O livro Pessoa. Uma biografia (Quetzal, 2022), de Richard Zenith, é um trabalho notável e relevante sobre a vida do poeta português Fernando Pessoa que pretende mostrar ao leitor o homem por detrás da multiplicidade de vozes e da complexa obra literária. Originalmente escrita e publicada em inglês, com o título Pessoa. A Biography (Liveright – W. W. Norton Company, 2021), trata-se de uma obra agora traduzida para português por Salvato Teles de Menezes e Vasco Teles de Menezes.
Mantendo um estilo narrativo sobre a vida e a época de Pessoa, Richard Zenith estruturou o seu livro em quatro longas partes, que se estendem por cerca de setenta e cinco capítulos. Na primeira parte, designada "O estrangeiro nato", o autor debruça-se sobre a infância e juventude do poeta português, descrevendo sobretudo os tempos em que este viveu na cidade sul-africana de Durban, aproveitando para apresentar os seus primeiros interesses literários, as matérias que estudou enquanto aluno do Liceu de Durban e as figuras familiares (como é o caso do tio-avô Cunha, que lhe deu a conhecer os bastidores da imprensa) que exerceram nele uma forte influência. Mas Zenith não se fica só pela narração dos acontecimentos da vida do escritor português, aproveita ainda para relatar os eventos históricos que marcaram os atribulados fim do século XIX e início do século XX em Portugal e no mundo, como se fosse impossível dar a conhecer o poeta sem que se dê também a conhecer o seu tempo.
Na segunda parte, intitulada "O poeta como transformador", Zenith começa por relatar o regresso definitivo de Fernando Pessoa a Lisboa, cidade com que manteve uma estranha simbiose, a sua breve passagem pelo Curso Superior de Letras e os seus primeiros grandes planos literários. Para além disto, é-nos apresentado, através de um pormenor único, a criação de Alexander Search, um dos primeiros heterónimos de Pessoa, «um estudioso, bem como um colaborador cativo, […] o sujeito experimental que representou a própria loucura ou quase-loucura» (pág. 292). Nos últimos capítulos desta segunda parte, Zenith dedica-se a contar as aventuras do jovem poeta pelos cafés da capital portuguesa, a sua colaboração em publicações como A Águia e o início da importante amizade com Mário de Sá-Carneiro. Em particular, é no capítulo 30 que o biógrafo revela que o annus mirabilis do famoso poeta português foi 1914, pois, embora marcado pela tragédia do início da Primeira Guerra Mundial, foi neste ano em que Pessoa criou Alberto Caeiro (um dos seus mais famosos heterónimos) e escreve os poemas que compõem O Guardador de Rebanhos.
Na terceira parte, chamada "Sonhador e civilizador", Zenith centra-se na vida do poeta entre 1914 e 1925, relatando de maneira rigorosa a génese dos heterónimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, e a total dedicação de Pessoa aos dois números da revista Orpheu (publicação que inaugura o modernismo português). Zenith faz notar que, não sendo o termo heterónimo criação original, é a Pessoa que se deve a concetualização integral de autores distintos do seu criador literário. Antecipando «a sua vida literária depois da morte, Pessoa estava já a providenciar aos futuros críticos psicopatologias potencialmente úteis para explicar o seu génio particular» (pág. 688). Por outro lado, ficamos ainda a conhecer o breve relacionamento amoroso com a jovem Ofélia Queiroz.
Por fim, na quarta parte, denominada "Espiritualista e humanista", são desvendados os pensamentos e opiniões de Pessoa acerca dos acontecimentos políticos das décadas de 20 e 30, nomeadamente, o surgimento do Estado Novo, ficando assinalado que «Pessoa rejeitava o fascismo e outros nacionalismos radicais pela mesma razão que rejeitava ideologias que, como o comunismo, assentavam na luta de classes: reduziam o indivíduo a um elemento intercambiável ao serviço de uma qualquer realidade superior e coletiva como a nação ou o proletariado» (pág. 774). Contudo, o foco principal desta parte está no interesse que Pessoa desenvolveu por crenças como o Quinto Império, que mais tarde recupera para escrever Mensagem, e no amadurecimento da poesia de Álvaro de Campos, evidenciada em poemas como A Tabacaria. Além disso, é-nos contada a origem de Bernardo Soares e o que está por detrás de alguns excertos do Livro do Desassossego.
Pessoa. Uma biografia é um trabalho extraordinário que merece uma leitura aprofundada que desencadeie uma reflexão visceral sobre o que está no íntimo de uma das mais fascinantes obras literárias da língua portuguesa, pois Fernando Pessoa, a par com Luís de Camões, não se limitou apenas a deixar uma importante obra, mas marcou também a língua e a maneira de a usar pela forma como lidava com as palavras. Como refere Richard Zenith: «Quando, ao acordar, recordamos um sonho noturno, são as nossas palavras que lhe dão substância e uma espécie de realidade, uma realidade linguística. Na maneira de pensar de Pessoa, as palavras eram objetivas, objetivadoras; dotavam a matéria onírica da vida com contornos precisos».
Cf. Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa e o modernismo em Português + Banda desenhada francesa recria últimos dias de vida de Fernando Pessoa
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