Ana Martins - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Ana Martins
Ana Martins
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e licenciada em Línguas Modernas – Estudos Anglo-Americanos, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mestra e doutora em Linguística Portuguesa, desenvolveu projeto de pós-doutoramento em aquisição de L2 dedicado ao estudo de processos de retextualização para fins de produção de materiais de ensino em PL2 – tais como  A Textualização da Viagem: Relato vs. Enunciação, Uma Abordagem Enunciativa (2010), Gramática Aplicada - Língua Portuguesa – 3.º Ciclo do Ensino Básico (2011) e de versões adaptadas de clássicos da literatura portuguesa para aprendentes de Português-Língua Estrangeira.Também é autora de adaptações de obras literárias portuguesas para estrangeiros: Amor de Perdição, PeregrinaçãoA Cidade e as Serras. É ainda autora da coleção Contos com Nível, um conjunto de volumes de contos originais, cada um destinado a um nível de proficiência. Consultora do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa e responsável da Ciberescola da Língua Portuguesa

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No texto «Do corredor, onde ela enfiava o vestido aos puxões, como se lutasse com as fúrias desencadeadas, a Dona Alzira gritou-me alegremente: "Não sejas calisto, homem de Deus! Até mete azar! Há agora pressa, qual o quê, está um tempo lindo, e com os dias compridos o que falta é tempo para a gente gozar! E depois, que importância tem isso, se eu for um bocado mais tarde?... É só carregar no pedal, e pronto!" E a velha senhora ria, ria nervosamente, perdida dentro do corpete do vestido apertado», de José Rodrigues Miguéis, tomando como referente «Dona Alzira», considera-se que o «eu», expresso dentro do discurso directo da personagem, é um termo anafórico (anáfora), ou, tendo em conta que é um discurso directo e que não se pode substituir por «Dona Alzira», considera-se apenas como deíctico pessoal?

Obrigada pela ajuda!

Resposta:

1. Há duas tipologias de deixis que importa considerar, em função dos parâmetros:

(i) componente do contexto situacional, que é activada pelo uso do deíctico (deixis pessoal, espacial, temporal ou modal); 

(ii) tipo de contexto compartilhado: contexto situacional ou físico (deixis indicial); contexto discursivo (deixis textual, com a função de anáfora ou catáfora).
O deíctico com função anafórica aponta para um segmento discursivo que lhe é precedente:

«O país está endividado, e isso faz subir o desemprego.» 

2. Eu é sempre deíctico pessoal; eu é sempre deíctico indicial. O mesmo é válido para o deíctico tu.

Cf. O lugar da deixis na descrição da língua + A deixis e a referência deíctica (I) + A deixis e a referência deíctica (II)

Pergunta:

Como utilizar corretamente os verbos ia/iria nas frases?

Qual a opção correta?

«Se Jorge Amado estivesse vivo, ele iria adorar», ou «Se Jorge Amado estivesse vivo, ele ia adorar»?

Obrigada.

Resposta:

Na frase «Se Jorge Amado estivesse vivo, ele ia/iria adorar», a oração sublinhada é uma oração condicional contrafactual: o verbo está no pretérito mais-que-perfeito do conjuntivo, e a negação do seu conteúdo proposicional verifica-se no mundo real («Se Jorge Amado estivesse vivo, mas não está...»). Na oração principal (ou condicionada) que lhe corresponde, o imperfeito e o condicional são funcionalmente equivalentes.

Pergunta:

Considere o seguinte texto: «Eu (a rainha das abelhas) quero voar com os bem-te-vis, experimentar o néctar das flores de laranjeira, ouvir o som das águas roçando os seixos dos rios, sentir o vento no focinho.»

É correto dizer que abelha tem focinho?

Muito obrigado!

Resposta:

Focinho: parte anterior e saliente da cabeça de um animal, mais ou menos prolongada, que compreende o nariz, a boca e os queixos.

A abelha, sendo um animal, não tem focinho. O termo focinho nunca se aplica a abelha. O homem, sendo animal, também não tem focinho, mas o termo pode-se-lhe aplicar — em regist{#|r}o popular (português europeu):

«Ia com tanta pressa, que deu com o focinho no poste.»

