Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Ele é o viajante que se orienta pelas estrelas.»

Nessa frase há a voz passiva sintética?

A expressão «pelas estrelas» é o agente da passiva em uma voz passiva sintética?

Na passiva sintética é correto usar o sujeito paciente antes do verbo como na frase acima (o viajante que se orienta) e nestas frases?

«Apartamentos se alugam.»

«Um erro se cometeu.»

«Casas se vendem.»

«Uma recompensa se ofereceu.»

Resposta:

Na frase em questão não estamos perante um caso de passiva sintética por várias razões que apresentaremos de seguida.

Para simplificar a análise extraímos da oração relativa «que se orienta pelas estrelas» uma frase simples que é equivalente:

(1) «O viajante orienta-se pelas estrelas.»

Tomando como base as características da passiva sintética (veja-se, por exemplo, esta resposta de Edite Prada), percebemos que a passiva sintética apresenta o verbo no mesmo tempo-modo da frase ativa, residindo a diferença entre esta forma e a ativa no facto de o complemento direto da frase ativa passar a sujeito na passiva sintética, sendo o sujeito da ativa omitido. Para além disso, na passiva sintética, o sujeito coloca-se após o verbo, como acontece na passagem de (2) a (3)

(1) «[O João]sujeito publicou [um belo romance]complemento direto.» (frase ativa)

(2) «Publicou-se [um belo romance]sujeito.» (passiva sintética)

Ora, no caso da frase apresentada, o sujeito não está após o verbo (no caso da oração subordinada relativa isso seria naturalmente impossível) e não corresponde ao complemento direto de uma frase na passiva, pelo que a frase (1) não é equivalente à frase (4):

(4) «Alguém orientou o viajante pelas estrelas.»

Para além do que ficou dito, é importante acrescentar que neste caso -se não é uma partícula apassivante, sendo antes um pronome int...

Pergunta:

No jornal Público de 19/01/2023 escreve-se em título «Amílcar Cabral em 50 objetos, um para cada ano da sua morte».

Pergunto se esta construção sintática está correta, concretamente, se não deve ser «após a» em vez de «da».

Resposta:

A construção está correta, embora o uso da locução «após a» também seja aceitável.

Em português, é possível usar um quantificador ou um substantivo com valor de quantificação seguido do sintagma preposicional «da morte» para indicar o tempo passado desde o momento da morte de alguém:

(1) «Fez 50 anos da sua morte.»

(2) «Celebramos o centenário da sua morte.»

(3) «Cumpre-se o trigésimo aniversário da sua morte.»

Nestas construções, a preposição de assinala o ponto inicial do intervalo temporal que está a ser tido em consideração.

Se considerarmos a construção em apreço, veremos que é possível uma formulação como a que se apresenta em (4):

(4) «Passaram 50 anos da sua morte.»

Nesta linha, é também possível uma construção que estabeleça um processo de quantificação com um valor partitivo como «um para cada ano da sua morte», que é equivalente a «um para celebrar cada ano que passou desde o momento em que morreu.».

Disponha sempre.

Pergunta:

Estando a lecionar a alunos do 12.º ano o poema "Aniversário" de Álvaro de Campos, decidi elaborar uma ficha de trabalho para treinar o aspeto verbal e surgiram-me algumas dúvidas.

No excerto «O que eu fui de serões de meia-província», poderei considerar que está presente o valor aspetual iterativo, no sentido em que o sujeito lírico quer referir que vivenciou vários serões em família?

Quando afirma «Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças», posso considerar o valor aspetual perfetivo (pela presença dos advérbios «já não»)?

Antecipadamente grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Relativamente ao verso transcrito em (1), julgo que será mais pertinente considerar que estamos perante um estado (aspeto lexical) com um valor aspetual gramatical perfetivo:

(1) «O que fui de serões de meia-província»

Com efeito, o poeta descreve neste verso um “eu” passado que já não corresponde ao “eu” presente, ou seja, ao seu estado atual.

No que respeita ao verso transcrito em (2), a oração subordinante, «já não sabia ter esperanças», veicula, com efeito, um valor aspetual gramatical perfetivo, uma vez que descreve uma situação apresentada como concluída:

(2) «Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.»

Não obstante, a análise aspetual deste verso será eventualmente mais rica se se considerar que em ambas as orações (subordinada e subordinante) se descrevem situações durativas em fases diferentes do seu processo: «vim a ter esperanças» é descrito com valor inceptivo (fase inicial); «já não sabia ter esperanças» é descrito com valor terminativo (fase final). Verifica-se, assim, um contraste entre duas situações que acabam por não poder coocorrer porque uma inicia quando outra já tinha terminado. Para esta interpretação é também importante considerar o valor temporal de anterioridade associado à oração subordinante.

Os valores aspetuais gramaticais associados às fases de descrição de uma situação não integram, contudo, os conteúdos gramaticais do ensino secundário, pelo que a análise proposta não poderá ter lugar em contexto não universitário. Por esta razão, a análise feita com recurso aos conhecimentos gramaticais que os alunos possuem poderá ser um pouco enviesada e incompleta d...

«Transmitir em direto de»
A preposição de com valor locativo

A expressão correntemente usada «transmitir desde» é analisada pela professora Carla Marques, no seu apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2

Pergunta:

Em cada uma das frases seguintes devo colocar uma vírgula ? Onde?

1) «Não lhe desculpou a indelicadeza esta senhora vaidosa e castigadora.»

2) «Veio ao fim do dia o valente cavaleiro.»

Resposta:

A vírgula não é obrigatória em nenhum dos casos apresentados porque, embora o sujeito esteja colocado depois do verbo, esta é uma posição que é também comum para os constituintes com esta função sintática.

Todavia, nos casos em que se intercala um constituinte entre o verbo e o sujeito posposto, é possível usar uma vírgula para ajudar a delimitar este último. Assim, as frases apresentadas poderão levar vírgula (opcional) nos locais assinalados:

(1) «Não lhe desculpou a indelicadeza(,) esta senhora vaidosa e castigadora.»

(2) «Veio ao fim do dia(,) o valente cavaleiro.»

Disponha sempre!