«A capacidade de atuar como sujeito agente e sujeito receptor dos padrões de língua oral e escrita revela-se, pois, indispensável para uma completa formação educacional.»
Um dos temas que, neste limiar de século, habitam com maior presença as políticas públicas no Brasil diz respeito à inclusão social e à ampliação das oportunidades isonômicas em todas as esferas da vida em sociedade. O processo histórico de constituição e caracterização da sociedade brasileira seguiu as sendas da desigualdade e da discriminação, seja no tocante à distribuição da riqueza e à ocupação da terra, seja no acesso às conquistas tecnológicas que conferem ao cidadão bem-estar, segurança e educação, fatores essenciais para o pleno exercício da cidadania. Não são poucos, pois, os planos de governo que, na história recente do Brasil, cuidaram da inclusão social como um escopo que se deve perquirir prioritariamente, não obstante os resultados até hoje não se possam atestar como sequer razoáveis ou aceitáveis, visto que não lograram conferir a grande parcela da sociedade os recursos indispensáveis para uma vida digna e produtiva.
A inclusão social define-se como um conjunto de políticas públicas que visem a assegurar a todos os cidadãos boa qualidade de vida, participação política e oportunidade de acesso aos produtos advindos do avanço tecnológico. Em nível pragmático, as estratégias públicas implementadas para que se atinja um grau satisfatório de inclusão social implicam o combate à pobreza e à discriminação, essa última concretizada no isolamento de indivíduos ou grupos a ponto de serem impedidos de beneficiar-se das ações políticas e econômicas e de exercer direitos subjetivos fundamentais.
No conjunto das ações aprovadas pela Cimeira Mundial para o Desenvolvimento Social, organizada pela ONU em 1995 em Copenhagen, a sociedade inclusiva foi definida como «uma sociedade para todos», em que cada indivíduo, no exercício dos direitos fundamentais e sob o ônus de suas responsabilidades, exerce um papel social efetivo. Nesse sentido, a sociedade inclusiva constrói-se sem o jugo da discriminação de raça, etnia, sexo, classe social, idade, religião e origem geográfica, além de implicar a submissão do poder econômico e militar à autoridade civil. Uma sociedade inclusiva caracteriza-se, perante novos desafios, pela concessão de voz participativa e pela atribuição de responsabilidades a cada um de seus partícipes.
Na verdade, ao zelar pela integração de indivíduos excluídos, a sociedade não lhe concede um benefício ou uma benesse privada, visto que a própria sociedade usufrui da capacidade de cada um num esforço conjunto e coeso para promover a inovação e o desenvolvimento. Assim, o objetivo da integração social é o de criar uma sociedade para todos em que cada um se beneficie do bem comum construído pela ação conjunta do corpus societário. Dessa noção surge o conceito de coesão social, que se refere à existência de uma sociedade harmônica, em que reside o desejo, em cada indivíduo, de cooperar em todos os níveis para atingir objetivos comuns.
Um entendimento enviesado da inclusão social define-a como um processo que leva à eliminação de diferenças, na crença de que, dessa forma, todos serão iguais em direitos e deveres. Na realidade, a coesão social compatibiliza as diferenças em vez de eliminá-las, ou seja, as diferenças devem ser estimuladas em vez de ignoradas, pois a riqueza cultural do homem brota de sua diversidade e pluralidade de interesses. Não se pode pensar em uma sociedade criativa e promovedora cujos indivíduos estejam enclausurados em uma formação pseudoigualitária, que, a rigor, revela-se desestimulante e castradora. Incluir, pois, implica, antes de tudo, respeitar a índole do cidadão.
As pessoas que sofrem exclusão social experimentam uma série de barreiras que se elevam no cotidiano da vida, via de regra vinculadas às vicissitudes decorrentes da pobreza e da marginalização, fato que simplifica demasiadamente o conjunto de fatores que se unem nesse processo de segregação. Pouco se diz sobre a relação entre exclusão social e incapacidade de expressar-se linguisticamente, não obstante os estudos sociológicos que vinculam dramaticamente os dois fatos na construção de uma sociedade desigual (cf. Levitas et alii, 2007). O direito de falar e ser considerado, a capacidade de ouvir e entender constituem pressupostos da plenitude da vida social e do exercício da cidadania. Na verdade, os que sentem dificuldade para expressar-se decerto sentirão igual dificuldade para fazer-se presentes nos círculos de debate e decisão acerca dos rumos que a sociedade busca trilhar. A atenção a esses fundamentos tão essenciais quanto elementares deve começar nas classes de primeiras letras e, numa perspectiva mais ampla, implica a ação conjunta da família e da escola.
A criança que se expressa, por exemplo, com deficiência de vocabulário ou má articulação fonética pode tornar-se um adulto inepto para participar das relações sociais em sua integralidade, de que decorre limitar-se a seu círculo primário de interação social, sem perspectiva de progresso e enriquecimento cultural. Deve-se considerar, ainda, que praticamente todo o processo educacional do indivíduo se faz pela linguagem, seja em língua oral ou escrita. A capacidade de atuar como sujeito agente e sujeito receptor dos padrões de língua oral e escrita revela-se, pois, indispensável para uma completa formação educacional. Com efeito, leitores incipientes têm maiores chances de insucesso na vida profissional em face da incapacidade de enriquecer o conhecimento das coisas e do mundo pela autoinstrução.
Estudos recentes na área da Psicologia (cf. Ginsborg, 2006; Bernstain, 1973; Tough, 2000; Tizard and Hughes, 1984) defendem a tese de que crianças e adolescentes provenientes das classes sociais menos favorecidas são mais propícias a experimentar dificuldades linguísticas do que as provenientes das classes mais ricas. Segundo esse entendimento, o fato de as crianças de diferentes classes sociais trazerem experiências distintas no tocante à competência linguística interfere decisivamente nos primeiros anos da vida escolar. Cuida-se aqui de estabelecer uma suposta relação entre o domínio da norma linguística padrão que habita os atos de comunicação das classes média e alta como desempenho escolar dos educandos, no sentido de que aqueles que não se inscrevem nessa norma não têm base linguística suficiente para interagir no ambiente escolar e, por consequência, sentem extremada dificuldade para participar do processo de aprendizagem mediante comunicação com os professores e os colegas de classe.
Artigo publicado no mural Língua e Tradição em 26 de outubro de 2024 no Facebook.