No regist{#|r}o literário, tudo pode acontecer, inclusivamente a atribuição de focinho a entidades inanimadas:

«Acordei bem cedo e reparei que esta nuvem branca esfregava seu focinho na vidraça» (Doc Comparato, A Guerra das Imaginações).

Pergunta:

Qual é a maneira correcta?

«Ele tinha uma grande dor de cabeça», ou «ele teve uma dor de cabeça»?

Se são dois tempos do verbo ter, quando se deve usar um ou o outro?

Ambos significam uma acção que já faz parte do passado.

Obrigada.

Resposta:

1. Ambas as frases estão correctas.

2. As formas dos tempos verbais (amo, amei, amava...) não veiculam apenas informação temporal, ou seja, informação quanto à localização da acção na linha temporal que tem o momento do a{#c|}to de fala como ponto de referência. Os tempos verbais veiculam também informação:

— aspectual (acção acabada/acção não acabada):

«O Zé tinha uma grande dor de cabeça e queixava-se imenso.»

«O Zé teve uma grande dor de cabeça e morreu.»

— modal (expressão de desejo):

«Tomava agora um cafezinho...»

— sobre planos discursivo (1.º/2.º plano):

«O Zé estava ao balcão. Bebia calmamente a sua cerveja; os seus olhos estavam baços e revelavam cansaço. Mas, de repente, viu-a» («estava», «bebia», «estavam» e «revelavam» transportam informação de 2.º plano; «viu» projecta a acção para primeiro plano).

Sobre planos discursivos, ler:

Hopper, P. 1982 – Tense-Aspect: Between Semantics and Pragmatics

Reinhart, T. 1990 – "Principles of Gestalt perception in the temporal organization of narrative texts", Linguistics, vol. 22, l984, 779-809.

Pergunta:

Pelo que tenho consultado, a deixis pessoal inclui (entre outros) os pronomes pessoais de primeira e segunda pessoas, pois são marcas que identificam o sujeito da enunciação e o(s) interlocutor(es), deixando de fora a terceira pessoa, visto ser considerada uma "não-pessoa". No entanto, em alguns casos ficam-me algumas (ou muitas) dúvidas.

Por exemplo, imaginemos uma conversa em que participam três pessoas e uma delas diz: «— Amanhã, eu, tu e ela vamos ao cinema.» Não será o pronome ela também um deíctico pessoal (tal como eu e tu), já que faz parte de um sujeito composto (equivalente a nós) e, para além disso, aponta para alguém que também participa no acto de fala?

Ou ainda outra situação hipotética: perante a questão «— Quem é a Joana?», o interlocutor responde «— É ela» (acompanhando a resposta com um movimento de cabeça ou apontando...). Nesta situação, o pronome pessoal ela não será um deíctico com um valor demonstrativo?

Agradeço a atenção.

Resposta:

1. Os deícticos não identificam esta ou aquela entidade; os deícticos apontam para e instituem pessoas, tempos, espaços, modos de realização da ação e objetos como estando inscritos na situação de enunciação. A acepção de deixis, aliás, é próxima da do seu sentido etimológico. Os signos deícticos são signos sui-referenciais: só adquirem significação mediante a referência à própria enunciação. Eu significa «a pessoa que diz eu». Os signos eutu instauram o estatuto de participantes no ato verbal, instituem-se a si próprios como centro das coordenadas espaciais-temporais-modais — aqui, agora, assim, respetivamente — que são a base do funcionamento do sistema deíctico.

2. Todo o deíctico é funcionalmente um demonstrativo. Demonstrativo é a tradução latina de deixis (Herculano de Carvalho foi o introdutor dos termos deixis e deíctico na terminologia gramatical portuguesa). Isto não quer dizer que a deixis corresponda apenas ao elenco dos pronomes e determinantes demonstrativos. Refiro-me apenas à evolução e à transferência de termos nas gramáticas da Antiguidade.

3. Foram Benveniste1 e, depois, Lyons2 que descreveram a terceira pessoa como não pessoa. É importante notar: ele(a) é pessoa gramatical, pois é-lhe atribuída flexão verbal, mas é uma não pessoa do ponto de vista da referência deíctica. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que ele(a) não assume qualquer papel discursivo no ato de comunicação:

«— Quem é a Joana? 

— É ela.»