serões de meia-província», poderei considerar que está presente o valor aspetual iterativo, no sentido em que o sujeito lírico quer referir que vivenciou vários serões em família?

Quando afirma «Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças», posso considerar o valor aspetual perfetivo (pela presença dos advérbios «já não»)?

Antecipadamente grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Relativamente ao verso transcrito em (1), julgo que será mais pertinente considerar que estamos perante um estado (aspeto lexical) com um valor aspetual gramatical perfetivo:

(1) «O que fui de serões de meia-província»

Com efeito, o poeta descreve neste verso um “eu” passado que já não corresponde ao “eu” presente, ou seja, ao seu estado atual.

No que respeita ao verso transcrito em (2), a oração subordinante, «já não sabia ter esperanças», veicula, com efeito, um valor aspetual gramatical perfetivo, uma vez que descreve uma situação apresentada como concluída:

(2) «Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.»

Não obstante, a análise aspetual deste verso será eventualmente mais rica se se considerar que em ambas as orações (subordinada e subordinante) se descrevem situações durativas em fases diferentes do seu processo: «vim a ter esperanças» é descrito com valor inceptivo (fase inicial); «já não sabia ter esperanças» é descrito com valor terminativo (fase final). Verifica-se, assim, um contraste entre duas situações que acabam por não poder coocorrer porque uma inicia quando outra já tinha terminado. Para esta interpretação é também importante considerar o valor temporal de anterioridade associado à oração subordinante.

Os valores aspetuais gramaticais associados às fases de descrição de uma situação não integram, contudo, os conteúdos gramaticais do ensino secundário, pelo que a análise proposta não poderá ter lugar em contexto não universitário. Por esta razão, a análise feita com recurso aos conhecimentos gramaticais que os alunos possuem poderá ser um pouco enviesada e incompleta d...

«Transmitir em direto de»
A preposição de com valor locativo

A expressão correntemente usada «transmitir desde» é analisada pela professora Carla Marques, no seu apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2

Pergunta:

Em cada uma das frases seguintes devo colocar uma vírgula ? Onde?

1) «Não lhe desculpou a indelicadeza esta senhora vaidosa e castigadora.»

2) «Veio ao fim do dia o valente cavaleiro.»

Resposta:

A vírgula não é obrigatória em nenhum dos casos apresentados porque, embora o sujeito esteja colocado depois do verbo, esta é uma posição que é também comum para os constituintes com esta função sintática.

Todavia, nos casos em que se intercala um constituinte entre o verbo e o sujeito posposto, é possível usar uma vírgula para ajudar a delimitar este último. Assim, as frases apresentadas poderão levar vírgula (opcional) nos locais assinalados:

(1) «Não lhe desculpou a indelicadeza(,) esta senhora vaidosa e castigadora.»

(2) «Veio ao fim do dia(,) o valente cavaleiro.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Agradecia o seguinte esclarecimento e respectiva justificação:

«Vai fazer um ano em julho em que nos mudámos para cá»

ou «Vai fazer um ano em julho que nos mudámos para cá»?

Com em ou sem em?

Muito obrigada.

Resposta:

A frase correta será a que se transcreve em (1):

(1) «Vai fazer um ano em julho que nos mudámos para cá.»

Para compreender por que razão não há lugar ao uso da preposição em, teremos de analisar a sintaxe da frase. Se atentarmos na oração «que nos mudámos para cá», veremos que ela complementa a construção temporal «vai fazer um ano», pelo que o grupo preposicional «em julho» poderá ser deslocado na frase:

(1a) «Em julho, vai fazer um ano que nos mudámos para cá.»

(1b) «Vai fazer, em julho, um ano que nos mudámos para cá.»

(1c) «Vai fazer um ano que nos mudámos para cá, em julho.»

O verbo fazer assume, assim, um valor temporal, sendo complementado por uma oração completiva que representa a situação localizada (neste caso, «que nos mudámos para cá»)1. Esta oração é introduzida pela conjunção que, não havendo lugar à combinação com uma preposição. Pelo exposto, a frase (1) é a frase correta.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1631 – 1634.

Pergunta:

A dúvida coloca-se em relação à frase:

«Os conteúdos são os que saíram no último teste.»

O meu entendimento é o seguinte:

«Os conteúdos são os que saíram no último teste» = «os conteúdos são os [conteúdos] que saíram no último teste» = «os conteúdos são aqueles que saíram no...»

Predicativo do Sujeito – os [conteúdos/aqueles] que saíram no último teste – or. subordinada adj. relativa restritiva

Função sintática do pronome relativo – sujeito («os conteúdos saíram no último teste»)

Função sintática da oração subordinada: modificador do nome restritivo (= «os conteúdos 'saídos' no último teste»; «os conteúdos já avaliados»).

Na gramática de Lindley Cintra e Celso Cunha, lê-se:

«As orações subordinadas adjetivas vêm normalmente introduzidas por um PRONOME RELATIVO, e exercem a função de ADJUNTO NOMINAL, de um substantivo ou pronome antecedente» (os destaques são dos autores).

O exemplo dado para a situação em que o pronome é o antecedente é:

«O/que tu vês/é belo;/mais belo o/que suspeitas;/ e o/que ignoras/muito mais belo ainda» (Raul Brandão).

Vejo este exemplo como equivalente apresentado em cima. Bem sei que esta gramática está desatualizada e eu não tenho trabalhado com a nova terminologia gramatical (Dicionário Terminológico – DT), mas as atualizações não ocorreram na classificação básica da subordinação (adverbiais/adjetivas/substantivas), pois não?

A verdade é que o DT apresenta o «o que» como introdutor da oração subordinada substantiva relativa, embora sem dar exemplos. Poderá ser uma gralha?

Como ensino, sobretudo, Latim, sempre que tenho dúvidas, recorro à gramática latina. Este tipo de construção (pronome antecedente da oração relativa) é muito comum em latim:

Is qui aliēnum appĕtit suum amittit (Fedro): «aquele que cobiça o alheio perde o seu» (Is – prono...

Resposta:

Relativamente à interpretação do constituinte «o que» existem posições gramaticais distintas, que se refletem em diferentes respostas disponíveis no CiberdúvidasAnalisaremos aqui duas dessas visões.

Por um lado, há gramáticos que, numa perspetiva que vem da tradição, consideram que «o que» é, sempre que ocorre, um constituinte formado pelo pronome indefinido o, que funciona como antecedente da oração relativa2, introduzida pelo pronome relativo que. Nesta perspetiva, a oração relativa tem uma natureza adjetiva restritiva e desempenha a função sintática de modificador do nome restritivo. A função sintática de predicativo do sujeito é desempenhada pelo constituinte «os que saíram no último teste»:

(1) «Os conteúdos são [os [que saíram no último teste]modificador do nome restritivo]predicativo do sujeito

Por outro lado, encontramos propostas mais recentes que propõem que «o que» seja considerado como uma locução pronominal relativa formada pelo artigo definido o seguido do relativo que. Nesta construção, o artigo definido é invariável e a locução relativa tem como antecedente toda uma oração, como acontece em (2):

(2) «Ele estudou muito, [o que contribuiu para o seu sucesso]modificador apositivo de frase

Neste caso, a oração relativa tem a função de modificador apositivo de frase, como se representa em (2).

A identificação da locução «o que» pode fazer-se por meio de alguns testes, como3:

(i) o não pode ser substituído por um pronome:

      (2a) «*Ele estudou muito, este que contribuiu para o seu sucesso.»