«Palavras escritas, trabalhadas, tratadas, são cor de pedra das estátuas. Palavras cantadas, de cristal. Palavras que nunca chegámos a dizer, oiro puro.»
Maria Ondina Braga, A Revolta das Palavras, 1980, p. 82.
Os anjos não morrem e tu morreste duas vezes, ed. Kalandraka, Faktoria, 2023*, é o mais recente livro de Marta Duque Vaz, autora também de Aclive (poesia), A Senhora Clap e o mundo na palma das mãos (infanto-juvenil, adaptado com grande sucesso para uma peça no Rio de Janeiro), O Lado Esquerdo (monólogo para teatro) e História Interminável (2021).
Este é um conjunto de doze contos, todos eles protagonizados por mulheres de várias idades, em diversas estações das suas vidas, maioritariamente em situações do quotidiano, de onde se desprendem diversas problemáticas sociais da máxima relevância. Surge-nos, por conseguinte, entre outros pontos, a violência doméstica, a subalternidade da mulher no contexto familiar, a luta pela emancipação e a complexidade dos laços de família (em “Terra, sangue e flores de laranjeira”), a precariedade laboral aliada ao baixo salário (patente, por exemplo no conto “Laura e os dias”), a solidão e a inconsciente ofensiva infantilização na terceira idade (em “O Anel sem Palavras”), pois “Ser velho não é ser criança outra vez. Não é possível. Consistiria num despojar violento de tudo quanto vivemos, das experiências de vida que assimilamos e transformamos em sabedoria.” (p. 71).
Paralelamente a estas questões, emergem outras de ampla dimensão humana, como é o caso da dúvida, do questionamento perante feridas instauradas pela morte, como sucede no conto que confere título à obra, Os anjos não morrem e tu morreste duas vezes, no qual a jovem protagonista, esmagada pela perda, espera uma mensagem, um sinal que reponha a ordem num mundo onde o sentido se perdeu, escoado por entre os dedos da incerteza.
Além disso, também o amor à arte e as múltiplas formas de o viver se encontram espelhados em “Viciada em inícios”, protagonizado pela fotógrafa Nina Denski, presa na paixão pelo esplendor dos começos, marcados por uma ilusão de perfeição, tanto no amor, como em outras vertentes da vida, tomada pela paixão por uma beleza posteriormente desgastada, esboroada pelo desgaste inerente às relações humanas. Também um diálogo entre artes transparece em “A arte de ser a última”, narrativa ancorada numa viagem pelo Brasil, tecida pelas linhas da intertextualidade de onde emerge a literatura, a pintura, a música, o cinema:
«Uma cidade com mais habitantes do que o seu país — era um país com muitos países no ventre. Perscrutava se estariam por ali, em alguma minúscula janela, Regina Cassé, Zeca Baleiro, Conceição Evaristo, Marcelino Freire, Fernanda Montenegro, Raduan Nassar, Laura Cardoso, Paulinho da Viola, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Antônio Torres, Adriana Esteves, Antônio Fagundes, Lygia Bojunga, Ziraldo, Chico Buarque…» (p. 120). Além disso, quando a protagonista contempla os quadros pintados pela amiga que vai visitar e em cuja casa fica alojada, espelha-se a ideia do “talento preso em circunstâncias” que torna mais lentas ou tardias a expansão e a difusão da arte. Neste contexto, a analogia com a árvore converte-se num elemento fulcral: «Essa jabuticaba conhece, como nós, a arte de ser a última – disse Ayde. — Saboreie». E, sim, num mundo actual marcado pelo vazio, pela rapidez dos «fogos fátuos« de súbitos sucessos injustificados, pela futilidade, superficialidade, esta «arte de ser a última «assume-se como preciosa lição de integridade, de autenticidade, da demanda da estrutura sólida.
Em síntese, emerge, neste conjunto de contos, uma poetização do quotidiano, dos detalhes, dos pormenores da vida humana, desses pequenos nadas que enformam a realidade e consubstanciam o tudo, a totalidade. Esses aspectos são veiculados por uma voz narrativa poderosa, por vezes, habitada por uma subtil ironia, à qual subjaz também um olhar antropológico sobre as múltiplas mundividências marcadamente femininas, que instiga o leitor a reflectir. Nesta esteira, importa também sublinhar que, para além de todas as «palavras escritas, trabalhadas, tratadas» como referiu Maria Ondina Braga**, há ainda os ecos do silêncio, configurado por elipses, pela sugestão, pelas portas abertas à reflexão, interpretação dos leitores, como sucede por exemplo em “A faca que corta o musgo”: «A faca que corta o musgo não corta. Levanta memórias de finos filamentos, como se o cérebro fosse seixo liso e não granito de cristais e enigmas. Memórias intactas até ao momento de as fazer voltar a fazer circum-navegar o coração.» (p. 103). Emerge, assim, nos interstícios de tudo o que é narrado, o oiro das palavras não ditas.
* O livro Os anjos não morrem e tu morreste duas vezes está disponível nas livrarias a partir de 25/08/2023. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.
** Obras Completas de Maria Ondina Braga começam a ser publicadas