A Crónica de D. João I de Fernão Lopes é o retrato vivo da importância do povo e da sua liderança para o futuro de uma nação, para o futuro da humanidade. Além disso, a leitura é um manual de comportamentos humanos e Fernão Lopes ensina-nos a história de Portugal revestida de alma.
Atualmente, não é disso que precisamos, em Portugal, no mundo? Não precisamos de estar mais unidos do que nunca? Não em torno de uma nação, mas em torno do ser humano, daquele que, por bem, quer coexistir no nosso planeta.
A crónica sobre a qual aqui nos debruçamos é, indubitavelmente, singular, pois, tratando-se de uma crónica histórica, deveria narrar, de forma objetiva, factos históricos, segundo a ordem do tempo.
Na verdade, a palavra khrónos, em grego, significa «tempo» e, em latim, chronica é a narrativa de factos de acordo com o decorrer do tempo. E é esse o objetivo de Fernão Lopes, revelado no prólogo da Crónica de D. João I: «escrever verdade sem outra mistura», embora apresente, muitas vezes, uma dimensão interpretativa e estética, uma visão global e integradora de diferentes perspetivas, revelando, deste modo, uma posição subjetiva.
Ora, a crónica moderna exibe uma apreciação crítica, um comentário ou uma narração de acontecimentos reais ou imaginários. Surge em órgãos da comunicação social e mistura a subjetividade literária com o relato dos factos do quotidiano. Além disso, permite liberdades literárias, explorando as potencialidades estéticas da linguagem.
Assim, atualmente, a crónica é um género jornalístico que integra ao mesmo tempo elementos informativos, ambientais, literários e alguma opinião. Trata-se de um texto com caráter subjetivo, opinativo e crítico, que recria factos do quotidiano, situando-se entre a notícia e a reportagem.
Relativamente à crónica de D. João I de Fernão Lopes, é quase uma reportagem dos acontecimentos, um relato, numa linguagem viva e intensa, sobre a revolução de 1383-85, sobre o povo de Lisboa que não quer perder a independência e escolhe o mestre de Avis para seu novo rei.
A crónica de D. João I de Fernão Lopes: a união
Perante o contexto da crise de 1383/1385 e da iminência da perda da independência, foi a união do povo português e a sua consciência coletiva que permitiram segurar Portugal. Assim, gerou-se um sentimento de crise nacional que se disseminou em responsabilidades cívicas, ao nível dos direitos e dos deveres.
E é através das personagens coletivas que Fernão Lopes explicita a importância das grandes missões, aquelas que são lideradas por indivíduos exemplares, que comandam, que servem de modelo e cujos valores justificam os atos.
Relativamente às personagens coletivas, quer as populações civis, a arraia meúda de Lisboa e de outras cidades e vilas, quer os grupos militares ou os exércitos portugueses (nas quatro grandes batalhas), ou ainda os pequenos grupos ou contingentes que pilham para reabastecer uma vila cercada, que fazem negaças ao inimigo do outro lado da fronteira, todos eles são exemplo do valor da união de um povo consciente de que a força é maior e inigualável se estiver concentrada em torno de um bem maior.
Na verdade, a lição é sempre a mesma ao longo dos tempos e o ser humano une-se em prol de uma causa.
E assim retratou Fernão Lopes na Crónica de D. João I, onde o povo que se manifestava e agia junto do Mestre defendia Portugal contra o rei de Castela e contra uma nobreza portuguesa, identificada com a causa deste. Além disso, havia o ódio antigo pela rainha D. Leonor.
As razões que conduzem a uma exaltação coletiva são, com certeza emocionais e podem ir desde o medo ao ódio justificado ou, simplesmente, à simples vontade de estar em uniom, que se verifica na alegria, na celebração, na festa, como se pode ler no cap. 9 da 2.ª parte, quando se conta a visita do rei D. João I ao Porto: «as gentes da cidade [...] com novas e melhores vestiduras que cada um tinha, ferviam andando per toda a parte.»
