De acordo com a ilustre sábia D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, «a pronúncia palaciana de 1200 a 1350 era mais clara, pausada e enfática do que a de hoje, o que combinaria perfeitamente com o conteúdo e carácter grave e mesurado das canções de amor». É claro que esta afirmação se pode aplicar também às cantigas de amigo, que afinal também eram palacianas. Explicava a insigne filóloga e linguista que «no futuro e no condicional, o acento recaía ora no infinitivo, ora no auxiliar, conforme as exigências do ritmo e suas pausas». D. Carolina escreve ainda, na sua magistral edição do Cancioneiro da Ajuda, «que já no reinado de D. Dinis, que residia amiúde na capital, muitas formas e pronúncias galego-portuguesas seriam pouco usadas entre os cortesãos e desconsideradas pela geração nova como arcaísmos e galeguismos. Tal evolução ajuda a explicar a rápida decadência da arte depois da morte do rei-trovador e o longo interregno lírico, até ao advento de um novo gosto e estilo no século XV».1
1 N. E.: No sentido de exemplificar o que diz Carolina Michaëlis, vale a pena reter, pelo menos, três aspectos da pronúncia do galego e do português medievais:
1. É provável que as vogais átonas fossem mais abertas do que no português europeu moderno:
a) o /e/ átono teria a pronúncia [e], isto é, a do "e fechado", como em cedo, pelo que querer soaria "quêrêr" e não "q'rêr";
b) /o/ átono teria a pronúncia [o], ou seja, a do "o fechado", como em sopa, o que significa que poder soaria "pôder" (note-se, porém, que a pronúncia de /o/ átono final é controversa);
c) sobre o /a/ átono, não se pode dar a certeza de soar como "a fechado" (pronúncia do português europeu moderno; símbolo fonético [ɐ]) ou como "a aberto" (pronúncia do galego e, quase sempre, a do português brasileiro; símbolo fonético [a]).
2. Havia um sistema de quatro sibilantes:
a) duas consoantes apicoalveolares, uma surda (símbolo fonético [ʂ]) e outra sonora (símbolo fonético [ʐ]), que eram geralmente representadas por <s> (início de palavra)/<ss> (no meio da palavra) e <s> (no meio da palavra), respectivamente, e que soavam como as articulações surda e sonora do chamado "s beirão": sei = [ʂ]ei; passar = pa[ʂ]ar; casa = ca[ʐ]a;
b) e duas consoantes africadas — uma surda, [ts], e outra sonora, [dz] — que passaram depois a predorsodentais (os actuais sons [s] e [z] do diale{#c|}to de Lisboa e da maior parte do litoral e do Sul de Portugal), representadas normalmente, no caso da surda, por <c> (antes de <e> e <i>) e <ç> e, no caso da sonora, por <z>: certo = [ts]erto, [s]erto; paço = pa[ts]o, pa[s]o; prazer = pra[dz]er, pra[z]er.
3. O grafema <ch> pronuncia-se "tch" (símbolo fonético [tʃ]) e o <x> como "ch" (símbolo fonético [ʃ]), como ainda hoje se ouve em galego e entre muitos falantes dos dialectos setentrionais do português europeu: chamar = [tʃ]amar; baixo = bai[ʃ]o (sobre esta diferença, consulte-se a resposta A diferença entre uma consoante fricativa e uma africada).