« (...) Mais do que falar sobre estes poemas, importa lê-los, saborear-lhes a beleza, a originalidade. (...)..»
Guynea, o antigo nome da Guiné-Bissau, é neste livro de poemas (col. 12catorze, Edições Húmus), cuja primeira edição saiu em 2004 pela UNEAS, um país feito de poesia que podemos percorrer, descalços, de alma livre verso a verso, sentindo o calor de uma terra, de um povo, sentindo o deslumbramento que Arlinda Mártires connosco partilha. Aliás, a pertença a esse território, a Guiné, onde a autora viveu durante cinco anos e trabalhou na divulgação da língua e cultura portuguesas, como leitora do Instituto Camões, encontra-se bem patente na dedicatória: «Ao povo da Guiné-Bissau também meu povo, meu chão seguido da tradução em crioulo da Guiné (nha pubis, nha tchon)». E esta presença do crioulo que Arlinda Mártires aprendeu, revela a profundidade da sua relação com a Guiné, pois a língua é o reflexo da cultura, da essência de um país, das formas de sentir e viver das suas gentes. Neste contexto, o crioulo delineia-se também como marca de resistência, de preservação identitária.
E neste percurso pelo chão quente da Guiné, assistimos ao florir das acácias rubras, mesmo em «Chão de papel / onde o lixo e a podridão têm o seu domínio». Salienta-se aqui o contraste entre a realidade social complexa, marcada pela pobreza e o florir das acácias rubras, cuja cor e beleza anunciam um grito de esperança. Um preâmbulo aos poemas seguintes, organizados em três partes, com nomes de lugares específicos da Guiné: Santa Luzia, Cais de Pidjiguiti, a maravilhosa ilha de Rubane nas Bijagós, classificada pela UNESCO como Reserva da Biosfera e Património da Humanidade, considerada pelo povo bijagó como sagrada.
No poema intitulado “Santa Luzia”, onde «pega a noite com o dia», é o ritmo frenético do povo que transparece, transfigurado no próprio ritmo do poema, através da sonoridade, das imagens: «kandonga toka, toka/ pra cá, pra lá/ bicicletas, motoretas, povo a pé, pra cá, pra lá.» Emerge a alegria de um povo em luta pela vida, apesar da pobreza, da miséria (p. 12).
Tanto a estação seca, como a estação das chuvas, apesar de opostas, têm como denominador comum as doenças levadas pelo ventinho rasteiro de Janeiro, ou germinadas nas “ lagoas de água vermelha, morna parada, berço de coaxar de rãs, cólera, malária, morte.
De Mansoa, é-nos traçada uma aguarela através das palavras, fundidas no canto da rola D Abissinia. Por seu turno, em Cacheu, jazem as memórias enferrujadas do Império já ido, enquanto de Quinhamel desponta a natureza genesíaca, o odor do cajual em sinestesias que desenham o amor a uma terra interpenetrada da alma humana.
E guiado pela melodia encantatória, pelo ritmo de cada verso, o leitor percorre o Cais de Pidjiguiti, onde se demoram barcos e canoas como é o caso do Sambuia, a navegar além do passado.
E eis-nos em Rubane, ilha de beleza e serenidades notáveis, a viver sob a égide da alegria, onde a «alma aquece/ o Inverno imaginado» (p. 30).
Nesta esteira, como referiu Mário Beja Santos – que descobriu a primeira edição deste livro num alfarrabista, em Lisboa, e se encantou por ele – num texto sobre Guynea publicado no seu blogue em 2011, estes versos, marcados pela originalidade e pela beleza, deixam transparecer «rendições sublimes à multiculturalidade».
Evidencia-se, nesta obra, a dimensão humana aliada à natureza, contextualizada do ponto de vista social, no esboçar do retrato de um chão sofrido, fértil, de um povo alegre, pobre, generoso, apesar da dureza da vida – evidenciado, por exemplo, no menino de criação (puro, simples, cuja felicidade se edifica em pequenas coisas completamente esquecidas pelo nosso mundo consumista: «pedem ao branco a caneta, o chapéu/ e chove o riso e a alegria. / Por tão pouco se ganha o dia» (p. 31). Mas o povo é ainda representado por outras figuras, como é o caso da sublime nobreza de Abass, da bajuda que prende de amores o cooperante «pra dar de comer à vida», na tecedeira de cabelo, no costureiro, ou em Quinta, representativa de tantas mulheres não apenas da Guiné, mas também de outros quadrantes, no passado e no presente, apesar de todo o caminho trilhado pela emancipação: «Quinta é todos os dias/ Perdeu a conta das chuvas/ que molharam seu corpo./ Sete filhos / lhe sugaram a carne/ que o marido trocou por nova. // Quinta é todas as noites/ lume e candeia, aconchego/ de storias e cantigas» (p. 39).
Enfim, mais do que falar sobre estes poemas, importa lê-los, saborear-lhes a beleza, a originalidade, conhecer através deles uma Guiné profundamente sentida, vivida, amada, numa poesia, ancorada na sensibilidade, na experiência, na vida, a relembrar as palavras do poeta brasileiro Vinicius de Morais em Poética II: «Com as lágrimas do tempo e a cal do meu dia eu fiz o cimento da minha poesia.» Mais do que cimento, neste caso temos a pedra, presente no último poema intitulado “feito pedra”, a erguer uma espécie de estátua simbólica ao povo guineense:
Ocorre-me aos lábios
um corpo ébano
flancos de potro selvagem
entre colinas de mármore. (p. 41)
Texto da autoria professora e escritora Dora Gago, publicado na revista Caliban em 10 de março de 2025 e aqui divulgado com a devida vénia. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.