Urge salientar que a motivação maior do povo prende-se, essencialmente, com a ética do bem daquilo que se defende. Neste caso, este povo português sabia e louvava Nun’Álvares pelo cuidado que demonstrava, evitando arrastar-lhe as casas e proibindo os seus homens que lhe roubassem as povoações. Era um líder zeloso, que merecia todo o respeito e a coletivização das responsabilidades. Essa idolatria e cuidado verifica-se, igualmente no capítulo 11 da 1.ª parte, em que o povo acorre ao Paço para socorrer o Mestre – «Acorramos ao Mestre, amigos, acorramos ao Mestre que matam sem por quê!». E a alegria, a euforia de ter o seu herói vivo é evidente e comovente: «muitos choravam com prazer de o veer vivo.» Trata-se de alguém com capacidade para mover pessoas, porque as razões são fortes, com valores maiores e vale a pena serem seguidos: «– Que nos mandades fazer, Senhor? Que querees que façamos?»
A emoção de quem conta: uma lição de humanidade
No capítulo 148 da primeira parte, referentes ao cerco de Lisboa, a personagem central é a população e, mais uma vez, se verifica a importância da atuação conjunta, da união: «os que esperavom por tal trigo andavam per a ribeira da parte de Exobregas, aguardando quando veesse, e os que velavom, se viiam as galees remar contra lá, repicavam logo por lhe acorrerem. Os da cidade como ouviam o repico, leixavam o sono, e tomavam as armas e saía muita gente.» Além disso, e por muito que se espere de um cronista, é notório o envolvimento emocionado de Fernão Lopes, que regista a fome, os padecimentos daquela gente: «Andavam os moços de três e de quatro anos pedindo pam pela cidade por amor de Deos, [...] e muitos não tinham outra cousa que lhe dar senom lagrimas que com eles choravom que era triste cousa de vee» (1.ª parte, cap. 148).
É exatamente esse envolvimento que permite visualizar, sentir, ter consciência, apesar de haver a garantia, no Prólogo, de seriedade sobre o seu trabalho, sobre os materiais históricos e é essa afeiçom que reflete a sua ideologia, emotividade e humanidade.
O mesmo funcionava em relação aos grupos de soldados. Apesar de entre eles não haver a anarquia que, muitas vezes, se verificava na gente pelas ruas, agem em serviço de um senhor e em serviço de uma missão concreta. Era, pois, nas grandes batalhas, que o líder ia à frente e dava o exemplo, motivando, exaltando, animando, dando esperança e força: «louvando-os com boom e ledo semblante, e esforçando-os que nom temessem sua multidom, nem as ameaças que mostravom com seus apupos e alaridos, ca tudo é um pouco de vento que d’i a breve espaço havia de cessar; e que fossem fortes e esforçados, havendo grande fé em Deos [...] em seus grandes trabalhos haviam de cessar per vitoria» (2.ª parte, cap. 42). Talvez seja por isso que o cronista tanto se envolva e chega mesmo a extasiar-se.
Humanidade e união em torno do ser humano
Atualmente, não vivemos isolados em países e, apesar de assistirmos a guerras pela conquista de territórios, isso afigura-se-nos pouco civilizado, porque ultrapassa a dignidade humana, porque vai além do que é verdadeiramente importante e do civismo e da globalidade a que chegamos.
Contudo, as crónicas da guerra continuam a chegar-nos. Não precisamos de ler: vemos tudo na televisão e parece que a realidade já não dói, porque a dor parece que se banalizou.
Em Fernão Lopes, o visualismo, o dinamismo eram-nos permitidos através das palavras de um cronista nem sempre isento, porque pessoa, com sentimentos e que apela às gerações futuras, à nossa, a que sintamos a dor, o sofrimento pelos quais aquela gente passou: «Ora esguardae como se fossees presente, uma tal cidade assi desconfortada e sem nenhuma certa feúza de seu livramento, como veviriam em tais desvairados cuidados quem sofria ondas de taes aflições?»
Que falta nos faz a literatura! Ler permite ao leitor colocar-se no lugar do “outro”. Quando se vê tudo na televisão, por vezes, parece que assistimos a um filme. Há filmes de guerra que não são tão violentos.
Além disso, a leitura é um manual de comportamentos humanos e Fernão Lopes ensina-nos a história de Portugal revestida de alma.
E não é de humanidade que precisamos? Não precisamos de estar mais unidos do que nunca? Atualmente, não em torno de uma nação, mas em torno do ser humano, daquele que, por bem, quer coexistir no nosso planeta.