O estudo sobre os provérbios medievais de José Mattoso (1933 – 2023) confirma, uma vez mais, o carácter estudioso, académico e depurado do autor, com que sempre pautou a sua escrita.
Após uma pesquisa exaustiva sobre matéria tão vasta, seleccionou Teófilo Braga (1843 – 1924) que se referiam à família, à sexualidade, à mulher, à loucura e ao demónio». (p.7)
Sendo o provérbio o transmissor da sabedoria popular, uma filosofia de vida baseada no «saber de experiências feito», como diria Camões, é natural que se tenha restringido a esta selecção pois que «Antes do século XV, o uso dos provérbios convencionais parece quase exclusivo do clero ou dos meios que ele influenciava directamente». (p.9)
O Essencial Sobre os Provérbios Medievais Portugueses, editado em 1987 pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, desdobra-se em cinco partes ou capítulos:
1 – Provérbios burlescos; 2 – As normas estabelecidas; 3 – Ordem e subversão; 4 – A família, a mulher, o amor; 5 – Natureza e sobrenatureza.
No que respeita aos provérbios burlescos, a comicidade resulta da comparação com animais, maioritariamente domésticos. «Na maioria dos casos o animal designa o homem ou a mulher: o galo e o lobo referem-se a ele; a galinha, a raposa; a loba, a cabra, a sardinha apontam-na a ela.» (p.11).
Efectivamente, o comportamento do animal traduz a essência do ser humano. O homem, o galo de capoeira, o lobo e a sua fama de predador, a mulher, galinha submissa, mas raposa astuta, a saber «levar a água ao seu moinho».
Em relação ao capítulo 2 – As normas estabelecidas, o autor refere os provérbios «que defendem a norma estabelecida», sendo que a maior parte diz respeito às mulheres que ocupam um lugar inferior dentro da hierarquia sexual.
Cita, adiante, alguns adágios que «põem em causa a própria lei ou a ordem convencional estabelecida (…)». «Mais vale salto de mata que rogo de homens-bons» e «Homens-bons, pichéis de vinho» (p.21).
Aponta, ainda, muitos e diferentes ditos que vão contra a ordem convencional ou as normas, seja em relação à hierarquia familiar, seja aos escrúpulos, «Quem não mente, não vem de boa gente», seja em relação aos dogmas do clero, ridicularizando o medo do diabo. E naturalmente surgem as excepções à regra: «Em casa de ferreiro, espeto de pau».
Passando ao tema 3 – Ordem e subversão, a sua pesquisa revela que a cultura popular «atribui um valor muito relativo às leis e às convenções» (p.30), não as dissociando da prática e, tantas vezes, da subversão ou da censura, como «O rir e o folgar não é pecado» ou, até da ameaça contra o abuso da autoridade «Cães que lobos matam, lobos os matam».
No entanto, encontra inúmeros provérbios que defendem a ordem estabelecida, sendo que os mais numerosos se referem à mulher e ao seu estatuto de ser inferior e submisso «A mulher que não vela não faz boa tela».
A mulher, a sogra e o amor
4 – A família, a mulher, o amor. Neste tema, a subversão é preterida, ressaltando a preferência pela casa, a família, como centro de segurança. Apesar de, em muitos provérbios se verificar a dependência da mulher, outros há em que se lhe atribui «um papel de verdadeira interlocutora» (p.35).
No que diz respeito à família, não poderia faltar a relação entre a mulher e a sogra: «Quem gabará a noiva? A perra da sogra». A casa, como espaço de aconchego, de trincheira, surge como lugar onde o homem não pode viver sem a mulher e que é o espaço por eleição “tranquilo e favorável, enquanto que o de fora é perturbador e agressivo. «Se estiveres em tua tenda não te acharão na contenda» (p.40).
Acerca da mulher,José Mattoso menciona a quantidade encontrada. Alguns dizem respeito à taramelice, ao gosto pelos mexericos: «Foi Maria à fonte e trouxe que contar todo o ano», outros mencionam as qualidades que nela são mais desejadas: «A mulher honrada sempre deve ser calada», o recato, o trabalho, a castidade.
Acerca do amor, há os que acautelam os seus enganos e nefastas consequências, mas também os que o exaltam «Amores e doces, com pão são bons».
No último tópico, 5 – Natureza e sobrenatureza, encontram-se os “refrães” que denotam a incapacidade do homem face às leis da Natureza: «Quem torto nasce tarde se endireita», porém outros que denotam «a liberdade do homem, mas até a sua eficiência» (p.50). A sobrenatureza surge como a predestinação do homem, como ordem superior «Quando Deus quer, santos não rogam».
O autor conclui depreendendo da sua análise que «a cultura popular (…) exprime-se em práticas muito diferentes da cultura erudita e clerical» (p.59). Reconhece, todavia, o deslumbramento que os provérbios exercem, até hoje, sobre o ser humano, funcionando como «antídotos contra os excessos de uma cultura discursiva e racional”» (p.60).
[Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945]
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